Chefes de estado e de governo da Nato, Bruxelas, março 2022. Sem entender como a guerra acontece, não se pode encontrar solução.
O noticiário esmagador sobre as
desgraças humanas da guerra na Ucrânia — umas reais, outras inventadas
ou amplificadas pelas necessidades da propaganda — cumprem um propósito:
focar a atenção do público nos efeitos da guerra, desviando-a das
causas que originaram o conflito. Ora, como todas as guerras sem
excepção são fonte de sofrimento humano, o que as distingue só pode ser
encontrado nas suas origens. Só aí se podem avaliar as razões políticas
que as explicam e encarar os meios igualmente políticos de lhes pôr fim.
É o papel que cumpre a entrevista dada pelo coronel suíço Jacques Baud à
revista Zeitgeschehen im Fokus (Actualidades em foco), pondo em
destaque o papel ofensivo e de provocação à Rússia que tiveram os EUA,
através da Nato e com a cooperação da União Europeia, nos anos que
antecederam a invasão russa de fevereiro deste ano.
A entrevista, já publicada em meios
de comunicação alternativos, não terá tido, pela sua natureza herética, a
divulgação que, a nosso ver, merece. Apesar de Jacques Baud ser acusado
em certos meios de “conspiracionismo” e de “branquear” a Rússia, este
seu testemunho reúne uma série de dados factuais, normalmente sonegados
ao grande público, que permitem, pelo menos, romper a censura que nos
foi imposta e pôr em causa a propaganda dominante com que diariamente
somos bombardeados sem hipótese de contraditório.
MILITAR SUÍÇO ANALISA COM BISTURI A GUERRA NA UCRÂNIA
Entrevista, Zeitgeschehen im Fokus, 31 março
O senhor conhece bem a região. Que conclusões tira do que está a acontecer na Ucrânia?
Sim, conheço bem a região. Trabalhei
no FDFA [Ministério dos Negócios Estrangeiros da Suíça] e fui destacado
para a Nato por cinco anos. O meu trabalho era combater a proliferação
de armas letais. Nessa qualidade, contribuí para o programa na Ucrânia
após 2014. Além disso, conheço muito bem a Rússia, a Nato e a Ucrânia
devido ao meu trabalho anterior em inteligência estratégica. Falo russo e
tenho acesso a documentos que poucas pessoas no Ocidente lêem.
Como entende o que está a acontecer?
É uma loucura, podemos até dizer que
há uma verdadeira histeria. O que me surpreende, e realmente me
incomoda, é que ninguém pergunta por que é que os russos lançaram esta
operação. Ninguém defende a guerra, e eu também não. Mas como ex-chefe
de Política e Doutrina do Departamento de Operações de Manutenção da Paz
da ONU em Nova York por dois anos, pergunto-me sempre: como se chega ao
ponto de iniciar uma guerra?
Qual era a sua tarefa na ONU?
A ONU precisava de entender como as
guerras acontecem, que factores levam à paz e o que pode ser feito para
evitar baixas ou como prevenir a guerra. Se não se entender como a
guerra acontece, então não se pode encontrar uma solução. Estamos
exactamente nesta situação. Cada país impõe as suas próprias sanções
contra a Rússia, e sabemos muito bem que isso não vai a nenhum lado. O
que me chocou particularmente foi a declaração do ministro da Economia
francês de que querem destruir a economia russa com o objectivo de fazer
o povo russo sofrer. É uma afirmação ultrajante.
Como avalia a ofensiva russa?
Atacar outro estado vai contra os
princípios do direito internacional. Mas os antecedentes de tal decisão
devem ser considerados. Antes de mais nada, é preciso deixar claro que
Putin não é louco nem desligado da realidade. É uma pessoa metódica e
sistemática, ou seja, muito russa. Acho que ele estava ciente das
consequências da sua operação na Ucrânia. Ele avaliou, obviamente com
razão, que, se realizasse uma “pequena” operação para proteger a
população de Donbass ou uma operação “massiva” em favor da população de
Donbass e dos interesses nacionais da Rússia, as consequências seriam as
mesmas. Então, ele foi para a solução máxima.
Qual é o objectivo da Rússia?
Certamente não é dirigido contra a
população ucraniana. Putin disse isso várias vezes. Também pode ser
visto pelos factos. A Rússia continua a fornecer gás à Ucrânia. Os
russos não impediram isso. Não fecharam a internet. Não destruíram as
fábricas e o abastecimento de água. Embora tais serviços possam ter
parado nas áreas de combate. Mas a abordagem de guerra russa é muito
diferente da dos americanos, há os exemplos na ex-Jugoslávia, no Iraque e
na Líbia. Quando os países ocidentais atacaram esses países, primeiro
destruíram o fornecimento de água e electricidade e toda a
infraestrutura.
Porque é que o Ocidente actua assim?
É preciso analisar a abordagem
ocidental do ponto de vista da sua doutrina operacional. Ela baseia-se
na ideia de que, se se destruir as infraestruturas, a população
revoltar-se-á contra “o ditador”. Essa também foi a estratégia durante a
Segunda Guerra Mundial, quando cidades alemãs como Colónia, Berlim,
Hamburgo, Dresden, etc. foram bombardeadas até à destruição. Visaram
directamente a população civil para que houvesse uma revolta. O governo
perde o poder devido a uma revolta e vence-se a guerra sem colocar em
risco as próprias tropas. Essa é a teoria.
Qual é a abordagem russa?
