O
poder de Estado, que parecia planar bem acima da sociedade, era
todavia, ele próprio, o maior escândalo desta sociedade e, ao mesmo
tempo, o foco de todas as corrupções.
18.03.24 |
Manuel (Algumas considerações à laia de resumo)
«O que é, pois, a Comuna, essa esfinge que põe tão duramente à prova o entendimento burguês?»
A Comuna devia ser, não um organismo parlamentar, mas um corpo activo, ao mesmo tempo executivo e legislativo.
Mas
a classe operária não se pode contentar com tomar o aparelho de Estado
tal como ele é e de o pôr a funcionar por sua própria conta.
O
poder centralizado do Estado, com os seus órgãos presentes por toda a
parte: exército permanente, polícia, burocracia, clero e magistratura,
órgãos moldados segundo um plano de divisão sistemática e hierárquica do
trabalho, data da época da monarquia absoluta, em que servia à
sociedade burguesa nascente de arma poderosa nas suas lutas contra o
feudalismo.
Em presença de ameaça de sublevação do
proletariado, a classe possidente unida utilizou então o poder de
Estado, aberta e ostensivamente, como o engenho de guerra nacional do
capital contra o trabalho.
Na sua cruzada permanente
contra as massas dos produtores, foi forçada não só a investir o
executivo de poderes de repressão cada vez maiores, mas também a retirar
pouco a pouco à sua própria fortaleza parlamentar, a Assembleia
Nacional, todos os meios de defesa contra o executivo.
O
poder de Estado, que parecia planar bem acima da sociedade, era
todavia, ele próprio, o maior escândalo desta sociedade e, ao mesmo
tempo, o foco de todas as corrupções.
O primeiro decreto da Comuna foi pois a supressão do exército permanente e a sua substituição pelo povo em armas.
A Comuna era composta por conselheiros municipais, eleitos por sufrágio universal nos diversos bairros da cidade.
Eram responsáveis e revogáveis a todo o momento.
A maioria dos seus membros era naturalmente operários ou representantes reconhecidos da classe operária.
Em
vez de continuar a ser o instrumento do governo central, a polícia foi
imediatamente despojada dos seus atributos políticos e transformada num
instrumento da Comuna, responsável e revogável a todo o momento.
O mesmo se deu com os outros funcionários de todos os outros ramos da administração.
Desde os membros da Comuna até ao fundo da escala, a função pública devia ser assegurada com salários de operários.
Uma
vez abolidos o exército permanente e a polícia, instrumentos do poder
material do antigo governo, a Comuna teve como objectivo quebrar o
instrumento espiritual da opressão, o "poder dos padres"; decretou a
dissolução e a expropriação de todas as igrejas, na medida em que elas
constituíam corpos possuidores.
Os padres foram
remetidos para o calmo retiro da vida privada, onde viveriam das esmolas
dos fiéis, à semelhança dos seus predecessores, os apóstolos.
Todos
os estabelecimentos de ensino foram abertos ao povo gratuitamente e, ao
mesmo tempo, desembaraçados de toda a ingerência da Igreja e do Estado.
Assim,
não só a instrução se tornava acessível a todos, como a própria ciência
era libertada das grilhetas com que os preconceitos de classe e o poder
governamental a tinham acorrentado.
Os funcionários
da justiça foram despojados dessa fingida independência que não servira
senão para dissimular a sua vil submissão a todos os governos
sucessivos, aos quais, um após outro, haviam prestado juramento de
fidelidade, para em seguida os violar.
Assim como o resto dos funcionários públicos, os magistrados e os juízes deviam ser eleitos, responsáveis e revogáveis.
Após uma luta heróica de cinco dias, os operários foram esmagados.
Fez-se
então, entre os prisioneiros sem defesa, um massacre como se não tinha
visto desde os dias das guerras civis que prepararam a queda da
República romana.
Pela primeira vez, a burguesia
mostrava a que louca crueldade vingativa podia chegar quando o
proletariado ousa afrontá-la, como classe à parte, com os seus próprios
interesses e as suas próprias reivindicações.
