quarta-feira, 27 de setembro de 2023

FINLÂNDIA E GRÉCIA A CLASSE TRABALHADORA FAZ GREVE E MANIFESTAÇÔES CONTRA A OFENSIVA ANTI-LABORAL DOS GOVERNOS CAPITALISTAS.

 "Como podemos ver, os trabalhadores finlandeses não acreditam firmemente nos mitos sobre o “estado de bem-estar social” e resolvem os conflitos laborais não com a ajuda de apelos chorosos às autoridades governamentais, mas como resultado de uma onda de protestos, greves de solidariedade e pressão pública."

 
 

A associação sindical central finlandesa SAK anunciou uma série de protestos. Eles acontecerão durante três semanas em todo o país, três dias por semana. Podemos falar de greves curtas, marchas e outros protestos.

FINLÂNDIA ESTÁ EM GREVE NOVAMENTE

Anteriormente, o governo de direita de Petteri Orpo introduziu uma série de pontos no programa de governo que agravaram significativamente a situação dos trabalhadores: simplificação do despedimento, alteração das regras de pagamento de licenças por doença e vários outros. O governo também está a restringir o direito dos trabalhadores à greve e a reduzir os subsídios de desemprego relacionados com os rendimentos.

Os sindicatos finlandeses afirmam que os cortes de despesas planeados pelo governo visam apenas os trabalhadores assalariados. Ou seja, eles têm um caráter puramente de classe. Os líderes sindicais também estão preocupados com o facto de o governo estar a minar os acordos colectivos que são vinculativos para todos.

O comunicado de imprensa afirma que as medidas planeadas são um grito de ajuda dos trabalhadores finlandeses: “Esta é a nossa forma de protestar contra os cortes nos benefícios sociais e o agravamento das condições de trabalho planeados pelo governo Orpo-Purra”. E a presidente do sindicato dos eletricistas, Annika Renni-Sallinen, diz:

– Há mais trabalhadores a tempo parcial do que nunca. Por exemplo, metade dos empregos de vendedores e empregados de mesa são a tempo parcial... Estes cortes governamentais e os pedidos de trabalho a tempo inteiro são algo que não está a ser oferecido. O dinheiro economizado é usado para reduzir os impostos sobre os rendimentos elevados. Ninguém pode aceitar tal atrevimento.

O Sindicato dos Trabalhadores do Setor Público e da Assistência Social JHL, o Sindicato dos Eletricistas Finlandeses Sähköliitto, o Sindicato da Indústria Teollisuusliitto e o Sindicato dos Trabalhadores dos Serviços PAM já anunciaram a sua participação nos protestos. Em particular, o Sindicato da Indústria informou que marchas de protesto aconteceriam na terça-feira em empresas no norte de Pohjanmaa, Kainuu e Lapônia. O sindicato dos eletricistas também está organizando greves de uma hora em 18 usinas hidrelétricas de propriedade da Kemijoki na serraria da Stora Enso.

Aqui devemos lembrar que na Rússia moderna o direito à greve está consagrado no artigo 409 do Código do Trabalho da Federação Russa. Contudo, na realidade é muito difícil realizar uma greve legal. Se nos voltarmos para as estatísticas, então, de acordo com estimativas do projecto público  “Zastrkom”,  em 2018, ocorreram 42 greves na Rússia, com uma população de 140 milhões. E na Finlândia, com uma população de 5 milhões, foram registrados 95 casos de greves, nas quais participaram 160 mil pessoas.

Como podemos ver, os trabalhadores finlandeses não acreditam firmemente nos mitos sobre o “estado de bem-estar social” e resolvem os conflitos laborais não com a ajuda de apelos chorosos às autoridades governamentais, mas como resultado de uma onda de protestos, greves de solidariedade e pressão pública.

Alexei Alekin

 

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TAMBÈM NA GRÉCIA CONTRA A OFENSIVA CAPITALISTA DO GOVERNO,HOUVE:

 GREVE E Manifestações em massa em todo o país contra a lei antitrabalhista

Milhares de grevistas manifestaram-se em 21/09/23 em Atenas, Salónica e dezenas de outras cidades na Grécia, recusando-se a aceitar a escravatura moderna, não importa quantas leis e disposições sejam introduzidas pelo Estado, por todos os governos ao longo dos anos e pelos empregadores em um esforço para consolidá-lo. Os grevistas do sector privado e público afirmaram as suas justas reivindicações por direitos contemporâneos, por trabalho e horários de trabalho estáveis, por jornada de trabalho de 7 horas, 5 dias por semana, por acordos colectivos de trabalho com aumentos de salários.

Os trabalhadores e os sindicatos inundaram Atenas com a sua manifestação de massas, sublinhando que “a jornada de 8 horas foi conquistada com as lutas e o sangue dos trabalhadores”, desafiando a intimidação dos empregadores, a calúnia do governo sobre as lutas dos trabalhadores e o silêncio dos comprometidos. liderança dos sindicatos.

Além de condenar o projecto de lei – monstruosidade, a manifestação transformou-se num espaço de expressão de raiva e indignação de dezenas de milhares de trabalhadores e jovens, da população trabalhadora que por um lado vê os seus rendimentos serem consumidos e por outro por outro lado, são obrigados pelo governo a trabalhar 13 horas por dia; que, por um lado, trabalham como cães e, por outro, são vítimas de um Estado completamente hostil e sofrem com a política criminosa que se baseia na noção de custo versus benefício.

Enquanto os trabalhadores se manifestavam fora do parlamento, os deputados do KKE lutavam dentro do parlamento, desmontando o projecto de lei e expondo as grandes mentiras e enganos do governo. Apelaram aos trabalhadores e ao povo para que não mostrassem tolerância à barbárie de hoje e deixaram claro que o KKE continuará com maior determinação a estar na vanguarda da organização da luta dos trabalhadores e do povo para cancelar na prática a monstruosidade anti-laboral. e fortalecer o contra-ataque do povo contra a barbárie capitalista.


Dimitris Koutsoumbas, GS do CC do KKE, participou no comício de greve em Syntagma e fez a seguinte declaração:

“Hoje, o movimento trabalhista-sindical em todo o país deu uma resposta contundente ao governo, ao estado, aos empregadores e à liderança comprometida da Confederação Geral dos Trabalhadores Gregos (GSEE), desencadeada pela lei anti-laboral – monstruosidade que é apresentado no Parlamento.

Além disso, deram uma resposta contundente à grande mentira e engano do governo sobre a progressão salarial de três em três anos, bem como à sua política criminosa que destrói as vidas, propriedades e direitos do povo grego com base na noção de custo versus benefício, servindo os lucros do alguns.

É por isso que a única solução é: Todos por um e um por todos”.

Atenas

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

O jardim de Borrell floresce: lucros astronômicos de negócios com salários em queda

 "O flash sobre a realidade suíça encontra semelhanças e constantes em toda a Europa. A tendência é continental (e até global): a queda dos salários reais em paralelo com o aumento vertiginoso dos lucros das grandes empresas e dos grupos multinacionais. Tudo isto acompanhado pelo mentiroso discurso empresarial de que “os salários não podem ser aumentados devido à crise”. A grande economia não só continua a fazer fortunas; O discurso “cultural” hegemônico do possível e do impossível também é atribuído quando se discute a distribuição de renda."


O jardim de Borrell floresce: lucros astronômicos de negócios com salários em queda.

25 de setembro de 2023

Sergio Ferrari * .— Cerca de 20 mil manifestantes saíram às ruas de Berna, na Suíça, no sábado, 16 de setembro, para exigir reajustes salariais e pensões. Foi um dos protestos sindicais mais movimentados dos últimos anos neste país.

Antecipo também uma mobilização nacional convocada para sábado, 30 de Setembro, pela Aliança Climática – 100 organizações ambientais, de desenvolvimento e de solidariedade, entre outras – para exigir medidas governamentais eficazes e imediatas contra o aquecimento global. Os sindicatos já anunciaram a sua presença, solidarizando-se assim com as organizações ambientalistas, que, por sua vez, apoiaram a marcha do dia 16 de setembro

Neste outono “quente” suíço, o movimento sindical, as organizações sociais e os partidos progressistas (os Socialistas, os Verdes e a esquerda extraparlamentar) relançam assim a mobilização nas ruas para reinstalar a justiça social e climática no centro da agenda política . Tudo isto a apenas três semanas das eleições legislativas de 22 de outubro, que redefinirão as quotas de poder institucional para os próximos quatro anos.

Redistribuir rendimentos

De acordo com o Sindicato Sindical Suíço (USS) – a maior confederação nacional de trabalhadores, com 20 sindicatos e 370.000 membros e principal organizador da mobilização de 16 de Setembro – o rendimento real dos trabalhadores na Suíça caiu em 2023 pelo terceiro ano consecutivo. O USS afirma que a vida fica mais cara enquanto os salários e as pensões perdem o seu valor. E que é difícil arcar com as despesas diárias, às quais se somam os aumentos previstos ou já anunciados de rendas, seguros de saúde e custos de eletricidade.

Os rendimentos (salários e pensões) também devem aumentar. “Se não for agora, quando?”, perguntou Pierre Yves Maillard, presidente do USS, no discurso de encerramento na Praça Federal, em frente às sedes do Governo e do Legislativo. E observou que “o desemprego está no seu nível mais baixo, mas os lucros e os dividendos estão no seu nível mais alto. Numa tal situação, os salários devem adaptar-se ao nível de preços. É hora de eles avançarem!”

Esta exigência pública às portas do Parlamento Nacional pôs fim a uma manifestação que percorreu o centro histórico da capital suíça e que os organizadores descreveram como muito bem sucedida. De acordo com a proporção populacional, esta mobilização corresponderia a uma manifestação de 120 mil pessoas na Argentina ou Espanha, 200 mil na França ou 300 mil no México.

Situação europeia semelhante

A realidade salarial suíça não é exceção. Coincide, como tendência, com a de quase todos os países europeus onde a explosão da inflação e o aumento dos impostos (em muitos casos) generalizam a perda de salários reais dos trabalhadores.