É completamente diferente. Eles
anunciaram claramente o seu objectivo: querem a “desmilitarização” e
“desnazificação” da Ucrânia. Se se acompanhar a situação honestamente, é
exactamente isso que eles estão a fazer. Claro, uma guerra é uma guerra
e, infelizmente, há sempre mortes, mas é interessante ver o que dizem
os números. Na sexta-feira, 4 de março, a ONU relatou 265 civis
ucranianos mortos. À noite, o Ministério da Defesa russo estimou o
número de soldados mortos em 498. Isso significa que há mais baixas
entre os militares russos do que entre os civis do lado ucraniano. Se
compararmos isso com o Iraque ou a Líbia, sucede exactamente o oposto
com as guerras que o Ocidente desencadeia.
Os media ocidentais não estão a mostrar a verdade?
Os nossos media
afirmam que os russos querem destruir tudo, mas isso obviamente não é
verdade. Também estou preocupado com a forma como os nossos media
retratam Putin. Falam como se, de repente, o “tirano” decidisse atacar e
conquistar a Ucrânia. Os EUA alertaram durante vários meses que haveria
um ataque surpresa, mas nada aconteceu. De facto, os serviços de
inteligência e líderes ucranianos negaram repetidamente esses avisos
norte-americanos. Observando atentamente os relatórios e preparativos
militares no terreno, pode-se ver claramente: Putin não tinha intenção
de atacar a Ucrânia até meados de fevereiro.
Porque é que isso mudou?
Temos que saber algumas coisas
primeiro, senão não entendemos. Em 24 de março de 2021, o presidente
ucraniano Zelensky emitiu um decreto presidencial para recapturar a
Crimeia. Começou então a mover o exército ucraniano para o sul e
sudeste, em direcção a Donbass. Há um ano, houve uma grande concentração
de tropas ucranianas na fronteira sul da Ucrânia. Zelensky sempre
sustentou que os russos não atacariam a Ucrânia. O Ministro da Defesa
ucraniano também confirmou isso repetidamente. Da mesma forma, o chefe
do Conselho de Segurança ucraniano declarou em dezembro e janeiro que
não havia sinais de um ataque russo à Ucrânia.
Foi um truque?
Não. Tenho certeza de que Putin não
queria atacar a Ucrânia, ele disse isso repetidamente. Obviamente, houve
pressão dos EUA para iniciar a guerra. Os Estados Unidos têm pouco
interesse na Ucrânia. O que eles queriam era aumentar a pressão sobre a
Alemanha para fechar o [gasoduto]Nord Stream II. Queriam que a Ucrânia
provocasse a Rússia e, se a Rússia reagisse, o Nord Stream II ficaria
congelado.
Tal cenário foi mencionado quando
Olaf Scholz visitou Washington, e Scholz claramente não queria
aceitá-lo. Isto não é apenas a minha opinião, há muitos diplomatas
norte-americanos que entenderam assim: o objectivo era o Nord Stream II,
e não devemos esquecer que esse gasoduto foi construído a pedido dos
alemães. É fundamentalmente um projecto alemão. Porque a Alemanha
precisa de mais gás para atingir suas metas de energia e clima.
Porque estão os Estados Unidos interessados no conflito?
Desde a Segunda Guerra Mundial, a
política dos EUA foi sempre impedir a Alemanha e a Rússia (ou a URSS) de
trabalharem mais de perto. Isto apesar de os alemães terem um medo
histórico dos russos. Mas os dois países são as duas maiores potências
da Europa. Historicamente, sempre houve relações económicas entre a
Alemanha e a Rússia. Os EUA sempre tentaram evitar isso.
Não se deve esquecer que, numa guerra
nuclear, a Europa seria o campo de batalha. Isso significa que, nesse
caso, os interesses da Europa e dos EUA não seriam necessariamente os
mesmos. Isso explica por que, na década de 1980, a União Soviética
apoiou movimentos de paz na Alemanha. Uma relação mais próxima entre a
Alemanha e a Rússia tornaria inútil a estratégia nuclear dos EUA.
Os EUA criticam a dependência energética da Alemanha porquê?
É irónico que os EUA critiquem a
dependência da Alemanha ou da Europa face à energia russa. A Rússia é o
segundo maior fornecedor mundial de petróleo. Os EUA compram petróleo
principalmente ao Canadá, depois à Rússia, ao México e à Arábia Saudita.
Isso significa que os EUA também dependem da Rússia. Isso também é
verdade para os motores de foguetão, por exemplo. Isso não incomoda os
EUA. Mas os EUA ressentem-se de os europeus serem dependentes da
Rússia.
Durante a Guerra Fria, a União
Soviética sempre honrou todos os contratos de gás. A maneira russa de
pensar a esse respeito é muito semelhante à dos suíços. A Rússia tem uma
mentalidade cumpridora da lei; sente-se vinculada às regras, assim como
a Suíça. Isso não significa que não tenham emoções, mas quando as
regras são estabelecidas, eles seguem-nas. Durante a Guerra Fria, a
União Soviética nunca fez uma conexão entre comércio e política. Nesse
sentido, a disputa relacionada com a Ucrânia é principalmente política.
De acordo com Brzezinski, a Ucrânia seria a chave para dominar a Eurásia. Qual o papel desta teoria nesta guerra?
Brzezinski foi, sem dúvida, um grande
pensador e ainda influencia o pensamento estratégico dos EUA. Mas não
acho que esse aspecto seja fundamental nesta crise em particular. A
Ucrânia é certamente importante. Mas a questão de quem domina ou
controla a Ucrânia não é o ponto principal aqui. Os russos não querem
controlar a Ucrânia. O problema da Ucrânia para a Rússia, como para
outros países, é estratégico.
Que significa isso?
