Caridade sim, justiça social é que não
Manuel Raposo — 31 Março 2021
Tudo menos tocar nas grandes fortunas, nos altos rendimentos, nos lucros do capital, na propriedade privada capitalista
Em final de fevereiro deste ano, os
desempregados inscritos nos centros de emprego (IEFP) tinham subido
acima de 430 mil, mais 37% do que no início do ano passado, o valor mais
alto desde maio de 2017. Ao longo de 2020 o ritmo dos despedimentos
colectivos tornou-se galopante. Como se nada disto contasse, as
organizações patronais continuam a repetir o dogma de sempre: “são as
empresas que criam emprego” — quando as evidências mostram que são as
empresas, isto é, o capital, que destroem postos de trabalho e liquidam
meios de produção.
A mentira tem um propósito imediato:
obter do Estado o maior volume possível de financiamento, se possível a
fundo perdido. Assim se tornam os prejuízos privados em prejuízos
sociais, na mira de, mais adiante, voltarem os lucros — sempre privados,
claro.
Apesar dos salários assegurados pelo Estado através do lay-off,
muitas empresas preferiram prescindir desse apoio para poderem proceder
a despedimentos a coberto de medidas de “reestruturação”. Nos primeiros
nove meses de 2020 houve mais 50% de despedimentos do que em todo o ano
de 2019, e estava na intenção das empresas despedir outro tanto.
Os sectores de actividade atingidos são
praticamente todos: indústria alimentar, segurança, comunicação social,
indústria electrónica, restauração e hotelaria, banca. Em final de 2020,
um quinto das empresas (nomeadamente multinacionais) manifestou a
intenção de despedir e congelar salários em 2021, segundo inquérito da
consultora Mercer.
Em 2019, antes da pandemia se declarar, a
Autoridade Tributária previa que o número de super-ricos em Portugal
iria disparar: mais 30% (309 indivíduos) que 5 anos antes. Nesta
categoria cabem os indivíduos com mais de 5 milhões de euros anuais de
rendimento ou mais de 25 milhões de património. A pandemia terá atrasado
o ritmo previsto, mas não o facto em si: estudos recentes prevêem que
os portugueses mais ricos verão rendimentos e fortunas crescerem a 3-4%
ao ano até 2024.
Segundo dados do Banco de Portugal (maio
2020), a quebra dos rendimentos do trabalho com a pandemia era, na
altura, em termos médios, de 8,2%. Mas com uma diferença importante: na
condição de ausência de rendimento, o grupo dos 20% mais ricos
suportaria as suas despesas durante um ano, enquanto o grupo dos 20%
mais pobres só suportaria uma semana nas mesmas condições.
Esta quebra, assinalada no início da
pandemia, veio acentuar ainda mais uma desigualdade de rendimentos já de
si gritante. Um estudo do economista Eugénio Rosa mostra que, entre
2008 e 2019, a parte do trabalho no rendimento nacional caiu de 36,5%
para 35%, e a parte do capital subiu de 40,6% para 41%.
Note-se que este período de 11 anos
abarca não apenas os anos da crise financeira de 2008, o governo
Sócrates com os famosos PEC (Programas de Estabilidade e Crescimento!), a
violência dos quatro anos da troika (Programa de Assistência
Financeira!) com o governo Passos-Portas no papel de capataz, mas também
os quatro anos ditos da “recuperação de rendimentos” do primeiro
governo do PS, com o apoio do BE e do PCP.
Em termos de classes sociais, aqueles 41%
do PIB são embolsados por cerca de 220 mil indivíduos possuidores de
capital, contra mais de 4 milhões de trabalhadores assalariados aos
quais cabem os magros 35% — facto demonstrativo de que a “desigual
repartição” da riqueza “nacional” (contra a qual tantos se indignam) é
fruto da concentração da propriedade produtiva nas mãos de uma classe
restrita de indivíduos (vaca sagrada contra a qual poucos se atrevem a
levantar um dedo).
Um estudo recente da Deco (Barómetro Deco
Proteste 2020), por seu lado, revela um quadro mais aproximado do
quotidiano das famílias trabalhadoras. Já antes da pandemia,
verificara-se um aumento dos níveis de pobreza. Com a crise sanitária,
estima-se que as famílias perderam, em total nacional, 1.400 milhões de
euros de rendimentos. Para 80% das famílias (3,2 milhões de famílias = 8
milhões de pessoas) é impossível fazer qualquer poupança. Uma em cada
quatro famílias (1 milhão de famílias = 2,5 milhões de pessoas) perdeu
“grande parte” do seu rendimento em 2020, significando isto uma redução
de 25% ou mais.
O mesmo estudo mostra que, em 2020, mais
de duas em cada três famílias tinha “dificuldades financeiras com gastos
básicos” — isto é, dificuldade em responder a seis categorias de
gastos: alimentação, saúde, habitação, transportes, educação e lazer. De
facto, 6% estavam em situação crítica, 63% manifestavam dificuldades
financeiras e apenas 31% se sentiam em situação de conforto financeiro.
Aqueles 69% representam perto de 7 milhões de pessoas.
Também a Cáritas, as Misericórdias e a o
Banco Alimentar, por exemplo, vão dando conta das situações de miséria
que grassam pelo país: fome, pedidos de apoios para pagar rendas e
despesas domésticas, despejos, crianças sem refeições decentes e sem
meios para acompanhar a escola.
As causas destas perdas de rendimento são
igualmente eloquentes: despedimento, inactividade profissional e
redução salarial — ou seja, efeitos e instrumentos comuns da economia
capitalista, presentes em quase todos os momentos, apenas acelerados e
potenciados agora pela crise sanitária.
Nenhum mistério, portanto, nem quanto à
subida do desemprego, nem quanto ao aumento da pobreza para quem vive do
seu salário; nenhum mistério, igualmente, quanto ao aumento das
fortunas e dos rendimentos no que toca aos mais ricos e aos detentores
de capital.
As “soluções” avançadas, contra tudo o
que é evidente, ficam nos apelos à solidariedade, ao coração, à esmola. O
propósito é o de sempre: quanto possível, fazer que sejam os remediados
a cuidar dos pobres — o que se vai conseguindo, seja através dos
impostos que o Estado cobra em nome de uma política dita
“redistributiva”, seja, mais caritativamente, pelos donativos cobrados
aos cidadãos comuns por senhoras-de-bem à porta dos supermercados.
Tudo menos tocar nas grandes fortunas,
nos altos rendimentos, nos lucros do capital, na propriedade privada
capitalista — para que todo o edifício das desigualdades, que tem os
seus pilares na exploração do trabalho, permaneça sem grandes abalos.
Via "jornalmudardevida.net"