No final de junho, o jornal espanhol  El País  noticiava uma queda significativa do poder de compra daquele país ibérico face a 2008 ( https://elpais.com/economia/2023-07-20/el-salario-medio-in- Espanha-perde-4-de-poder-de-compra-em-2022-devido à inflação.html ).

A explicação deles é que, apesar do aumento significativo dos salários devido ao aumento dos preços em 2022, o salário médio registou uma perda de poder de compra. Se comparado com 2008 – ano de referência devido à grande crise financeira – “o salário espanhol perde 7% do poder de compra”.

Um estudo de julho da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE, ou OCDE em inglês) confirma uma queda dos salários reais nos países europeus também no primeiro trimestre de 2023, oscilando entre -15,6% na Hungria e -0,8% no Luxemburgo. Entre as potências europeias, -7,3% é registado na Itália, -3,3% na Alemanha, -2,9 na Grã-Bretanha e -1,8% na França. As únicas exceções, segundo a OCDE, são os Países Baixos, que conseguiram aumentar os salários reais em 0,4%, e a Bélgica, a grande exceção, com 2,9% ( https://oecd.org/employment-outlook/2023/ ).

Aqueles que ganham e aqueles que perdem

No final de 2022, os rendimentos dos gestores, diretores e executivos de 37 das principais empresas suíças – algumas das quais com perfil multinacional – eram, em média, 139 vezes superiores aos seus salários mais baixos.

É o que revela uma investigação detalhada publicada no final de agosto pelo sindicato UNIA, o maior do país, com 175 mil membros ( https://www.unia.ch/fr). O estudo também compara as distribuições de lucros entre os accionistas com a evolução dos salários reais e coloca os resultados no contexto da evolução económica geral. Confirma, como tendência, que, nas dez empresas com maior diferença salarial interna, longe de reduzir esta diferença, esta continua a aumentar. Os lucros das empresas e as distribuições de capital entre os acionistas permanecem num nível muito elevado, quase como os valores recorde de 2021. Por outro lado, observa que na Suíça os salários mais baixos caíram em 2022. Embora em termos nominais tenham aumentado quase 1%. , que coincide aproximadamente com o crescimento da produtividade, ainda perderam um valor real, ou de compra, de quase 2% devido ao impacto direto da inflação (https://www.unia.ch/fileadmin/user_upload/Arbeitswelt-AZ/Lohnschere/2023_Unia_%C3%89tude-sur-les-%C3%A9carts-salariaux_Fr.pdf ).

De acordo com esta investigação, a multinacional farmacêutica Roche mantém “o glorioso primeiro lugar pela quarta vez consecutiva” em termos da maior disparidade salarial interna. Severin Schwan, seu gerente geral, recebe um salário anual de mais de 15 milhões de francos suíços (US$ 16.680.000), o que equivale a 307 vezes o salário mais baixo daquela empresa.

Dito de outra forma: um funcionário da Roche com o salário mais baixo teria que trabalhar mais de 25 anos para ganhar um salário mensal de Schwan, que até 2022 também ocupou um lugar no conselho de administração do extinto Bank Credit Suisse.

Ralph Hamers, presidente do Sindicato dos Bancos Suíços (UBS), e Vasant Narasimhan, presidente da Novartis, ocupam o segundo e terceiro lugares na escala dos executivos mais bem pagos, com salários anuais de 12.640.000 e 10.960.000 francos suíços, respetivamente.

Segundo o estudo da UNIA, o UBS ocupa a segunda posição na escala de disparidades salariais, e a energética ABB, a terceira. Seguem-se a Nestlé (diferença salarial de 202 vezes entre o diretor e os funcionários com salários mais baixos), Logitech (198), Novartis (190), Alcon (187) e Zúrich Seguros (185). Entre as 37 empresas avaliadas, a maioria cotada em Bolsa, estão nomes de classe mundial como Swatch (disparidade salarial de 165 vezes), Holcim (154), Swiss Re (122), Julius Bär (116) e Adecco (91), para citar apenas alguns.

Salários baixos financiam lucros astronômicos

Não há espaço para argumentos falsos. A tendência decrescente dos salários nas grandes empresas suíças, especialmente entre os trabalhadores menos remunerados, não corresponde aos seus resultados económicos bem-sucedidos. Muito pelo contrário: em 2022, os acionistas das 37 empresas analisadas receberam um total de quase 76 mil milhões de francos suíços (cerca de 84.523 milhões de dólares). Na liderança e, como sempre, Nestlé, Novartis, Roche e UBS, com distribuições de lucros superiores a 50.000 milhões de francos (cerca de 55.607 milhões de dólares). Estas quatro empresas estão entre as dez primeiras com as maiores disparidades salariais internas. Segundo o estudo da UNIA, eles “comportam-se de forma vergonhosa, distribuindo unilateralmente os seus lucros através de distribuições de capital em vez de aumentarem salários”.

Esta investigação conclui que, apesar da pandemia de Covid 19, dos problemas na cadeia de abastecimento, da inflação e da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, os lucros das empresas e as distribuições de capital aos acionistas continuaram a aumentar nos últimos anos. Em resumo: “As empresas com grandes disparidades salariais também se caracterizam por distribuições especialmente elevadas entre os acionistas, embora pudessem facilmente ajustar os salários mais baixos para um nível decente.”

Os números falam por si. E a investigação explica como os enormes e crescentes benefícios de tais grupos são distribuídos injustamente. Os gestores continuam a receber bónus absurdamente elevados e os accionistas beneficiam através de dividendos generosos e prémios em acções.

Dez anos depois de uma votação popular que significou uma vitória para a Iniciativa contra a Remuneração Abusiva, que procurava precisamente coibir salários e recompensas corporativas exorbitantes, o estudo da UNIA conclui que, em retrospectiva, esta iniciativa revelou-se uma ilusão ().

A UNIA insiste que são os trabalhadores que pagam o preço desta má distribuição global de rendimentos na sociedade suíça. Enquanto os gestores e os accionistas acumulam lucros, os trabalhadores têm de aceitar cortes nos salários reais. Para justificar esta desigualdade, os empresários não hesitam em argumentar que se trata de um contexto económico difícil, com a consequente redução das margens de lucro. No entanto, o estudo salarial refuta estes argumentos com base no facto de as empresas investigadas obterem lucros astronómicos, o que lhes poderia permitir pagar salários dignos e actualizados a todos os seus empregados.

Pobreza crescente

Em Maio passado, o Gabinete Federal de Estatística (OFS) constatou que, em 2021, 5% da população suíça teve de prescindir de certos “bens, serviços e actividades sociais importantes” devido à falta de dinheiro. Por exemplo: 7,9% não conseguiam comprar roupas nem comer ou beber com os amigos uma vez por mês, como costumavam fazer. Embora este indicador médio seja inferior ao do resto da Europa, onde o valor atinge os 11,9%, a tendência na Suíça é também de aumento permanente, passando de 8,5% em 2020 para 8,7% em 2021.

A realidade suíça revela que cerca de 745.000 pessoas (de um total de 8.703.000) vivem com rendimentos abaixo da linha da pobreza, 2.289 francos suíços (cerca de 2.534 dólares) por mês para uma única pessoa, e 3.989 francos suíços (cerca de 4.434 dólares) mensais para dois adultos. e dois filhos. Os estrangeiros, os solteiros, as famílias chefiadas por um único adulto ou aqueles que não possuem formação pós-escolar ou emprego permanente são os mais afetados.

Embora noutros países estes números possam parecer enormes, a realidade suíça é diferente. Num país onde uma pessoa precisa de cerca de 400 francos (444 dólares) por mês para seguro de saúde; pelo menos 1.300 francos (US$ 1.445) para o aluguel de um pequeno apartamento de um cômodo (ou no máximo dois quartos) e também deve reservar dois meses de salário para impostos federais, cantonais e municipais, números que determinam a situação de pobreza são extremamente baixos. Para este setor, o atendimento odontológico é, por exemplo, um artigo de luxo inacessível. Como pagar 220 francos (US$ 244) por uma consulta de higiene dental, 600 francos (US$ 660) por uma extração dentária ou 4.500 francos (US$ 4.950) por um implante?

A Caritas Suíça, num documento recente, sustenta que a pobreza aumentou “significativa e continuamente” desde 2014, e que a procura de alimentos e produtos de uso diário nas suas “lojas de caridade” abertas à população mais pobre continua a aumentar. Na terceira semana de setembro, Hubert Péquignot, chefe daquela ONG em Neuchâtel, antecipou que cerca de um quarto da população daquele cantão “poderia encontrar-se em graves dificuldades financeiras no próximo ano se nada for feito para compensar o aumento dos prémios de seguro de saúde”. ” ( https://lecourrier.ch/2023/09/17/un-quart-de-la-population-en-difficulte/ ). Em declarações ao jornal  Le Courrier, Péquignot explica que uma das variáveis ​​essenciais do orçamento é a alimentação. E afirma que, embora as pessoas continuem a comer porque não vivem em situação de guerra ou fome, no entanto, a qualidade do que consomem está a perder-se: “Alimentos muito simples e repetitivos, como a massa. Alguns desistem de um pedaço de queijo.” E lembre-se que 20% da população desse cantão é pobre ou corre o risco de cair na pobreza. Devido às repercussões da pandemia e ao elevado custo de vida, este nível aumentará nos próximos anos. “Com o já previsto aumento de 10% a 12% nos prémios de seguros de saúde, 20% a 30% da população terá dificuldades em progredir. A situação vai ser muito complicada no curtíssimo prazo”, conclui o diretor da Cáritas.

O flash sobre a realidade suíça encontra semelhanças e constantes em toda a Europa. A tendência é continental (e até global): a queda dos salários reais em paralelo com o aumento vertiginoso dos lucros das grandes empresas e dos grupos multinacionais. Tudo isto acompanhado pelo mentiroso discurso empresarial de que “os salários não podem ser aumentados devido à crise”. A grande economia não só continua a fazer fortunas; O discurso “cultural” hegemônico do possível e do impossível também é atribuído quando se discute a distribuição de renda.