Na discussão que está a acontecer em
todo o lado, questões cruciais estão a ser ignoradas. As pessoas falam
sobre armas nucleares como se estivessem a assistir a um filme. A
realidade é outra. Os russos querem estabelecer uma distância entre as
forças militares da Nato e as da Rússia. O poder da Nato não é outro
senão o poder nuclear americano. Essa é a essência da Nato. Quando eu
trabalhava na Nato, Jens Stoltenberg – então meu chefe – costumava
dizer: “A Nato é uma potência nuclear”. Os EUA implantaram os seus
sistemas de mísseis na Polónia e na Roménia, que incluem sistemas de
lançamento MK-41.
Essas são armas defensivas?
Os Estados Unidos, é claro, dizem que
são puramente defensivas. Na verdade, esses lançadores podem disparar
mísseis antibalísticos. Mas o mesmo sistema também pode lançar mísseis
nucleares. Estas rampas estão a poucos minutos de Moscovo. Se, numa
situação de tensão crescente na Europa, os russos detectarem, com
imagens de satélite ou inteligência, actividades nessas plataformas que
indiquem preparativos para um lançamento, eles esperarão até que os
mísseis nucleares sejam lançados em direcção a Moscovo? Claro que não.
Lançariam imediatamente um ataque preventivo.
Toda essa situação se agravou depois
de os EUA se retirarem do Tratado ABM [Tratado de Mísseis
Antibalísticos]. De acordo com este Tratado, sistemas deste tipo não
poderiam ser implementados na Europa. A ideia era justamente manter um
certo tempo de reacção em caso de confronto. Isto porque erros não
intencionais podem acontecer. Tivemos algo assim durante a Guerra Fria.
Quanto maior a distância entre os mísseis nucleares, mais tempo há para
reagir. Se os mísseis forem implantados muito perto do território russo,
a Rússia não terá tempo de reagir no caso de um ataque e corre o risco
de entrar numa guerra nuclear muito mais depressa. Isto afecta todos os
países vizinhos.
Os soviéticos, no seu tempo,
perceberam isso, por isso criaram o Pacto de Varsóvia. A Nato foi a
primeira… A Nato foi fundada em 1949 e o Pacto de Varsóvia apenas seis
anos depois. O motivo foi o rearmamento da República Federal da Alemanha
e a sua entrada na Nato em 1955. Se você olhar para o mapa de 1949,
poderá ver uma lacuna muito grande entre o poder nuclear da Nato e o da
URSS. A URSS queria ter uma
cintura de segurança para que pudesse travar uma guerra convencional
pelo maior tempo possível. Essa era a ideia: fazer uma guerra
convencional o mais longa possível e evitar entrar no nuclear.
Ainda é assim hoje?
Após a Guerra Fria, a estratégia
nuclear foi um pouco esquecida. A segurança já não era uma questão de
armas nucleares. A guerra no Iraque ou no Afeganistão foram guerras com
armas convencionais, e a dimensão nuclear estava fora de vista. Mas os
russos não esqueceram. Eles pensam estrategicamente. Naquela época,
visitei o Estado-Maior da Academia Voroshilov em Moscovo. Aí pode ver-se
como as pessoas pensam. Eles pensam estrategicamente, tal como se deve
pensar em tempos de guerra.
Isso acontece hoje?
Hoje você pode ver muito claramente. O
pessoal de Putin pensa estrategicamente. Os russos têm pensamento
estratégico, pensamento operacional e pensamento táctico. Os países
ocidentais, como vimos no Afeganistão ou no Iraque, não têm estratégia.
Este é exactamente o problema que os franceses têm no Mali. O Mali agora
exigiu que eles saíssem do país, porque os franceses estão a matar
pessoas sem objectivo estratégico. Com os russos é completamente
diferente, eles pensam estrategicamente. Eles têm um objectivo. É o
mesmo com Putin. Os nossos meios de comunicação dizem que Putin colocou
armas nucleares em jogo…
Que acha disso?
Vladimir Putin colocou as forças
nucleares em alerta de nível 1 em 27 de fevereiro. Mas esta é apenas
metade da história. Nos dias 11 e 12 de fevereiro, uma conferência de
segurança foi realizada em Munique. Zelenski estava lá. Ele indicou que
queria adquirir armas nucleares. Isso foi interpretado como uma ameaça
potencial e a luz vermelha acendeu no Kremlin. Para entendê-lo, é
preciso lembrar o Acordo de Budapeste de 1994. Tratava-se de destruir
mísseis nucleares no território das ex-repúblicas soviéticas, deixando
apenas a Rússia como potência nuclear. A Ucrânia também entregou armas
nucleares à Rússia em troca da inviolabilidade das suas fronteiras.
Quando a Crimeia voltou à Rússia em 2014, a Ucrânia disse que não
cumpriria o acordo de 1994. Voltemos às armas nucleares…
O que disse Putin realmente?
Se Zelensky quisesse recuperar as
armas nucleares, isso certamente seria inaceitável para Putin. Com armas
nucleares na fronteira, há muito pouco tempo de aviso. Durante
a conferência de imprensa após a visita de Macron, Putin deixou claro
que, se a distância entre a Nato e a Rússia fosse pequena, isso iria
criar complicações. Mas o elemento decisivo foi, no início da operação
contra a Ucrânia, quando o ministro das Finanças francês ameaçou Putin
ao declarar que a Nato era uma potência nuclear. Putin reagiu aumentando
o nível de alerta das suas forças nucleares. Os nossos media, é claro,
não mencionaram isso. Putin é realista: tem os pés no chão e tem um
propósito.
O que levou Putin a intervir militarmente agora?
Em 24 de março de 2021, Zelensky
emitiu um decreto presidencial para reconquistar a Crimeia pela força.
