Os hipermercados são
um lugar horrível: cínico, falso, cruel. À entrada, os consumidores limpam a
sua má consciência reciclando rolhas e pilhas velhas, ou doando qualquer coisa
ao sos hepatite, ao banco alimentar ou ao pirilampo mágico. Dentro da área de consumo,
cai a máscara de humanidade do hipermercado: entra-se no coração do capitalismo
selvagem.
O consumidor, totalmente abandonado a si próprio (é mais fácil de encontrar uma
agulha num palheiro do que um funcionário que lhe saiba dar 2 ou 3 informações
sobre um mesmo produto), raramente tem à disposição mercadorias que, apesar do
encanto do seu embrulho, não dependam da exploração laboral, da contaminação
dos ecossistemas ou de paisagens inutilmente destruídas. Fora do hipermercado,
os produtores são barbaramente abusados pelo Continente (basta que não
pertençam a uma multinacional da agro-indústria), que os asfixia até à morte e,
quando há um produtor que deixa de suportar as impossíveis exigências que lhe
são impostas, aparece outro que definhará igualmente, até encontrar o mesmo
fim. Finalmente, nas caixas do hipermercado, para servir o consumidor como
escravos idênticos aos que fabricaram os artigos comprados, estamos nós.
O hipermercado está portanto no centro da miséria que se vive hoje no mundo.
O consumidor, o produtor e nós temos uma missão comum: contribuir para que os
homens mais ricos do planeta fiquem cada vez mais ricos – contribuir para que a
riqueza se concentre como nunca antes na história. Se somos todos diariamente
roubados e abusados, é por este mesmo e único motivo. Vou-vos
relatar apenas a minha banal experiência diária (sem pontos de exclamação já
que o escândalo é comum a qualquer um dos tópicos que irei descrever). Espero
que sirva de alguma coisa, apesar de saber que ninguém se incomodará muito com
ela. Afinal, é a mesma selva que está já em todo o lado.
1 – salário Trabalho 20h semanais em troca de 260€
mensais, o que dá pouco mais de 3€ por hora. Que isto se possa pagar a alguém
em 2015 devia ser motivo de vergonha para um país inteiro. Que seja um
milionário a pagar-me esta esmola devia dar pena de prisão efectiva.
2 – precariedade Já vou no terceiro ‘contrato’ de seis
meses e ainda não passei a efectiva. Quando chegar a altura em que poderei
finalmente entrar para o quadro, serei dispensada como tantas outras. A
explicação para a quebra brutal na natalidade está encontrada: afinal, alguém
consegue ter filhos nestas condições?
3 – trabalho não remunerado fora do horário de trabalho Se
o futuro é uma incógnita, o presente é sempre igual: todos os dias, sem
excepção, trabalho horas extra grátis que me são impostas. O meu horário de
saída é às 15h mas, depois dessa hora, ainda tenho para executar várias tarefas
obrigatórias, que me levam entre 15 a 20 minutos diários, como arrumar os
cestos das compras e os artigos que os clientes deixam ficar na caixa ou
guardar o dinheiro no cofre. No quase ano e meio que levo a trabalhar no
Continente, devo ter saído uns 5 dias, no total, à hora certa. E já cheguei a
sair uma hora e meia depois das 15h, apesar de os meus superiores saberem muito
bem que dali ainda vou para outro trabalho e de, por isso, eu ter sempre imensa
pressa para não me atrasar.
4 – trabalho em dias de folga Para perpetuar a falta de
funcionários na loja, obriga-se aqueles que lá estão a trabalharem pelos que
fazem falta, oferecendo assim todos os meses algumas horas do seu tempo de vida
e de descanso ao patrão, que deste modo poupa no número de salários a pagar.
Mais absurdo: num dia em que esteja de folga, posso ser convocada para ir à
loja para fazer inventário. Sou obrigada a ir, apesar de estar na minha folga,
e apenas posso faltar mediante justificação médica. E, como se não bastasse,
até já aconteceu eu ser avisada no próprio dia da folga.
5 – cada segundo de exploração conta Neste ano e meio,
cheguei uma única vez 5 minutos atrasada e a minha superior foi logo bruta e
agressiva comigo, tendo-me gritado e agarrado pelo braço, apesar de
supostamente haver uma tolerância para se chegar até 15 minutos atrasada. Nunca
mais voltei a atrasar-me. Nem 10 segundos. (Já sair pelo menos 15 minutos mais
tarde do que a hora prevista, isso é todos os dias.)
6 – formatação do corpo Relativamente à aparência física,
devemos formatá-la meticulosamente, ao gosto sexista do patrão. Na loja onde
trabalho, várias colegas tiveram por isso de eliminar os seus pírcingues,
apagar também a cor das unhas (lá só é admitido o vermelho) e uma até teve de
mudar de penteado. O patrão quer que nos apresentemos como autênticas bonecas.
Faz lembrar os escravos que eram levados para as Américas, a quem se retiravam
as suas marcas corporais para serem explorados sem outra identidade que a de
escravos (seres humanos transformados em mercadorias).
7 – pausa para comer/urinar/descansar é crime Mas o pior
de tudo é mesmo o que acontece durante o tempo de trabalho. Os meus superiores
querem que eu esteja as 4 horas sentada a render o máximo que é humanamente
possível, por isso, dificultam ao máximo as minhas pausas – que são legais e
demoraram séculos a conquistar – para ir comer qualquer coisa ou ir
simplesmente à casa de banho. A única coisa que me autorizam a levar para junto
de mim, no meu posto de trabalho na caixa, é uma garrafinha de água previamente
selada e nada mais. De resto, o que levar para comer e beber (sumos e iogurtes
líquidos não podem ir comigo para a caixa) tenho que deixar no Posto de
Informações e só tenho acesso quando da caixa telefono para lá. Normalmente, no
Posto, fazem que se esquecem desses pedidos, passando uma eternidade até eu
finalmente conseguir ir comer. E, quando a muito custo lá consigo obter
autorização para ir comer, sou pressionada para ser ultra rápida, pelo que em
vez de mastigar estou mais habituada a engasgar-me. O mesmo acontece com as
idas à casa de banho, sempre altamente dificultadas.
8 – gerem-nos como se fôssemos animais Há uns tempos, uma
colega sentiu-se mal quando estava na caixa, fartou-se de pedir licença para ir
à casa de banho, mas foi obrigada como de costume a esperar tanto, tanto que lá
se vomitou, quase em cima de um cliente. Não se calem e denunciem
todos os abusos nas redes sociais e nos blogs. (gostava imenso de
assinar, mas os 260€ do salário fazem-me tanta falta)
Fonte: L'obeissance est morte
Crédito foto de capa: L'obeissance est morte
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