* de Berna, Suíça

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Karl Marx - Sobre a Questão do Livre-Câmbio


 Esperemos que a lógica do discurso de Karl Marx sobre a "livre concorrência, possa ajudar a esclarecer todos aqueles que se opõem ao multilateralismo capitalista, sobre as vantagens que tal  pode trazer na medida em que as suas contradições tendem a aprofundar-se e a poder dar um novo impulso à luta do proletariado e fazer aproximar a revolução proletária mundial. A Chispa!

 

Karl Marx

7 de Janeiro de 1848

  
Sobre a Questão do Livre-Câmbio

Senhores,

A abolição das leis sobre os cereais na Inglaterra é o maior triunfo que o livre-câmbio alcançou no século XIX. Em todos os países onde os fabricantes falam de livre-câmbio, eles têm principalmente em vista o livre-câmbio dos cereais e das matérias-primas em geral. Sujeitar a direitos protectores os cereais estrangeiros é infame, é especular sobre a fome das populações.

Pão a preços baixos, salários altos, cheap food, high wages, eis o objectivo com o qual os free-traders, na Inglaterra, despenderam milhões; e seu entusiasmo já se estendeu aos seus irmãos do continente. Em geral, se se deseja o livre-câmbio, é para aliviar a condição da classe laboriosa.

Mas, coisa espantosa! O povo, ao qual se quer a toda força proporcionar pão a preços baixos, é muito ingrato. O pão a preços baixos é tão desacreditado na Inglaterra como os governos frouxos o são na França. O povo vê nos homens devotados, num Bowring, num Bright e outros, seus maiores inimigos e os hipócritas mais descarados.

Toda gente sabe que a luta entre os liberais e os democratas é, na Inglaterra, a luta entre free-traders e os cartistas.

Vejamos agora como os free-traders ingleses provaram ao povo os bons sentimentos que os faziam agir.

Eis o que diziam aos operários das fábricas:

O direito cobrado sobre os cereais é um imposto sobre o salário, e este imposto vós o pagais aos senhores territoriais, a estes aristocratas da Idade Média; se vossa situação é de miséria, é por causa dos preços elevados dos gêneros de primeira necessidade.

Os operários perguntavam por sua vez aos fabricantes:

Como se explica que nestes trinta anos, nos quais a nossa indústria teve o seu maior desenvolvimento, nossos salários tenham baixados numa proporção bem maior do que aquela em que se verificou a alta dos preços dos cereais?

O imposto que pagamos aos proprietários territoriais, como pretendeis, representa para o operário apenas três pence (seis soldos) por semana. E entretanto o salário do tecelão manual desceu de 28 shillings por semana a 5 shillings, de 35 francos a 7,25 francos, entre 1815 e 1843; e o salário do tecelão, na oficina automática, foi reduzido de 20 shillings por semana a 8 shillings, de 25 francos a 10 francos, entre 1825 e 1843.

E durante todo esse tempo o imposto que em parte pagamos ao proprietário territorial nunca foi além de três pence. Além disso, em 1834, quando o pão estava muito em conta e o comércio ia muito bem, o que é que dizíeis? Se estais em má situação, é porque tendes muitos filhos, é porque vosso casamento é mais fecundo do que a nossa indústria!

Eis as palavras que nos dirigíeis então; e íeis elaborar as novas leis dos pobres e construir as work-houses, estas bastilhas dos proletários.

E a isso replicavam os fabricantes:

Tendes razão, senhores operários; não é somente o preço do trigo, mas também a concorrência entre os braços que se oferecem que determina o salário.

Pensai bem, entretanto, numa coisa: o nosso solo é constituído apenas de rochedos e de bancos de areia. Imaginais, por acaso, que se poderá produzir trigo num vaso de flores? Assim, se, em vez de prodigalizarmos nosso capital e nosso trabalho num solo completamente estéril, abandonássemos a agricultura para nos dedicar inteiramente à indústria, toda a Europa abandonaria as manufaturas, e a Inglaterra formaria uma só cidade manufatureira, que teria como campo o resto da Europa.

Ao falar deste modo aos seus próprios operários, o fabricante é interpelado pelo pequeno comerciante, que lhe diz:

Se abolirmos as leis sobre os cereais arruinaremos, é verdade, a agricultura, mas não forçaremos por isso os outros países a se abastecerem nas nossas fábricas e a abandonarem as suas.

Que resultará disso? Perderei os fregueses que tenho agora no campo, e o comércio interno perderá seus mercados.

O fabricante, voltando as costas para o operário, responde ao merceeiro:

Quanto a isto, deixai por nossa conta. Uma vez abolido o imposto sobre o trigo, teremos por preços mais baixos trigo do estrangeiro. Em seguida baixaremos os salários, que se, elevarão ao mesmo tempo nos outros países, de onde recebemos os cereais.

Assim, além das vantagens que já temos, teremos ainda a de um salário menor, e, com todas estas vantagens, poderemos muito bem forçar o continente a se abastecer em nosso país.

Entretanto, eis que o rendeiro e o operário agrícola entram na discussão.

E, quanto a nós, qual será a nossa situação? perguntam eles.

Poderíamos aceitar uma sentença de morte contra a agricultura que nos faz viver? Deveríamos consentir em que nos tirem o solo de sob os pés?

Como única resposta, a Anti-corn-law League contentou-se em conferir prêmios aos três melhores trabalhos publicados sobre a influência salutar da abolição das leis dos cereais sobre a indústria inglesa.

Estes prêmios foram conquistados pelos srs. Hope, Morse e Gregg, e seus livros foram divulgados no campo aos milhares de exemplares.

Um dos laureados esforça-se por provar que não é nem o rendeiro nem o assalariado agrícola que perderão com a importação livre dos cereais estrangeiros, mas somente o proprietário territorial.

O rendeiro inglês, exclama ele, não deve temer a abolição das leis sobre os cereais, porque nenhum país poderia, produzir trigo a preços tão baixos e de tão boa qualidade como a Inglaterra.

Assim, mesmo no caso de cair o preço do trigo, isto não vos poderia prejudicar, porque esta baixa atingiria unicamente a renda, que diminuiria, e de nenhum modo o lucro industrial e o salário, que permaneceriam os mesmos.

O segundo laureado, sr. Morse, sustenta, ao contrário, que o preço do trigo subirá em seguida à abolição das leis sobre os cereais. E se dá a um trabalho infinito para demonstrar que os direitos de proteção jamais puderam assegurar ao trigo um preço remunerador.

Em apoio de sua asserção, cita o facto de que todas as vezes que se importou trigo estrangeiro, o preço do trigo subiu consideravelmente na Inglaterra; e quando se importava pouco, ele descia extremamente. O laureado se esquece de que a importação não era a causa do preço elevado, mas que o preço elevado era a causa da importação.

E, em completa oposição ao seu co-laureado, afirma que toda alta nos preços dos cereais redunda em benefício do rendeiro e do operário, e não em benefício do proprietário.

O terceiro laureado, sr. Gregg, que é um grande fabricante e cujo livro se dirige à classe dos grandes rendeiros, não podia argumentar com tais ninharias. Sua linguagem é mais científica.

Convém que as leis sobre os cereais não façam subir a renda senão fazendo subir o preço do trigo e que elas não façam subir o preço do trigo senão impondo ao capital a obrigação de se aplicar a terras de qualidade inferior, sendo óbvia a explicação de tal coisa.

À medida que a população aumenta, e não podendo o trigo estrangeiro entrar no país, é forçoso recorrer-se a terras menos férteis, cuja cultura exige mais despesas, e cujo produto é, em consequência, mais caro.

Sendo o trigo de venda forçada, o preço será regulado necessariamente pelo preço dos produtos das terras mais onerosas. A diferença existente entre estes preços e o custo de produção das melhores terras constitui a renda.

Assim, se, em seguida à abolição das leis sobre os cereais, o preço do trigo e, em consequência, a renda caem, é porque as terras pouco produtivas deixarão de ser cultivadas. Logo, a redução da renda acarretará infalivelmente a ruína de uma parte dos rendeiros.

Estas observações eram necessárias para fazer compreender a linguagem do sr. Gregg.

Os pequenos rendeiros, diz ele, que não conseguirem manter-se na agricultura terão um recurso na indústria. Quanto aos grandes rendeiros, eles devem lucrar com isso, pois ou os proprietários serão forçados a vender-lhes por preços baixos suas terras ou os contratos de arrendamento que farão com eles serão de prazos muito prolongados. E isso lhes permitirá empregar grandes capitais na terra, utilizar máquinas numa escala maior, e assim fazer economia no que diz respeito ao trabalho manual que, aliás, se tornará mais barato com a baixa geral dos salários, consequência imediata das leis sobre os cereais.

O doutor Bowring deu a todos estes argumentos uma consagração religiosa, ao exclamar, numa reunião pública:

Jesus Cristo é o free-trade; o free-trade é Jesus Cristo.

Compreende-se que toda esta hipocrisia não era adequada a fazer com que os operários fossem tentados pelo pão a preços baixos.

Como, aliás, poderiam os operários compreender a filantropia subitânea dos fabricantes, desta gente que ainda estava ocupada no combate ao projecto de lei das dez horas, com o qual se queria reduzir o dia de trabalho dos operários das fábricas de doze para dez horas?

Para vos dar uma ideia da filantropia dos, fabricantes, lembrar-vos-ei, senhores, os regulamentos adotados em todas as fábricas.

Cada fabricante tem para seu uso particular um verdadeiro código com multas estipuladas para todas as faltas voluntárias ou involuntárias. Por exemplo, o operário pagará tanto, se tiver a infelicidade de se sentar numa cadeira, de cochichar, conversar, ou rir, se chegar alguns minutos atrasado, se acontecer partir-se uma peça da máquina, se não entregar os objectos na quantidade desejada, etc., etc. As multas são sempre mais elevadas do que os danos verdadeiramente ocasionados pelo operário. E para que o operário possa mais facilmente incorrer nas penalidades, adianta-se o relógio da fábrica, fornecem-se matérias-primas de má qualidade para que se façam com elas boas peças. O contramestre que não se mostrar capaz de multiplicar os casos de contravenção é destituído de suas funções.

Como vedes, senhores, esta legislação interna é feita para produzir contravenções, e procura-se fazer com que aumente o número de contravenções para que aumente o dinheiro arrecadado. Assim, o fabricante emprega todos os meios para reduzir o salário nominal e para explorar até os acidentes pelos os quais o operário não pode ser responsabilizado.