Começou os preparativos para fazê-lo. Se essa era a sua verdadeira
intenção ou simplesmente uma manobra política, não sabemos. O que vimos,
no entanto, é que ele reforçou massivamente o exército ucraniano na
região de Donbass e no sul em direcção à Crimeia. É claro que os russos
estavam cientes dessa concentração de tropas.
Ao mesmo tempo, a Nato realizou
grandes exercícios entre o Báltico e o Mar Negro. Compreensivelmente,
isso levou os russos a reagir, realizando exercícios no distrito militar
do sul. As coisas acalmaram-se depois disso e, em setembro, a Rússia
realizou os exercícios “Zapad 21”, planeados há muito tempo. Esses
exercícios são realizados a cada quatro anos. No final dos exercícios,
algumas tropas permaneceram perto da Bielorrússia. Eram unidades do
Distrito Militar Oriental.
Como reagiu o Ocidente a isso?
A Europa e especialmente os EUA
interpretaram isso como um reforço das capacidades ofensivas contra a
Ucrânia. Especialistas militares independentes, mas também o chefe do
Conselho de Segurança da Ucrânia, disseram, na altura, que não havia
preparativos para a guerra. As tropas deixadas pela Rússia em outubro
não se destinavam a uma operação ofensiva.
No entanto, os chamados especialistas
militares ocidentais, especialmente em França, interpretaram isso como
preparativos para a guerra e começaram a designar Putin como louco. Foi
assim que a situação evoluiu desde o final de outubro de 2021 até o
início deste ano. A forma como os EUA e a Ucrânia se entenderam sobre
essa questão foi muito contraditória. Os EUA alertaram sobre uma
ofensiva planeada, enquanto a Ucrânia negou. Era um vai-vem permanente. A
OSCE informou que o Donbass foi bombardeado [pelos ucranianos] em
fevereiro deste ano.
A OSCE informou que o Donbass foi bombardeado em fevereiro. O que aconteceu então?
No final de janeiro, a situação
pareceu evoluir. Os EUA conversaram com Zelensky e pequenas mudanças
foram observadas. Desde o início de fevereiro, os Estados Unidos falam
sobre um ataque russo iminente e começam a espalhar cenários de ataque.
Antonio Blinken, no Conselho de
Segurança da ONU, explica como um ataque russo se desenrolaria de acordo
com os serviços secretos dos EUA. Isso lembra-nos a situação em
2002/2003 antes do ataque ao Iraque. Aí, também, as explicações dadas
pelos Estados Unidos foram supostamente baseadas em análises de
inteligência.
Como sabemos, não era verdade, o
Iraque não tinha armas de destruição em massa. Na verdade, a CIA não
confirmou essa hipótese. Como resultado, Donald Rumsfeld confiou não na
CIA, mas num pequeno grupo confidencial dentro do Departamento de
Defesa, que havia sido criado especialmente para evitar a análise da
CIA.
De onde vem essa informação?
No contexto ucraniano, Blinken fez
exactamente a mesma coisa. Em toda a discussão que antecedeu a ofensiva
russa, nota-se a total ausência das análises da CIA e das agências de
inteligência ocidentais. Tudo o que Blinken nos contou veio de uma
equipa que ele mesmo montou, o “Tiger Team”. Os cenários que nos foram
apresentados não vieram de uma análise de inteligência, mas de
especialistas autonomeados que inventaram um cenário com uma agenda
política. Assim nasceu o boato de que os russos estavam prestes a
atacar.
Em 16 de fevereiro, Joe Biden disse
que sabia que os russos estavam prestes a atacar. Mas quando perguntado
como sabia disso, ele respondeu que os Estados Unidos tinham capacidades
de inteligência muito boas, sem mencionar a CIA ou o Agência de
Inteligência Nacional.
Então, algo aconteceu em 16 de fevereiro
Naquele dia, houve um aumento
exagerado nas violações do cessar-fogo pelos militares ucranianos ao
longo da linha de cessar-fogo [no Donbass], a chamada “linha de
contacto”. Sempre houve violações nos últimos oito anos, mas desde 12 de
fevereiro o aumento foi enorme, incluindo explosões, especialmente nas
regiões de Donetsk e Lugansk. Sabemos disso porque a missão da OSCE no
Donbass relatou. Estes relatos podem ser lidos nos Relatórios Diários da
OSCE.
Qual era o objectivo do exército ucraniano?
Esta foi certamente a fase inicial de
uma ofensiva contra o Donbass. Quando o fogo de artilharia se
intensificou, as autoridades de ambas as repúblicas começaram a evacuar a
população civil para a Rússia. Numa entrevista, Sergei Lavrov mencionou
mais de 100.000 refugiados. Na Rússia, isso foi visto como o início de
uma operação em grande escala.
Quais foram as consequências?
Essa acção do exército ucraniano
desencadeou tudo. A partir daquele momento, ficou claro para Putin que a
Ucrânia iria realizar uma ofensiva contra as duas repúblicas. Em 15 de
fevereiro, o parlamento russo, a Duma, adoptou uma resolução propondo o
reconhecimento da independência dessas repúblicas. A princípio Putin não
reagiu, mas à medida que os ataques se intensificaram, ele decidiu em
21 de fevereiro responder positivamente ao pedido parlamentar.
Porque deu Putin esse passo?
Nessa situação, ele não teve escolha,
porque o povo russo não teria entendido que ele não fizesse nada para
proteger a população de língua russa do Donbass. Para Putin, ficou claro
que se ele interviesse apenas para ajudar as repúblicas ou para invadir
a Ucrânia, o Ocidente reagiria igualmente com sanções massivas.