E, no entanto, 1848 não passou de um jogo de crianças, comparado com a raiva da burguesia em 1871.
Proudhon, o socialista do pequeno campesinato e do artesanato, odiava positivamente a associação.
Dizia
dela que comportava mais inconvenientes do que vantagens, que era
estéril por natureza e até mesmo prejudicial, pois entravava a liberdade
do trabalhador; dogma puro e simples...
E é também por isso que a Comuna foi o túmulo da escola proudhoniana do socialismo."
As coisas não correram melhor para os blanquistas.
Educados
na escola da conspiração, ligados pela estrita disciplina que lhe é
própria, partiam da ideia de que um número relativamente pequeno de
homens resolutos e bem organizados era capaz, chegado o momento, não só
de se apoderar do poder, mas também, desenvolvendo uma grande energia e
audácia, de se manter nele durante um tempo suficientemente longo para
conseguir arrastar a massa do povo para a Revolução e reuni-la à volta
do pequeno grupo dirigente.
Para isso era preciso,
antes de mais nada, a mais estrita centralização ditatorial de todo o
poder entre as mãos do novo governo revolucionário.
E que fez a Comuna que, em maioria, se compunha precisamente de blanquistas?
Em
todas as suas proclamações aos franceses da província, convidava-os a
uma livre federação de todas as comunas francesas com Paris, a uma
organização nacional que, pela primeira vez, devia ser efectivamente
criada pela própria nação.
Quanto à força repressiva
do governo outrora centralizado, o exército, a polícia política, a
burocracia, criada por Napoleão em 1798, retomada depois com prontidão
por cada novo governo e utilizada por ele contra os seus adversários,
era justamente esta força que devia ser destruída por toda a parte, como
o fora já em Paris."
"Para evitar esta
transformação, inevitável em todos os regimes anteriores, do Estado e
dos órgãos do Estado em senhores da sociedade, quando na origem eram
seus servidores, a Comuna empregou dois meios infalíveis.
Primeiro,
submeteu todos os lugares, da administração, da justiça e do ensino, à
escolha dos interessados através de eleição por sufrágio universal e,
evidentemente, à revogação, em qualquer momento, por esses mesmos
interessados.
E segundo, retribuiu todos os
serviços, dos mais baixos aos mais elevados, pelo mesmo salário que
recebiam os outros operários. O vencimento mais alto que pagou foi de
6000 francos.
Assim, punha-se termo à caça
aos lugares e ao arrivismo, sem falar da decisão suplementar de impor
mandatos imperativos aos delegados aos corpos representativos.
Esta
destruição do poder de Estado, tal como fora até então, e a sua
substituição por um poder novo, verdadeiramente democrático, estão
detalhadamente descritas na terceira parte de A Guerra Civil (Karl
Marx).
Mas era necessário voltar a referir aqui
brevemente alguns dos seus traços, porque, precisamente na Alemanha, a
superstição do Estado passou da filosofia para a consciência comum da
burguesia e mesmo de muitos operários.
Na concepção
dos filósofos, o Estado é "a realização da Ideia" ou o reino de Deus na
terra traduzido em linguagem filosófica, o domínio onde a verdade e a
justiça eternas se realizam ou devem realizar-se.
Daí
esta veneração que se instala tanto mais facilmente quanto, logo desde o
berço, fomos habituados a pensar que todos os assuntos e todos os
interesses comuns da sociedade inteira não podem ser tratados senão como
o foram até aqui, quer dizer, pelo Estado e pelas suas autoridades
devidamente estabelecidas.
E julga-se que já se deu
um passo prodigiosamente ousado ao libertarmo-nos da fé na monarquia
hereditária e ao jurarmos pela república democrática.
Imagem: Na alvorada de 18 de Março (1871), Paris foi despertada por este grito de trovão: VIVE LA COMMUNE!
“A Guerra Civil em França”, Karl Marx. Centelha, Coimbra, 1975.