Estes fabricantes são os mesmos filantropos que quiseram fazer com que os operários acreditassem que eram capazes de fazer despesas enormes, unicamente para melhorar a sua sorte.

Assim, de um lado, eles reduzem da maneira mais mesquinha o salário do operário através dos regulamentos de fábrica, e, de outro, lhe impõem os maiores sacrifícios para fazê-lo subir por meio da Anti-corn-law League.

Eles constroem, com grandes despesas, palácios onde a League estabelecia, de certo modo, sua sede oficial; põem em movimento um exército de missionários que se dirigem para todos os pontos da Inglaterra, a fim de pregarem a religião do livre-câmbio; mandam imprimir e distribuir gratuitamente milhares de brochuras para esclarecerem o operário acerca de seus próprios interesses; despendem somas enormes para tornar a imprensa favorável à sua causa; organizam uma vasta administração para dirigir os movimentos livre-cambistas; e empregam todos os recursos de sua eloquência nos comícios públicos. Foi num desses comícios que um operário exclamou:

"Se os proprietários territoriais vendessem nossos ossos, vós, fabricantes, serieis os primeiros a comprá-los, para atirá-los num moinho a vapor e transformá-los em farinha".

Os operários ingleses compreenderam muito bem a significação da luta entre os proprietários territoriais e os capitalistas industriais. Eles sabem muito bem que se queria rebaixar o preço do pão para rebaixar o salário e que o lucro industrial aumentaria na proporção em que a renda diminuísse.

Ricardo, o apóstolo dos free-traders ingleses, o mais notável dos economistas do nosso século, está, a este respeito, de perfeito acordo com os operários.

Ele escreveu na sua célebre obra sobre economia política:

"Se, em vez de cultivar trigo em nosso país, descobríssemos um novo mercado onde pudéssemos encontrar esse produto por preços mais em conta, os salários deveriam, nesse caso, baixar e os lucros aumentar. A baixa do preço dos produtos da agricultura reduz os salários não somente dos operários agrícolas, mas também de todos os que trabalham nas manufaturas ou estão empregados no comércio."

E não acrediteis, senhores, que se trate de coisa inteiramente indiferente para o operário não receber mais de quatro francos, estando o trigo mais barato, no lugar dos cinco francos que recebia anteriormente.

Seu salário não diminuiu, de qualquer modo, em relação ao lucro? E não é claro que sua posição social piorou em face do capitalismo? Além disso, ele perde ainda concretamente.

Enquanto o preço do trigo estava a preços mais altos, sendo o salário também mais elevado, uma pequena economia feita no consumo do pão bastava para proporcionar ao operário outros proveitos, mas desde o momento que o pão e, em consequência, o salário, baixam, ele não poderá economizar quase nada sobre o pão para a aquisição de outros objectos.

Os operários ingleses fizeram sentir aos free-traders que eles não se deixavam enganar pelas suas ilusões e suas mentiras, e se, apesar disso, se associaram a eles contra os proprietários territoriais, foi para destruir os últimos restos da feudalidade e para ter pela frente um único inimigo. Os operários não se enganaram em seus cálculos, pois os proprietários territoriais, para se vingar dos fabricantes, fizeram causa comum com os operários na aprovação da lei das dez horas, que estes últimos pleiteavam em vão fazia trinta anos, e que foi adoptada imediatamente depois da abolição dos direitos sobre os cereais.

Se, no congresso dos economistas, o doutor Bowring tirou de seu bolso uma longa lista para mostrar todas as partes do boi, o presunto, o toucinho, os frangos, etc., etc., que foram importados na Inglaterra, para serem consumidos, como disse, pelos operários, ele se esqueceu infortunadamente de vos dizer que no mesmo instante os trabalhadores de Manchester e de outras cidades manufatureiras, eram despedidos de seus empregos em consequência da crise que começava.

Em economia política, não se deve jamais, em princípio, agrupar os algarismos referentes a um único ano para deles deduzir leis gerais. Deve-se tomar sempre o termo médio de seis a sete anos — lapso de tempo durante o qual a indústria moderna passa por fases diferentes de prosperidade, superprodução, estagnação, crise e completa seu ciclo fatal.

Sem dúvida, se os preços de todas as mercadorias descerem, e essa é a consequência necessária do livre-câmbio, eu poderia obter com um franco muito mais coisas do que antes. E o franco do operário vale tanto quanto qualquer outro. Logo, o livre-câmbio será muito vantajoso para o operário. Existe somente um pequeno inconveniente: é que o operário, antes de trocar o seu franco por outras mercadorias, havia feito, primeiramente, a troca de seu trabalho por capital. Se nesta troca ele recebesse sempre pelo mesmo trabalho o franco em questão, e se os preços de todas as outras mercadorias descessem, ele ganharia sempre nessa transação. O ponto difícil não está em provar que baixando o preço de todas as mercadorias terei mais mercadorias pelo mesmo dinheiro.

Os economistas consideram sempre o preço do trabalho no momento em que ele é trocado por outras mercadorias. Mas deixam inteiramente de lado o momento em que é efectuada a troca do trabalho por capital.

Quando forem necessárias menos despesas para pôr em movimento a máquina que produz as mercadorias, as coisas indispensáveis para sustentar esta máquina que se chama trabalhador custarão igualmente menos. Se todas as mercadorias estiverem mais baratas, o trabalho, que é também uma mercadoria baixará também de preço, e, como veremos mais tarde, este trabalho — mercadoria baixará proporcionalmente muito mais do que as outras mercadorias. O trabalhador, depois de ter confiado na argumentação dos economistas, verificará que o franco se derreteu em seu bolso, e que não lhe restam senão cinco soldos.

Os economistas dirão então: pois bem, convimos em que a concorrência entre os operários, a qual certamente não terá diminuído sob o regime do livre-câmbio, não tardará a colocar os salários de acordo com o preço baixo das mercadorias. Mas de outro lado o preço baixo das mercadorias determinará o aumento do consumo; o consumo maior exigirá uma maior produção, a qual será seguida de uma maior procura de braços, e a esta maior procura de braços sucederá uma alta de salários.

Toda esta argumentação se reduz ao seguinte: o livre-câmbio aumenta as forças produtivas. Se a indústria cresce, se a riqueza, a força de produção, se, numa palavra, o capital produtivo aumenta a procura de trabalho, o preço do trabalho e, como consequência, o salário, aumentam igualmente. A melhor condição para o operário é o crescimento do capital. E é preciso concordar com isso. Se o capital permanecer estacionário, a indústria não permanecerá somente estacionária, mas declinará, e neste caso, o operário será a primeira vítima. Ele perecerá antes do capitalista. E se o capital continuar a crescer nesse estado de coisas que apontamos, o melhor para o operário, qual será a sua sorte? Perecerá igualmente. O crescimento do capital produtivo implica a acumulação e a concentração dos capitais. A concentração dos capitais leva a uma maior divisão do trabalho e a um maior emprego de máquinas. A maior divisão do trabalho destrói a especialização do trabalho, destrói a especialização do trabalhador, e pondo no lugar desta especialização um trabalho que toda gente pode fazer, ele aumenta a concorrência entre os operários.

Esta concorrência torna-se ainda mais intensa, pois a divisão do trabalho permite ao operário fazer sozinho o trabalho de três pessoas.

As máquinas apresentam o mesmo resultado numa escala muito maior. O crescimento do capital produtivo, forçando os capitalistas industriais a trabalharem com meios sempre crescentes, arruína os pequenos industriais e os atira no proletariado. Em seguida, a taxa do juro diminuindo à medida que os capitais se acumulam, os pequenos rendeiros que não podem mais viver de suas rendas serão forçados a entrar na indústria, para aumentarem depois o número de proletários.

Enfim, quanto mais aumenta o capital produtivo, mais é ele forçado a produzir para um mercado de que não conhece as necessidades, quanto mais a produção precede ao consumo, mais a oferta procura forçar a procura, e, em consequência, as crises aumentam de intensidade e de rapidez. Mas toda crise, por sua vez, acelera a centralização dos capitais e torna maior o número de proletários.

Assim, à medida que o capital produtivo cresce, a concorrência entre os operários aumenta numa proporção muito mais intensa. A retribuição do trabalho diminui para todos, e o fardo do trabalho aumenta para alguns.

Em 1829, havia em Manchester 1.088 fiandeiros trabalhando em 36 fábricas. Em 1841 não havia senão 448, e estes movimentavam 53.353 fusos a mais do que os 1.088 operários de 1829. Se a relação do trabalho manual com o poder produtivo tivesse aumentado proporcionalmente, o número dos operários teria sido de 1848; assim os melhoramentos introduzidos na mecânica tiraram o trabalho a 1.100 operários.

Sabemos com antecedência a resposta dos economistas. Estes homens privados de trabalho, dizem eles, encontrarão outro emprego para seus braços. O senhor doutor Bowring não deixou de reproduzir este argumento no congresso dos economistas, mas também não deixou de refutar a si mesmo.

Em 1833, o doutor Bowring pronunciou um discurso na Câmara dos Comuns, a respeito dos 50.000 tecelões de Londres que fazia muito tempo morriam de inanição, sem conseguirem encontrar esta nova ocupação que os free-traders fazem entrever à distância.

Vamos citar as passagens mais importantes desse discurso do senhor doutor Bowring.

"A miséria dos tecelões manuais, disse ele, é a sorte inevitável de toda espécie de trabalho que se prende facilmente e que é susceptível de ser a cada momento substituída por meios menos dispendiosos. Como, neste caso, a concorrência entre os operários é extremamente grande, a menor diminuição na procura produz uma crise. Os tecelões manuais encontram-se de algum modo colocados nos confins da existência humana. Um passo mais, e a sua existência se tornará impossível. O menor choque bastará para atirá-los ao caminho do aniquilamento. O progresso da mecânica, suprimindo cada vez mais o trabalho manual, ocasiona infalivelmente durante a época de transição muitos sofrimentos temporais. O bem-estar nacional não poderia ser obtido senão à custa de alguns males individuais. Não se avança na indústria senão com prejuízo dos retardatários; e de todas as descobertas, o tear a vapor é a que mais esmaga com seu peso os tecelões manuais. Já em muitos artigos que se faziam a mão, o tecelão foi posto fora de combate, mas ele será vencido em muitas outras coisas que ainda se fazem a mão.