Num primeiro momento, reconheceu a
independência das duas repúblicas, depois, no mesmo dia, celebrou
tratados de amizade e cooperação com cada uma delas. A partir de então,
poderia invocar o artigo 51 da Carta das Nações Unidas, que lhe permitia
intervir para auxiliar as duas repúblicas no âmbito da defesa colectiva
e da legítima defesa. Assim, ele criou a base legal para sua
intervenção militar.
Mas ele não apenas ajudou as repúblicas, ele também atacou toda a Ucrânia
Putin tinha duas opções: primeira,
simplesmente ajudar o Donbass de língua russa contra a ofensiva militar
ucraniana; segunda, realizar um ataque mais profundo em toda a Ucrânia
para neutralizar as suas capacidades militares. Ele também levou em
conta que, fizesse o que fizesse, as sanções choveriam sobre ele. Foi
por isso que ele optou claramente pela variante máxima; no entanto,
deve-se notar que Putin nunca disse que quer tomar posse da Ucrânia. Os
seus objectivos são claros: desmilitarização e desnazificação.
Qual o pano de fundo desses objetivos?
A desmilitarização é compreensível,
já que a Ucrânia reuniu todo o seu exército no sul, entre Donbass e
Crimeia. Uma operação rápida permitiria que ele cercasse essas tropas.
Foi o que aconteceu, e grande parte do exército ucraniano está
actualmente cercado numa grande bolsa na região de Donbass, entre
Slavyansk, Kramatorsk e Severodonetsk. Os russos cercaram-no e estão em
processo de neutralizá-lo.
Agora, quanto à chamada
desnazificação… Quando os russos dizem isso, não é uma frase vazia. Para
compensar a falta de confiabilidade dos militares ucranianos, o país
construiu poderosas forças paramilitares desde 2014, incluindo, por
exemplo, o notório regimento Azov. Mas há muitos mais.
Há um grande número desses grupos que
estão sob o comando da Ucrânia, mas não são formados exclusivamente por
ucranianos. O regimento Azov, por exemplo, é composto por 19
nacionalidades, incluindo franceses, suíços, etc. É uma verdadeira
legião estrangeira. No total, esses grupos de extrema-direita somam
cerca de 100.000 combatentes, segundo a Reuters.
Porque existem tantas organizações paramilitares na Ucrânia?
Em 2015/2016 estive na Ucrânia com a
Nato. A Ucrânia teve um grande problema, eles estavam a ficar sem
soldados, porque o exército ucraniano teve muitas baixas devido a acções
não-combatentes. Eles tiveram baixas devido a suicídios e problemas com
álcool. Tinham dificuldade em encontrar recrutas. Pediram-me para
ajudar por causa da minha experiência com a ONU. Então, eu fui para a
Ucrânia várias vezes.
O ponto principal era que o exército
não tinha credibilidade entre a população e nem dentro das forças
armadas. É por isso que a Ucrânia tem cada vez mais fomentado e
desenvolvido forças paramilitares. São fanáticos movidos pelo extremismo
de direita.
De onde vem esse extremismo de direita?
As origens remontam à década de 1930.
Após os anos de fome extrema, que entrou para a história como o
Holodomor,* surgiu uma resistência ao poder soviético. Para financiar a
modernização da URSS, Stalin confiscou as colheitas, causando fome. O
NKVD, precursor da KGB (que era ao mesmo tempo o Ministério de Assuntos
Internos e Segurança), implementou essa política.
O NKVD foi organizado em bases
territoriais e na Ucrânia havia muitos judeus nos mais altos postos de
comando. Como resultado, tudo se confundiu numa única ideologia: odeio
os comunistas, odeio os russos e odeio os judeus. Os primeiros grupos de
extrema-direita datam dessa época e ainda existem.
Durante a Segunda Guerra Mundial, os
alemães precisavam desses grupos, como a Organização Nacionalista
Ucraniana (OUN) de Stephan Bandera e o Exército Insurgente Ucraniano. Os
nazis usaram essas organizações para lutar na retaguarda soviética. Na
época, as forças do Terceiro Reich eram vistas como libertadoras, como a
2ª Divisão Blindada SS, “Das Reich”, que havia libertado Kharkiv dos
soviéticos em 1943, e ainda é celebrada na Ucrânia hoje.
O epicentro geográfico dessa
resistência de extrema-direita foi em Lvov, hoje Lviv, na antiga
Galícia. Esta região ainda teve a sua “própria” 14ª Divisão SS Panzer
Grenadier “Galitzia”, uma divisão SS totalmente ucraniana.
A OUN, formada durante a Segunda Guerra Mundial, sobreviveu ao período soviético?
Após a Segunda Guerra Mundial, o
inimigo era a União Soviética. A URSS falhou em eliminar completamente
esses movimentos anti-soviéticos durante a guerra. Os Estados Unidos, a
França e a Grã-Bretanha perceberam que a OUN poderia ser útil e
apoiaram-na para lutar contra a URSS com sabotagem e armas. Até ao
início da década de 1960, os insurgentes ucranianos eram apoiados pelo
Ocidente por meio de operações clandestinas, como Aerodinâmica, Valiosa,
Minos, Capacho e outras.
Desde então, a Ucrânia manteve uma
relação estreita com o Ocidente e a Nato. Hoje, é a fraqueza do exército
ucraniano que leva ao uso de tropas fanáticas de direita. Acho que o
termo neonazis não é totalmente correcto, embora tenham ideias muito
semelhantes, adoptam seus símbolos, são violentos e antissemitas,
Qual é o significado dos acordos [de Minsk] no contexto da disputa actual?
Após 2014, dois acordos foram
assinados para pacificar a situação na Ucrânia. É importante entender
isso, porque a quebra desses dois acordos basicamente levou à guerra de
hoje. Desde 2014, supostamente, havia uma solução para o conflito, essa
solução estava nos acordos de Minsk. Em setembro de 2014, os militares
ucranianos não conseguiram lidar com o conflito [no Donbass], mesmo
tendo sido aconselhados pela Nato. Por isso tiveram que se comprometer
com os acordos de Minsk I em setembro de 2014. Foi um acordo entre o
governo ucraniano e representantes das duas autoproclamadas repúblicas
de Donetsk e Lugansk, com garantes europeus e russos.
Como ocorreu o nascimento dessas duas repúblicas?
Para entender, precisamos de voltar
um pouco atrás história. No outono de 2013, a UE pretendia concluir um
acordo comercial e económico com a Ucrânia. A UE ofereceu à Ucrânia uma
garantia de desenvolvimento com subsídios, exportações e importações,
etc. As autoridades ucranianas queriam fechar o negócio. Mas isso tinha
um problema sério, a indústria e a agricultura ucranianas estavam
voltadas para a Rússia. Por exemplo, os ucranianos desenvolviam motores
para aviões russos, não para aviões europeus ou americanos. Assim, a
orientação geral da indústria era para Leste, não Oeste. Em termos de
qualidade, a Ucrânia dificilmente poderia competir com o mercado
europeu. Portanto, as autoridades queriam cooperar com a UE mantendo
relações económicas com a Rússia.
Isso teria sido possível?
Por sua vez, a Rússia não teve
problemas com os planos da Ucrânia. Mas também queria manter as suas
relações económicas com a Ucrânia. Por isso, propôs a criação de um
grupo de trabalho tripartido para elaborar dois acordos: um entre a
Ucrânia e a UE e outro entre a Ucrânia e a Rússia. O objectivo era
cobrir os interesses de todas as partes. Mas foi a União Europeia,
através de [Durão]Barroso, que pediu à Ucrânia que escolhesse entre a
Rússia e a UE. A Ucrânia pediu tempo para pensar numa solução. Depois
disso, a UE e os EUA não jogaram limpo.
Porquê?
A imprensa ocidental titulou: “A
Rússia pressiona a Ucrânia para impedir o tratado com a UE”. Isso não
era verdade. O governo ucraniano continuou a mostrar interesse no
tratado com a UE, mas simplesmente queria mais tempo para considerar
soluções para essa situação complexa. Mas os media
europeus não disseram isso. Nos dias seguintes, extremistas de direita
do oeste do país apareceram na praça Maidan em Kiev. Tudo o que lá
aconteceu com a aprovação e apoio do Ocidente é realmente terrível.
O que aconteceu depois de Yanukovich, o presidente democraticamente eleito, ter sido derrubado?
O novo governo interino – surgido do
golpe nacionalista de extrema direita – como seu primeiro acto oficial,
mudou a lei linguística na Ucrânia. Isso mostra que o golpe não teve
nada a ver com democracia, mas foi produto dos ultranacionalistas que
organizaram o levantamento. Essa mudança legal desencadeou uma
tempestade nas regiões de língua russa.
Grandes manifestações foram
organizadas em todas as cidades do sul de língua russa, em Odessa,
Mariupol, Donetsk, Luhansk, e na Crimeia, etc. As autoridades ucranianas
reagiram brutalmente, reprimindo com o exército. Repúblicas autónomas
foram brevemente proclamadas em Odessa, Kharkov, Dnepropetrovsk, Lugansk
e Donetsk. Isto foi reprimido com extrema brutalidade e, finalmente,
duas permaneceram: Donetsk e Lugansk, que se proclamaram repúblicas
autónomas.
Como legitimaram o seu status?
Fizeram referendos em maio de 2014,
para ter autonomia, e isso é muito, muito importante. Se você olhar para
a nossa comunicação social nos últimos meses, só se fala de
“separatistas”. Mas é mentira: os media
ocidentais sempre falaram de separatistas, mas isso é falso, a
autonomia dentro da Ucrânia foi claramente mencionada nos referendos.
Essas repúblicas queriam algum tipo de solução suíça, por assim dizer.
Depois de o povo ter votado favoravelmente pela autonomia, as
autoridades pediram o reconhecimento das repúblicas pela Rússia, mas o
governo Putin recusou.
A Crimeia também está relacionada a isso?
Habitualmente, esquecemos que a
Crimeia era independente, mesmo antes da Ucrânia se tornar independente.
Em janeiro de 1991, enquanto a União Soviética ainda existia, a Crimeia
realizou um referendo que foi gerido a partir de Moscovo e não de Kiev.
Assim, tornou-se uma República Socialista Soviética Autónoma. A Ucrânia
só realizou o seu próprio referendo de independência seis meses depois,
em agosto de 1991.
Na época, a Crimeia não era
considerada parte da Ucrânia. Mas a Ucrânia não aceitou isso. Entre 1991
e 2014 houve uma luta constante entre as duas entidades. A Crimeia
tinha a sua própria constituição com as suas próprias autoridades. Em
1995, encorajada pelo Memorando de Budapeste [sobre Garantias de
Segurança, 1994], a Ucrânia derrubou o governo da Crimeia pela força
militar e revogou a sua constituição. Mas isso nunca é mencionado, pois
lançaria uma luz completamente diferente sobre o desenvolvimento
actual.
O que queria o povo da Crimeia?
De facto, o povo da Crimeia
considerava-se independente. Os decretos impostos a partir de Kiev
estavam em total contradição com o referendo de 1991 e explicam porque a
Crimeia realizou um novo referendo em 2014, depois de o novo governo
ultranacionalista chegar ao poder na Ucrânia. O resultado foi muito
semelhante ao de 30 anos antes.