Tenho nas mãos, diz ele mais adiante, uma correspondência do governador geral com a Companhia das Índias Orientais. Esta correspondência diz respeito aos tecelões do distrito de Dacca. O governador diz em suas cartas: há alguns anos a Companhia das Índias Orientais recebia de seis a oito milhões de peças de algodão, que eram fabricadas nos teares do país; a procura caiu gradualmente e foi reduzida a cerca de um milhão de peças.

Neste momento ela cessou quase completamente. Além disso, em 1800, a América do Norte adquirira nas Índias cerca de 800.000 peças de algodão. Em 1830 não adquiriu nem mesmo 4.000. Enfim, em 1800, foi embarcado, para ser transportado para Portugal, um milhão de peças de algodão. Em 1830, Portugal não recebia senão 20.000.

Os relatórios sobre a miséria dos tecelões indianos são terríveis. E qual foi a origem desta miséria?

A presença no mercado dos produtos ingleses; a produção do artigo por meio do tear a vapor. Um número muito grande de tecelões morreu de inanição; o restante passou para outras ocupações, sobretudo para os trabalhos agrícolas. Não saber mudar de ocupação equivalia a uma sentença de morte. Neste momento o distrito de Dacca está repleto de fios e de tecidos ingleses. A musselina de Dacca, famosa no mundo inteiro pela sua beleza e firmeza de sua textura, foi também eclipsada pela concorrência das máquinas inglesas. Em toda a história do comércio, seria talvez difícil encontrar sofrimentos semelhantes aos que tiveram de suportar classes inteiras nas Índias Orientais."

O discurso do senhor doutor Bowring é notável principalmente por serem exactos os factos nele citados, e as frases com que tenta mitigá-los têm o caráter da hipocrisia comum a todos os sermões livre-cambistas. Ele apresenta os operários como meios de produção que precisam ser substituídos por outros meios de produção menos dispendiosos. Finge ver no trabalho de que fala um trabalho inteiramente excepcional, e na máquina que esmagou os tecelões uma máquina igualmente excepcional. Esquece-se de que não há trabalho manual que não seja susceptível de sofrer um dia a sorte da tecelagem.

"O objectivo constante e a tendência de todo aperfeiçoamento no mecanismo são, com efeito, dispensar inteiramente o homem ou diminuir o seu preço por meio da substituição da indústria do operário adulto pela das mulheres e das crianças, ou pelo trabalho do operário inábil o do artesão experimentado. Na maior parte das fiações de teares contínuos, em inglês throstle-mills, a fiação é inteiramente executada por mocinhas de dezesseis anos e de menos idade. A substituição da mull-jenny comum pela mull-jenny automática teve como efeito o desemprego da maior parte dos fiandeiros, sendo mantidos no trabalho as crianças e os adolescentes."

Estas palavras do mais apaixonado dos livre-cambistas, o senhor doutor Ure, servem para completar as confissões do sr. Bowring. O sr. Bowring fala de alguns males individuais, e diz, ao mesmo tempo, que estes males individuais fazem perecer classes inteiras; fala dos sofrimentos passageiros do período de transição, sem contudo procurar dissimular que estes sofrimentos passageiros consistiram para a maior parte dos trabalhadores na passagem da vida para a morte, e para a parte restante no movimento de transição para uma condição inferior àquela na qual se encontravam anteriormente. Se ele diz, mais adiante, que o infortúnio destes operários é inseparável do progresso da indústria e necessário ao bem-estar nacional, ele diz simplesmente que o bem-estar da classe burguesa tem como condição necessária a desgraça da classe laboriosa.

Toda a consolação que o sr. Bowring pródiga aos operários que perecem, e, em geral, toda a doutrina de compensação que os free-traders estabelecem, reduz-se ao seguinte:

Vós, milhares de operários que definhais, não vos desoleis. Podeis morrer com toda a tranquilidade. Vossa classe não perecerá. Ela será sempre bastante numerosa para que o capital a possa dizimar, sem que tenha de recear o seu extermínio. Aliás, como havíeis de querer que o capital encontrasse uma aplicação útil, se ele não tivesse o cuidado de se proporcionar sempre a matéria explorável, os operários, para os explorar de novo?

E também, por que apresentar como problema a ser resolvido a influência que a efetivação do livre-câmbio exercerá sobre a situação da classe operária? Todas as leis que os economistas expuseram, desde Quesnay até Ricardo, foram estabelecidas na suposição de que os entraves que ainda dificultam a liberdade comercial deixaram de existir. Estas leis se confirmam à medida que o livre-câmbio se torna uma realidade.

A primeira destas leis é que a concorrência reduz o preço de toda mercadoria ao mínimo de seu custo de produção. Assim, o mínimo de salário é o preço natural do trabalho. E que é o mínimo de salário? É precisamente o necessário para fazer produzir os objectos indispensáveis ao sustento do operário, para pô-lo em condições de se alimentar bem ou mal e de propagar por pouco que seja a sua raça.

Não suponhamos, contudo, que o operário não terá senão este mínimo de salário; não suponhamos, também, que ele terá sempre este mínimo de salário.

Não, segundo esta lei, a classe operária será às vezes mais feliz. Ela terá algumas vezes mais do que o mínimo; mas este excedente não será senão o suplemento daquilo que ela terá recebido abaixo do mínimo na época de estagnação industrial. Isso quer dizer que num certo lapso de tempo que é sempre periódico, neste círculo que a indústria faz, passando pelas vicissitudes de prosperidade, de superprodução, de estagnação e de crise — e considerando-se tudo o que os trabalhadores terão tido a mais ou a menos que o mínimo — isso tudo quer dizer que a classe operária não será conservada como classe senão depois de muitas desgraças e misérias e cadáveres deixados sobre o campo de batalha industrial. Mas que importa? A classe subsiste sempre, e, melhor ainda, ela terá aumentado.

Isso não é tudo. O progresso da indústria produz meios de existência menos custosos. É assim que a aguardente substituiu a cerveja, que o algodão substituiu a lã e o linho, e que a batata substituiu o pão.

Assim, como se encontra sempre meio de alimentar o trabalho com coisas menos caras e mais miseráveis, o mínimo de salário vai sempre diminuindo. Se este salário começou por fazer trabalhar o homem para viver, ele acabou fazendo o homem viver uma vida de máquina. Sua existência não tem outro valor senão o de uma simples força produtiva, e o capitalista o trata em consequência.

Esta lei do trabalho-mercadoria, do mínimo do salário, verificar-se-á à medida que a suposição dos economistas, o livre-câmbio, se torne uma realidade, uma actualidade. Assim, das duas coisas uma: ou é preciso renegar toda a economia política baseada sobre a suposição do livre-câmbio, ou então é preciso convir em que os operários serão atingidos por todo o rigor das leis econômicas neste regime de livre-câmbio.

Para resumir: no estado actual da sociedade, que é, pois, o livre-câmbio? É a liberdade do capital. Quando tiverdes feito cair os poucos entraves nacionais que ainda dificultam a marcha do capital, não tereis feito senão libertar inteiramente a sua acção. Enquanto se deixar subsistir a relação entre o trabalho assalariado e o capital, a troca das mercadorias entre elas em vão se fará nas condições mais favoráveis: haverá sempre uma classe que explorará e uma classe que será explorada. É verdadeiramente difícil compreender a pretensão dos livre-cambistas, que imaginam que o emprego mais vantajoso do capital fará desaparecer o antagonismo entre os capitalistas industriais e os trabalhadores assalariados. Pelo contrário, tudo o que resultará é que a oposição destas duas classes se acentuará ainda mais nitidamente.

Admiti por um instante que não haja mais leis sobre os cereais, nem alfândega, nem direitos de barreira, enfim, que todas as circunstâncias acidentais, às quais o operário pode ainda atribuir a culpa de sua situação de miséria, tenham desaparecido inteiramente, e tereis rasgado tantos outros véus que ocultam a seus olhos o seu verdadeiro inimigo.

Ele verá que o capital libertado não o escraviza menos que o capital molestado pelas aduanas.

Senhores, não vos deixeis iludir pela palavra abstrata de liberdade. Liberdade para quem? Esta não é a liberdade de um simples indivíduo em presença de outro indivíduo. É a liberdade que tem o capital de esmagar o trabalhador.

Como havíeis ainda de querer sancionar a livre concorrência com esta ideia de liberdade quando esta liberdade não é senão o produto de um estado de coisas baseado sobre a livre concorrência?

Já vimos o que é a fraternidade que o livre-câmbio faz nascer entre as diferentes classes de uma só e mesma nação. A fraternidade que o livre-câmbio viesse a estabelecer entre as diversas nações da terra não seria mais fraternal. Designar pelo nome de fraternidade universal a exploração em seu estado cosmopolita é uma ideia que não poderia ter origem senão no seio da burguesia. Todos os fenômenos destruidores que a livre concorrência faz nascer no interior de um país se reproduzem em proporções mais gigantescas no mercado mundial. Não temos necessidade de nos deter mais longamente nos sofismas que expendem sobre este assunto os livre-cambistas, e que valem bem os argumentos de nossos três laureados, srs. Hope, Morse e Gregg.

Alega-se, por exemplo, que o livre-câmbio faria nascer uma divisão internacional do trabalho, a qual atribuiria a cada país uma produção em harmonia com seus recursos naturais.

Pensais, talvez, senhores, que a produção de café e de açúcar é o destino natural das Índias Ocidentais.

Dois séculos antes, a natureza, que não se preocupa muito com comércio, não havia colocado naquela região nem cafeeiros nem cana de açúcar.

E não se passará talvez nem meio século, e não encontrareis mais ali nem café nem açúcar, pois as Índias Orientais, através de uma produção mais barata, já enfrentaram vitoriosamente este pretenso destino natural das Índias Ocidentais. E estas Índias Ocidentais com seus dons naturais já são para os ingleses um fardo tão pesado quanto os tecelões de Dacca, que, eles também, estavam destinados desde a origem dos tempos a tecer à mão.

Outra coisa que não se deve jamais perder de vista é que, do mesmo modo como tudo se tornou monopólio, há também em nossos dias alguns ramos industriais que dominam todos os outros e que asseguram aos povos que mais os exploram o império sobre o mercado mundial. É assim que no comércio internacional o algodão sozinho tem um maior valor comercial do que todas as matérias-primas empregadas para a fabricação de roupas, consideradas em conjunto. E é verdadeiramente risível ver os livre-cambistas fazer ressaltar umas poucas especialidades em cada ramo industrial para compará-las com os produtos de uso comum que se produzem a preços mais baixos nos países onde a indústria se encontra em grande desenvolvimento.

Não devemos nos admirar de que os livre-cambistas não consigam compreender como um país pode se enriquecer à custa de outros, pois estes mesmos senhores também não querem compreender como, no interior de um país, uma classe pode se enriquecer à custa de outra classe.

Não acrediteis, senhores, que fazendo a crítica da liberdade comercial temos a intenção de defender o sistema protecionista. Podeis vos declarar inimigos do regime constitucional, e nem por isso vos declarais amigos do antigo regime.

Aliás, o sistema protecionista não é senão um meio de se estabelecer numa nação a grande indústria, isto é, de fazê-la depender do mercado mundial, e desde que se dependa do mercado mundial já se depende mais ou menos do livre-câmbio. Além disso, o sistema protecionista contribui para desenvolver a livre concorrência no interior de um país. É por isso que vemos a burguesia fazer grandes esforços para ter direitos de proteção nos países onde ela começa a se fazer valer como classe, como, por exemplo, na Alemanha. Esses direitos são para ela armas contra a feudalidade e contra o governo absoluto, um meio de concentrar suas forças, de realizar o livre-câmbio no interior do seu próprio país.

Mas, em geral, nos nossos dias, o sistema do livre-câmbio é destruidor. Ele dissolve as antigas nacionalidades e leva ao extremo o antagonismo entre a burguesia e o proletariado. Numa palavra, o sistema da liberdade de comércio apressa a revolução social. É somente neste sentido revolucionário, senhores, que eu voto em favor do livre-câmbio.

terça-feira, 19 de setembro de 2023

A encruzilhada russa

Por concordamos inteiramente com o texto da camarada Angeles Maestro apelamos a todos os nossos leitores a sua leitura, divulgação e até a realização de possíveis colóquios afim de se poder eliminar todos os equívocos que possam existir e impedir a unidade, a mobilização e a organização de todos os activistas comunistas e anti-imperialistas sobre o que de verdadeiramente se passa na Ucrânia. "A Chispa!"


 

 

De:Ángeles Maestro 

Artigo publicado em 21/Agosto/2023

 

Na Rússia é muito comum esta frase atribuída a Pushkin: Se queres escutar tontices, deixa que um europeu fale sobre a Rússia. E é verdade sobretudo no caso das elites políticas ocidentais. Provavelmente por isso perderam as guerras contra ela uma após a outra, apesar dos gigantescos aparelhos bélicos postos em ação.

Para as organizações políticas revolucionárias – sobretudo aquelas que compreenderam a essência imperialista da guerra da NATO contra a Rússia que usa o fascismo ucraniano como aríete – é vital tentar analisar a complexidade e as contradições da Rússia actual, por muitas razões que não vou enumerar, mas sobretudo porque está a actua na linha de frente.

Sem atribuir-me a capacidade de compreender em profundidade os processos em jogo nesse enorme país, creio ainda assim que é possível traçar algumas linhas de estudo tomando como referência analistas e escritores que além de se dedicarem com clarividência a desentranhar a realidade do seu país, consideram, como a maioria da população russa e bielorussa, que o afundamento da URSS foi uma imensa catástrofe. Sem dúvida, o mais lúcido dos que pude consultar é Serguei Kurginyan, dirigente do movimento político “Essência do tempo” [1] e à sua análise me remeto em muitas das considerações que aqui transmito.

Trinta anos depois do afundamento da URSS, a guerra na Ucrânia e sobretudo as possibilidades de que se transforme num conflito de longa duração estão a obrigar a sociedade russa a despertar de uma letargia prolongada baseada nas falsas ilusões de “entrar no ocidente” ou, pelo menos, de manter relações amistosas com ele. Por outro lado, a rebelião militar dirigida pelo líder do grupo Wagner, Yevgeni Prigozhin, no passado mês de Junho, evidenciou debilidades e contradições profundas presentes na própria estrutura do Estado que, a não resolverem-se positivamente, poderiam por em causa a vitória da Rússia numa guerra longa, para além da Ucrânia, que, com toda a razão, é considerada como existencial.

Sem começar a valorar neste artigo as causas internas e externas do colapso da URSS, quero destacar alguns factos que contribuem para explicar a situação actual: a destruição da estrutura social foi realizada num tempo recorde, demoliram-se os aparelhos do Estado soviético para substituí-los por outros propenso ao ocidente, encerraram-se milhares de empresas e privatizou-se boa parte delas. As consequências foram brutais para a população. Segundo o CIDOB: “Em 1995 o índice de mortalidade cresceu 70% em comparação com o ano de 1989, chegando ao número de sobremortalidade de 2,2 milhões de pessoas por ano” [2]. Os suicídios, os assassinatos, as drogas, as máfias, o alcoolismo, o abandono de crianças, a morbilidade por doenças praticamente erradicadas, etc, reflectem a derrocada total de uma sociedade.

Estes factos não aconteceram em toda a URSS. Na Bieorússia, Lukashenko, vendo o desastre, não só não privatizou empresas e serviços como também reverteu as poucas privatizações realizadas. O gráfico ao lado que relaciona a mortalidade por tuberculose entre países da ex-URSS que seguiram as políticas do FMI (todos exceto a Bielorússia) e o que não as seguiram é suficientemente explícito.

Um técnico estado-unidense enviado à Rússia na época exprimia-se assim:   “Percebi rapidamente que o plano de privatizações da indústria russa ia ser levado a cabo da noite para o dia, com custos muito altos para centenas de milhares de pessoas (…) Iam-se fulminar dezenas de milhares de empregos. Mas além disso as fábricas que iam encerrar-se proviam a população de escolas, hospitais, cuidados sanitários e pensões do berço à tumba. Informei Washington de tudo isso e disse-lhes que não ia restar qualquer rede de segurança social. Compreendi claramente que se tratava precisamente disso:   queriam eliminar todos os restos possíveis do estado para que não voltasse o Partido Comunista” [3].

O desaparecimento da URSS foi uma hecatombe social. Não só se destruíram num tempo recorde as estruturas do estado soviético – como se os dirigentes imperialistas houvessem lido “O estado e a revolução” – como se demoliu o modo de vida e tentou-se aniquilar a identidade do seu povo.

A vivência de todo este desastre – o imperialismo chamou-o de “terapia de choque” – provocou na população um trauma severo em todos os planos de que não se reabilitou. Kurginyan, que tem analisado este processo em profundidade, chama-o “feridas na consciência” e considera que “a consciência deformadas perde a sua adequação e não pode compreender normalmente o que ocorre no tempo e no espaço” [4].

Sobre esta profunda ferida social ergueu-se a Rússia pós-soviética. Construiu-se uma sociedade amnésica e anestesiada, com um profundo vazio ideológico, que em parte é ocupado pela igreja ortodoxa [5], em cima da ausência de todo projecto colectivo numa sociedade em que o comunitário – para além da superestrutura política – estava profundamente inscrito na consciência popular. A isso somaram-se as insultuosas desigualdades sociais, produto do roubo impune de empresas socializadas e da degradação científica, cultural e educativa.

A destruição, auto-destruição, das forças produtivas russas de alta tecnologia é um dos factores determinantes da profunda regressão sofrida pela Rússia pós-soviética. Como assinala Kurginyan, nenhum outro país, em nenhum processo político, fez algo parecido. Talvez agora fosse preciso incorporar a UE a essas excepções históricas de auto-aniquilação produtiva, exactamente sob o mesmo hegemon.

Em definitivo, os aparelhos do Estado dessa Rússia mutilada e desestruturada estavam, e em boa medida ainda estão, controlados por elites políticas e económicas – preparadas e dirigidas desde há muito tempo por estruturas como o Clube de Roma ou a soviética “Firma” [6]. Estas elites foram as que dirigiram a demolição da URSS e as que, além de se apropriarem de grande parte dos recursos do país, actuaram como guardiões das políticas do imperialismo para a Rússia. Este novo poder, gestado a partir do interior das estruturas do Estado russo modificou totalmente a sua natureza. O Exército, mais sovietizado, constitui uma excepção relativa. Esta oligarquia, política e económica, e a correspondente engrenagem do Estado, esteve a trabalhar durante trinta anos para o objectivo que foi apresentado como um sonho dourado: “entrar no ocidente”.

As mudanças paulatinas na política externa da Rússia

Desde o desaparecimento da URSS, os EUA – secundados de forma contraditória pela UE até a sua actual subordinação absoluta à NATO e apoiado de forma cada vez menos encoberta pelo Estado sionista – foi arrasando um após o outro países cujos governos não se submetiam aos seus desígnios: Iraque (1991, 2003), Jugoslávia (1999), Afeganistão (2001), Líbia (2011).

Em todo este sangrento processo, até o caso da Líbia a representação russa no Conselho de Segurança da ONU votou a favor de todas as resoluções que amparavam as criminosas agressões militares do imperialismo, inclusive a Resolução 1244 de 1999 que dava via livre aos bombardeios da NATO sobre a nação irmã da Jugoslávia.

A destruição completa da Líbia pela NATO, em 2011, o país mais desenvolvido da África e que sustentava importantes projectos de soberania para o continente, também foi endossada pelo Conselho de Segurança da ONU, mas desta vez a China e a Rússia se abstiveram.