Após o referendo, a Crimeia pediu
para se juntar à Federação Russa. Não foi a Rússia que conquistou a
Crimeia, foi o povo que autorizou as suas autoridades a pedir à Rússia
que os acolhesse. No tratado de amizade entre Rússia e Ucrânia assinado
em 1997, a Ucrânia garantiu a diversidade cultural das minorias no país.
Quando a língua russa foi banida como língua oficial em fevereiro de
2014, esse tratado estava a ser violado.
As pessoas que não sabem de tudo isso correm o risco de julgar mal a situação?
Acho que sim, também nos Acordos de
Minsk foi garantida a autonomia das repúblicas do Donbass. Eram
fiadores, do lado ucraniano, Alemanha e França e, do lado das
autoproclamadas repúblicas de Donetsk e Lugansk, a Rússia. Todos
desempenharam esse papel no âmbito da OSCE. A UE não estava envolvida,
era uma questão da OSCE. Imediatamente após os Acordos de Minsk I, a
Ucrânia lançou uma operação contra as duas repúblicas autónomas. O
governo ucraniano ignorou completamente o acordo que acabara de assinar.
O exército ucraniano sofreu outra derrota total em Debaltsevo. Foi um
colapso.
Isso também aconteceu com o apoio da Nato?
Sim, e perguntamo-nos o que é que os
conselheiros militares da OTAN fizeram porque as forças armadas dos
rebeldes derrotaram totalmente o exército ucraniano. Isso levou a um
segundo acordo, Minsk II, assinado em fevereiro de 2015, que serviu de
base para uma resolução do Conselho de Segurança da ONU. Por
conseguinte, este acordo era vinculativo ao abrigo do direito
internacional e tinha de ser implementado.
Isso também foi monitorizado pela ONU?
Não, ninguém se importou e, além da
Rússia, ninguém exigiu o cumprimento do acordo de Minsk II. De repente,
só se falava no “formato Normandia”. Mas isso não fazia sentido. Este
“formato” nasceu durante a celebração do Dia D em junho de 2014. Foram
convidados ex-protagonistas da Segunda Guerra Mundial, chefes de estado
aliados, bem como Alemanha e Ucrânia. No formato da Normandia, apenas os
chefes de estado estavam representados, as repúblicas autónomas
obviamente não estavam presentes. A Ucrânia nunca quis falar com os
representantes de Luhansk e Donetsk. Mas se lermos os acordos de Minsk,
vemos imediatamente que um referendo deveria ter sido realizado para que
a constituição ucraniana pudesse ser alterada (no sentido federal).
Este processo interno foi impedido pelo governo ucraniano.
Mas, os ucranianos também assinaram o acordo…
Sim, mas a Ucrânia decidiu culpar a
Rússia pelo seu problema interno. Os ucranianos alegaram que a Rússia
havia atacado a Ucrânia e essa era a fonte dos problemas. Mas, para
todos nós que visitamos o país, ficou claro que era um problema
doméstico. Desde 2014, os monitores da OSCE nunca viram unidades
militares russas. Ambos os acordos são muito claros e precisos: a
solução deve ser encontrada na Ucrânia. Tratava-se de conceder uma certa
autonomia dentro do país, e só a Ucrânia poderia resolver esse
problema. Não tinha nada a ver com a Rússia.
Para isso, era necessário um ajuste na constituição?
Sim, exactamente, mas não foi feito. A
Ucrânia não tomou quaisquer medidas a este respeito. Os membros do
Conselho de Segurança da ONU também não se comprometeram.
Como se comportou a Rússia?
A posição da Rússia foi sempre a
mesma. Queria que os Acordos de Minsk fossem implementados. Nunca mudou
de posição em oito anos. Durante esses oito anos houve várias violações
de fronteiras, bombardeios de artilharia, etc., mas a Rússia nunca
questionou o cumprimento dos acordos.
Como procedeu a Ucrânia?
A Ucrânia promulgou uma lei no início
de julho do ano passado. Era uma lei que outorga direitos diferentes
aos cidadãos dependendo de sua origem étnica. Essa legislação lembra
muito as Leis Raciais de Nuremberg de 1935. Apenas os verdadeiros
ucranianos têm direitos plenos, enquanto outros têm direitos limitados.
Logo em seguida, Putin escreveu um
artigo explicando a génese histórica da Ucrânia. Ele criticou a
distinção feita entre ucranianos étnicos e russos. Escreveu o artigo em
resposta a essa lei. Mas, na Europa, isso foi interpretado como
significando que ele não reconhecia a Ucrânia como um estado, e que o
seu artigo procurava justificar uma possível anexação da Ucrânia. No
Ocidente, as pessoas acreditam nisso e podem ser contadas pelos dedos de
uma mão as que leram o artigo de Putin. É óbvio que no Ocidente o
objectivo era dar uma imagem de Putin o mais negativa possível. Eu li o
artigo, faz todo o sentido.
O que esperavam os russos de Putin?
Há muitos russos na Ucrânia. Putin
tinha que dizer alguma coisa. Não teria sido correcto que o seu povo
(também do ponto de vista do direito internacional) não dissesse nada
diante de uma lei discriminatória contra os russos ucranianos. Todos
esses pequenos detalhes são uma parte importante do conflito, caso
contrário não entendemos o que está a acontecer. Esta é a única maneira
de colocar o comportamento de Putin em perspectiva e ver os mecanismos
que provocaram a guerra. Não posso dizer se Putin é bom ou mau. Mas o
julgamento que fazemos dele no Ocidente é claramente baseado em
elementos falsos.
O que acha da reacção da Suíça, com o fim da neutralidade?