Este momento marca um ponto de inflexão na política externa russa que, alinhada com a China, vetou a partir de então todos o projectos de resolução apresentados pelos imperialismo euro-estado-unidense para apoiar a sua intervenção militar na Síria. Além disso, como é bem sabido, a Rússia aceitou a solicitação de ajuda militar do governo sírio que contribuiu decisivamente para modificar uma correlação de forças na zona, que já se vinha encaminhando. A este respeito há que destacar acontecimentos tão importantes na região como a derrota de Israel em 2006 por uma coligação libanesa liderada pelo Hezbolah e que marca o começo do desenvolvimento do Eixo da Resistência anti-imperialista e anti-sionista [7].

As tentativas dos dirigentes russos de manter boas relações com o ocidente, incluídas suas surpreendentes propostas de entrada na NATO, foram chocando progressivamente desde 1999, data em que a Polónia, a Hungria e a República Checa se integraram na Aliança, com a evidência de que o imperialismo anglo-saxão não pretendia outra coisa senão a desintegração da Rússia antes da sua dominação. Doze países da zona de influência da URSS incorporaram-se à Aliança, desde que em 1991 foi aprovado um documento [8] subscrito pelos ministros de Negócios Estrangeiros do Reino Unido, EUA, França e Alemanha no qual se garantia à Rússia que a NATO não se ampliaria em direção ao Leste.

Não foi só a incorporação de novos países. As sucessiva manobras militares da NATO foram ractificando materialmente o que os documentos de Segurança Nacional dos EUA afirmavam com toda a clareza: a Rússia, seguida de imediato pela China, era o inimigo principal [9].

Foi-se confirmando assim uma mudança progressiva mas radical nas alianças políticas, económicas, militares, culturais, desportivas, etc, que situa a Rússia, juntamente com a China, como colunas vertebrais de uma frente multipolar, que não cessa de ampliar-se com base no respeito à soberania e independência dos países, frente a um imperialismo que só oferece a política das canhoneiras. Insisto, contudo, em que todo este processo é efectuado com grandes contradições no interior de estruturas estatais e governamentais russas construídas para objectivos políticos totalmente diferentes.

O golpe fascista de Fevereiro 2014 na Ucrânia, concebido, financiado e organizado pelos EUA e a UE, incluindo todo tipo de atrocidades como o massacre da Casa dos Sindicatos de Odessa, a perseguição e tortura da população de cultura russa ou os bombardeamentos quotidianos da população civil do Donbass, era claramente dirigido contra a Rússia. Era uma ameaça iminente de guerra, que incluía o ingresso da Ucrânia na NATO. Ainda assim, um ano depois, em 2015, a Rússia junto com a França, Alemanha e Ucrânia firmou o Acordo de Minsk que estabelecia uma solução negociada para o conflito do Donbass. Angela Merkel declarou em Dezembro de 2022 que não havia qualquer intenção de cumprir suas condições e que tal Acordo foi firmado para que a Ucrânia ganhasse tempo para armar-se [10].

A assinatura do Acordo de Minsk não se verificou porque a Rússia foi enganada, como se costuma dizer. Foi o último acto de um Estado, construído à medida dos interesses do ocidente, que resistia a enfrentar a evidência: o imperialismo anglo-saxão ia declarar a guerra à Rússia.

A Operação Militar Especial, um caminho sem retorno

A decisão do governo russo de intervir militarmente na Ucrânia implica um passo decisivo para o futuro da Rússia. Conecta-a directamente com um sentimento popular que, apesar de tudo, conserva marcado a fogo no seu cérebro: a recordação dos 27 milhões de mortos que custaram à URSS para derrotar o fascismo e que constitui parte indelével da identidade nacional russa. Esse sentimento popular que inclui a reivindicação da União Soviética sem que se haja ainda concretizado como objectivo político, e que vai crescendo cada vez mais como mostram até os inquéritos ocidentais, sofreu e sofre como próprios os massacres dos nazi ucranianos no Donbass e clamava pelo apoio militar às suas milícias populares. Implica também o ódio crescente aos oligarcas, os insultuosos “novos ricos” e, com ele, o individualismo consumista identificado com o ocidente.

O imperialismo joga com os oligarcas como quinta coluna. Eles, que devem ao ocidente suas fabulosas fortunas e que tão sumarentos negócios estavam a fazer com seus bancos e multinacionais, são também os apoiantes das suas políticas. Se por acaso fraquejassem na hora de exercerem suas influências no Estado, contra eles foram dirigidas boa parte das sanções. Sentindo suas pressões e comprovando as importantes perdas sofridas pelas suas empresas, os maiores magnatas como Mordashov (siderúrgica Everstal, mineração de ouro NordGold, banco Rossiya), Tinkov (banco digital Tinkoff), Mixail Fridman (supermercados DIA e AlfaBank) e alguns outros, clamaram contra a guerra, lamentando-se amargamente pela morte de inocentes, pronunciando-se contra o gasto militar, etc.

Putin fulminou-os imediatamente, só com palavras, tratando-os de títeres do ocidente e ameaçando que “o povo russo saberia limpar adequadamente os traidores, cuspindo-os como mosquitos que se metem acidentalmente na boca”. O tratamento pareceu surtir efeito e as poucas berrarias que se convocaram “contra a guerra” ficaram em águas de bacalhau.

Apesar disso, os conflitos de fundo continuam a desenvolver-se, entre o repto histórico que implica a necessidade de responder a uma confrontação militar em grande escala e durante longo tempo com um inimigo muito poderoso, com aparelhos de Estado concebidos para outros objectivos e uma estrutura social que, até agora, não parece ser consciente de que muitas coisas devem mudar para ser capaz de fazer-lhe frente.

Apesar de a suposta contra-ofensiva ucraniana ter resultado num fiasco, nem por isso o imperialismo deixará de inundar o governo de Kiev com todo o tipo de armas “até o último ucraniano”. “A única coisa que o ocidente não quer fazer e não fará, por enquanto, é por o seu próprio povo sob as balas. Uns cinco milhões de homens ucranianos, que já foram vendidos ao ocidente por cerca de um milhão de milhão de dólares (1012), estão destinados a este fim. A elite ucraniana está muito satisfeita com este sangrento intercâmbio”, assinala Kurginyan.

Além disso, recorda que as palavras que assinalaram desde o princípio os objectivos da intervenção militar – “a desnazificação e a desmilitarização da Ucrânia” – não são um mantra vazio de sentido e sim, pelo contrário, mostram o núcleo da questão [11]. O fascismo que se desenvolveu na Ucrânia, seguido por cerca de um milhão de pessoas, alimentado pelo imperialismo e ao qual entregou todos os recursos do estado, é especialmente bestial e considera os russos como o seu inimigo principal. Seria um grande erro subestimar essa força, assinala o dirigente de “Essência do tempo”.

O que a rebelião militar de Prigozhin tornou evidente

As análises delirantes dos “peritos” ocidentais sobre os Wagner, que para eles passaram de paladinos da liberdade a mercenários sujos, põem em evidência que não tinham a menor ideia de que a rebelião se ia verificar e que não entendem o que acontece na Rússia. Tudo isso, diz Kurginyan, não exime o povo russo de avaliar em profundidade o que ocorreu e, sobretudo, de extrair as consequências.

Para criar os Wagner o Estado investiu enorme quantidades de dinheiro, armamento e concedeu-lhe grandes poderes, como por exemplo, o recrutamento. Criou-se, assinala Kurgiyan, um sistema paralelo ao do Ministério da Defesa. E esse sistema foi criado por mandato do Presidente do Governo e obedecia a ele directamente. A que responde a sua criação? Quando líder, pergunta-se Kurginyan, cria um sistema paralelo? E responde-se; “Em primeiro lugar quando suspeita que o sistema não lhe é de todo leal e, em segundo lugar, quando suspeita que não cumpre as tarefas que lhe foram assinaladas”.

A rebelião de Prigozhin pôs em evidência as graves contradições existentes. Seu fracasso, acreditou que parte substancial do exército ia segui-lo – apesar de ter permitido ao sistema, leia-se o Ministério da Defesa, confrontar diretamente o sistema paralelo criado por Putin e eliminar, por enquanto, a possibilidade de alternativas – não o destruiu.

O jogo interno de forças tornou-se evidente. A rebelião dos Wagner, que se encaminhou a Moscovo praticamente sem oposição interna, terminou com um indulto e com Prigozhin participando na Cimeira África-Rússia, em São Petersburgo. Além disso, novas tarefas de Estado chegaram aos Wagner: a Bielorússia, após a inteligente e oportuna mediação de Lukashenko e a intervenção em África a pedido dos novo movimentos anti-coloniais de diferentes países do Sahel.

Os grandes problemas continuam por resolver e são, no sentido estrito da palavra, estruturais. Uma parte do Estado russo, ou seja, a representação dos oligarcas nos poderes do Estado, estaria a advogar por uma paz negociada com a Ucrânia, quase a qualquer preço, e voltar às boas relações e negócios anteriores, e outra está consciente do caráter irreversível da ruptura com o ocidente e da envergadura da confrontação que o povo russo deverá assumir. “O sistema existente foi construído para ser parte da civilização ocidental e, portanto, não pode estar em guerra com esta civilização, insiste Kurginyan. Não pode garantir estrategicamente que a Rússia o ocidente, que é 10 vezes mais poderoso que a Rússia, durante muito tempo. Se um sistema criado para os antigos propósitos não consegue fazer frente à nova situação, acumulará disfunção. Não se trata de indivíduos como Shoigu, Gerasimov, Surovikin, etc e sim da arquitetura do sistema, construído para outras tarefas, para outros tipos de guerra”.

A disfunção essencial entre o “sistema”, a maquinaria do Estado e as elites económicas a que serve e os objectivos – a guerra contra o ocidente – radicalmente diferentes àqueles que respondem a sua criação e funcionamento, pode dar lugar a que seja precisamente o “sistema” o que mude a realidade, para adequá-la às finalidades que lhe deram origem. E se isso se pretendesse materializar, pergunta-se o dirigente da Essência do tempo, quem se converte no seu principal oponente? O que o impede de fazer o de sempre: trabalhar pouco, roubar muito e drogar-se. Quem é o estorvo? Obviamente, o líder do país.

Os grandes reptos da Rússia

O país enfrenta uma guerra de longa duração frente a um inimigo muito poderoso, que vai para além da Ucrânia e que pode ressurgir na Polónia, países bálticos, etc. Tudo isso num quadro em que os EUA preparam-se para enfrentar a grande potência que começa a superá-los e a disputar a sua hegemonia, a China. Neste caso, coloca lucidamente Kurginyan, “quando os EUA se veem por algum país segundo as suas próprias regras, não lhe dão um prémio e sim mudam as regras do jogo. A introdução da agenda ambiental ou a pandemia Covid são bons exemplos de como mudam as regras do jogo” [12]. E para enfrentar a China, não basta desestabilizar Taiwan; não são suficientes as batalhas navais. Como colocava o geógrafo britânico Mackinder, para que um império marítimo domine o planeta, primeiro tem que controlar o “coração continental”, o “pivot do mundo”, ou seja, a Rússia [13].

As previsões do governo russo de uma rápida vitória militar na Ucrânia resultaram completamente erróneas, ainda que felizmente tenha identificado como objectivos a desnazificação e a desmilitarização do regime de Kiev. Uma vez mais o “sistema” pós-soviético tentava contornar a realidade: a Rússia não estava só frente a um conflito com a Ucrânia, tratava-se de uma guerra contra a NATO. E claro que era preciso desnazificar e desmilitarizar a Ucrânia, mas era o ocidente que havia colocado os fascistas no poder e que os armava até os dentes.

A Rússia enfrenta uma guerra de longa duração contra a NATO, uma guerra de posições, de desgaste, que além disso não acabará com a guerra na Ucrânia. Em muitos aspectos esta guerra é ainda mais terrível do que a II Guerra Mundial e o povo russo deve saber a verdade. E a verdade aprendida na Grande Guerra Pátria é que ela só pôde ser ganha porque a ditadura do proletariado, ou seja, o proletariado erigido em classe dirigente, foi capaz de compreender e transmitir ao conjunto da sociedade soviética o gigantesco repto que devia assumir: a defesa da humanidade contra o fascismo, da humanidade contra a escravidão, da vida contra a morte. E tudo isso foi resumido numa palavra-de-ordem bem concreta: “Tudo para a Frente, Tudo para a Vitória”. E o povo soviético pulsou e actuou como um só ser colectivo.

A enorme potência que o povo soviético foi capaz de mobilizar não respondia só a um dever patriótico. Defendia também sua ditadura do proletariado, a primeira revolução operária triunfante e, por isso, tinha uma dimensão internacional, não só anti-fascista e sim histórica para a classe trabalhadora mundial.

A Rússia de hoje tem diante de si grandes reptos a superar para enfrentar um inimigo não inferior ao que enfrentou a URSS. Kurginyan identifica dois objectivos:

Em primeiro lugar, abordar um salto científico-técnico no complexo militar-industrial que permita superar o inimigo com todo tipo de armamento e de equipamentos. Depois da destruição das empresas e equipamentos mais avançados da URSS, para ganhar a guerra contra a NATO – para além da Ucrânia – é preciso dar um salto descomunal. As palavras de Estaline em 1932 foram chaves para a vitória na Grande Guerra Pátria: “se em dez anos não percorrermos o caminho que custou às potência ocidentais entre 50 e 100 anos, seremos esmagados”. A Rússia necessita reconstruir a poderosa indústria de bens de equipamento, destruída durante o colapso da URSS, imprescindível para por em marcha no nível requerido o complexo militar-industrial. Por sua vez, este precisa do concurso do sistema educativo para a preparação acelerada de quadros técnicos e de capacidades humanas em alguma medida semelhante ao esforço da sociedade soviética nos anos anteriores e durante a II Guerra Mundial.

A URSS pôde fazê-lo graças à industrialização, que requeria que toda a sociedade funcionasse como um punho em movimento. E a grande dúvida é: poderá fazê-lo a Rússia actual?

Em segundo lugar, é imprescindível abordar a batalha ideológica, a luta de ideias contra o imperialismo e o fascismo. Não é só a Ucrânia, o fascismo cresce em toda a Europa e nos EUA. É inútil a Rússia esperar que a extrema direita a trate melhor que a actual elite ocidental. É exactamente ao contrário!, afirma Kurginyan. Além disso, a moral do exército decai se não houve um trabalho ideológico poderoso e se a sociedade não estiver penetrada por esse impulso espiritual. E “se a farra na rectaguarda não desaparecer, se o roubo não desaparecer, adverte, então a vitória numa guerra longa é impossível”. A guerra da informação não deve ser feita na linguagem das ovelhas. Kurginyan advoga por um sistema de mobilização, de posicionamento e um sistema de formação de novos quadros que possa converter as “sub-ovelha” em “cães lobos”. E não se trata de sacar bandeiras e dar lições de patriotismo nas escolas e sim da mobilização de um milhão de pessoas no lado anti-fascista. Mas até agora, sublinha, fez-se todo o possível para que isto não acontecesse.

O problema de fundo é como despertar a força vital necessária para galvanizar uma sociedade que acreditou no mito ideológico do capitalismo e em grande medida vive alheia ao que sucede na frente; a uma classe operária que assiste desmoralizada e impotente ao roubo quotidiano da oligarquia e que não reabilitou as “feridas da consciência” porque isso só pode ser feito retomando o fio histórico da luta pela sua emancipação.

Kurginyan propõe activar a mola anti-fascista que sem dúvida é muito potente na Rússia. A questão é se a compreensão histórica colectiva e internacional do que implica o fascismo e, sobretudo, a actuação consequente para impedir que triunfe – Custe o que Custar, Tudo para a Frente, Tudo para a Vitória – é possível abordá-la sem a reconstrução da ferramenta que concentra a força operária e popular: o partido comunista.

A luta é internacional

A situação internacional actual mantém semelhanças com a II Guerra Mundial. A vontade manifesta de controle do mundo por parte da Alemanha nazi é representada hoje abertamente pelo imperialismo anglo-saxão, imerso numa crise económica terminal e cuja hegemonia em decadência empurra-o à guerra como única opção.

Após a derrota da República espanhola e em pleno auge do fascismo, a Alemanha foi ocupando os países europeus um após o outro sem qualquer resistência. Hoje a submissão da UE à NATO, dirigida com mão de ferro pelos EUA, com o seu território praguejado de bases militares, é absoluta. Também o é a vassalagem da política económica europeia, auto-destruição inclusive, aos interesses estado-unidenses. A isso há que acrescentar a colonização cultural ou o controle dos meios de comunicação. É um cenário político de auge do fascismo, hoje como ontem facilitado pela social-democracia.

É neste contexto que é preciso analisar o apoio económico e militar maciço do imperialismo à Ucrânia nazi. Não se trata só de que use o povo ucraniano como carne de canhão. A aliança é muito mais íntima e mais antiga. É a própria continuidade do nazismo alemão nos aparelho políticos e militares dos EUA e da NATO [14], é o ódio primário a todo o russo dos banderistas ucranianos e, sobretudo, é o fascismo com a supressão de direitos e liberdades, com a repressão selvagem e a militarização social, o que necessita o capitalismo em crise irreversível e a guerra imperialista em grande escala que se está a gestar.

Foi o povo russo, como ontem o soviético, que compreendeu que é a sua própria identidade e existência como povo que está em jogo. Ainda que como vimos – se bem que tenha sido capaz de responder atacando a ameaça ucro-nazi – a sua situação objectiva e subjectiva diste muito da de então.

Como se tem analisado, hoje não se vislumbra a solução para a incógnita de se o povo russo será capaz ou não de executar as transformações revolucionárias que lhe permitam enfrentar com êxito as tarefas vitais para o seu futuro e para o resto dos povos. O que é certo é que, após trinta anos de dominação ideológica, o povo russo demonstra com seus actos – certamente porque a herança recebida é muito poderosa – que não foi dobrado. O apoio popular maioritário e incontestável à intervenção militar contra o fascismo na Ucrânia é um grande exemplo.

O que é uma realidade inquestionável, tanto para o povo russo como para o resto dos povos do mundo – especialmente para os da Europa – é que nos encaminhamos para uma época de grande instabilidade política caracterizada por profundas mudanças destrutivas nos meios de produção e nas condições de vida de milhões de pessoas e pela imposição de um cenário de guerra permanente de intensidade variável contra a Rússia e a China.

A agudização da luta de classes em situações de crises profunda, e sobretudo a guerra, ampliam e intensificam as contradições internas da burguesia, debilitam sua hegemonia ideológica e abrem, como se demonstrou historicamente, possibilidades de revolução popular. E hoje, mais do que nunca, é imprescindível que a luta que a classe trabalhadora e os sectores populares desenvolvem em cada lugar tenha dimensão internacional.

O atraso organizativo e político na construção da única ferramenta que demonstrou ser capaz tanto de conduzir a revolução à vitória como de derrotar o fascismo, o partido comunista, deve deixar de ser uma justificação ou um lamento. Deve converter-se no campo de trabalho no qual os comunistas e as comunistas de hoje levarão a cabo as tarefas históricas das quais depende não só a revolução socialista como o futuro da humanidade.


1 https://rossaprimavera.ru Em língua russa. Sua caracterização política e a tradução de algumas das suas publicações principais para o castelhano podem consultar-se aqui: https://eu.eot.su/es/acerca-de/
3 Maestro, A. (2020) Crisis capitalista, guerra social en el cuerpo de la clase obrera.    https://www.lahaine.org/b2-img10/Angeles_Maestro_ESP.pdf
https://rossaprimavera.ru/video/afb341fb
5  A tentativa dos EUA de colonizar a Rússia com grupos evangelistas imediatamente depois do colapso da URSS, tal como fez na América Latina, contudo, não prosperou.
6 https://tsargrad.tv/news/sekret-firmy-s-chego-nachalos-unichtozhenie-sssr_439718
7 O Eixo da Resistência é um bloco histórico laico, anti-imperialista e anti-sionista que pretende superar divisões de caráter religioso ou étnico impostas pelo imperialismo, unido os povos num projeto comum de independência e soberania sobre os seus recursos. Liderado pelo Hezbollah, agrupa a resistência Palestina, Irão, Síria, Iémen e organizações iraquianas.