É um desastre. A Rússia elaborou uma
lista de 48 “estados hostis”, e a Suíça também está nela. Esta é
realmente uma mudança de época, mas pela qual a própria Suíça é
responsável. A Suíça sempre foi “o personagem do meio”. Facilitámos o
diálogo com todos os Estados e tivemos a coragem de estar “no meio”. Há
uma histeria em relação às sanções. A Rússia está muito bem preparada
para esta situação. Vai sofrer, mas está preparada para aguentar o
impacto. No entanto, o princípio das sanções é totalmente errado. Hoje,
as sanções substituíram a diplomacia.
Vimos isso com a Venezuela, com Cuba,
Iraque, Irão, etc. Esses estados não fizeram nada além de ter uma
política que não agrada aos EUA. Esse foi o seu “erro” fatal. Quando
vejo os atletas com deficiência suspensos dos Jogos Paralímpicos, fico
sem palavras. É totalmente descabido. Afecta pessoas individuais, é
simplesmente perverso. É tão cruel como quando o ministro dos Negócios
Estrangeiros francês disse que o povo russo deve sofrer sanções. Quem
diz isso, a meu ver, não tem honradez. Não há nada de positivo em
começar uma guerra, mas reagir assim é simplesmente vergonhoso.
O que pensa quando as pessoas se manifestam contra a guerra na Ucrânia?
Pergunto-me: o que torna a guerra na
Ucrânia pior do que a guerra contra o Iraque, Iémen, Síria ou Líbia?
Nesses casos, sabemos que não houve sanções contra o agressor, os
Estados Unidos. Quem se manifesta pelo Iémen? Quem se manifestou pela
Líbia, quem se manifestou pelo Afeganistão? Não sabemos por que é que os
Estados Unidos estavam no Afeganistão. Sei de fontes de inteligência
que nunca houve uma indicação clara de que o Afeganistão ou Osama bin
Laden estivessem envolvidos nos ataques de 11 de setembro, mas mesmo
assim fomos à guerra no Afeganistão.
Porquê?
Em 12 de setembro de 2001, logo após
os ataques terroristas, os Estados Unidos decidiram retaliar e
bombardearam o Afeganistão. O chefe do Estado-Maior da Força Aérea dos
EUA disse que não havia alvos suficientes no Afeganistão. Ao que o
secretário de Defesa respondeu: “Se não tivermos alvos suficientes no
Afeganistão, vamos bombardear o Iraque”. Eu não inventei isso, existem
fontes, documentos e pessoas que estavam lá. Esta é a realidade, mas a
propaganda e a manipulação fazem-nos inclinar permanentemente para o
lado “certo”.
Das suas respostas, deduz-se que o Ocidente tem atirado lenha para
a fogueira e provocado a Rússia há muito tempo. No entanto, essas
provocações raramente são relatadas na nossa comunicação social e Putin é
retratado como um belicista, um monstro…
O meu avô era francês, foi soldado na
Primeira Guerra Mundial. Ele contou-me muitas vezes como essa guerra
começou: foi o produto de uma estimulação da histeria em massa. A
histeria, manipulação e comportamento impensado dos políticos ocidentais
são muito semelhantes ao que aconteceu em 1914 e estou muito preocupado
com isso. Quando vejo como o nosso país neutro já não é capaz de
assumir uma posição independente da UE e dos EUA, fico envergonhado.
Precisamos de ter a cabeça clara, racional e conhecer os factos por trás
da campanha dos media. Essa é a única maneira de a Suíça ter uma política de paz razoável.
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Jacques Baud é mestre em Econometria e
pós-graduado em Segurança Internacional pelo Instituto de Relações
Internacionais de Genebra. Foi Coronel do Exército Suíço. Trabalhou para
o Serviço Suíço de Inteligência Estratégica. Foi consultor para a
segurança de campos de refugiados no leste do Zaire durante a guerra do
Ruanda (ACNUR-Zaire/Congo, 1995-1996). Trabalhou para o DPKO
(Departamento de Operações de Manutenção da Paz) das Nações Unidas em
Nova Iorque (1997-99). Fundou o Centro Internacional de Desminagem
Humanitária em Genebra (CIGHD) e o Sistema de Gestão de Informação para
Desminagem (IMSMA).
7 Maio 2022
(Tradução: Mudar de Vida, a partir da versão em castelhano publicada em Observatorio de la Crisis)
Via "mudardevida.net"
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A Chispa! por não concordar com a opinião de Jacques Baud sobre a chamada politica de "confisco das colheitas" para "financiar a modernização da URSS" chama atenção dos seus leitores para os verdadeiros factos que estiveram na base que originou a fome em 1932:
*Embora
seja verdade que houve fome em 1932, (ela não foi apenas na Ucrânia, mas também na Rússia Soviética e no Cazaquistão) as razões para isso não têm nada a
ver com as que o autor do texto Jacques Baud erradamente indica, como a que os nacionalistas ucranianos apontam para fazer a sua propaganda mentirosa e reacionária de alienação de massas, com o objectivo de dividir e semear ódio entre as classes trabalhadoras e os povos irmãos da Ucrânia e da Rússia. A verdade dos factos não tem nada a ver com qualquer politica económica de "confisco das colheitas para financiar a
modernização da URSS", com que se pretende atacar a politica soviética e particularmente Staline, mas como o prova vários historiadores, particularmente o historiador Mark Tauger - que dedicou sua vida profissional a pesquisar a agricultura e a fome soviética - ele mostra que as razões da fome se devem a uma combinação de factores: secas em algumas áreas,
chuvas fortes em outras, pragas de mofo, ferrugem, insetos e roedores. E, claro, a luta contra os latifundiários do campo, que sabotavam a produção.