terça-feira, 21 de março de 2023

Na alvorada de 18 de Março (1871), Paris foi despertada por este grito de trovão: VIVE LA COMMUNE!

 A COMUNA DE PARIS

20.03.23 | Manuel

 (Algumas considerações à laia de resumo)

 «O que é, pois, a Comuna, essa esfinge que põe tão duramente à prova o entendimento burguês?»

 

A Comuna devia ser, não um organismo parlamentar, mas um corpo activo, ao mesmo tempo executivo e legislativo.

Mas a classe operária não se pode contentar com tomar o aparelho de Estado tal como ele é e de o pôr a funcionar por sua própria conta.

O poder centralizado do Estado, com os seus órgãos presentes por toda a parte: exército permanente, polícia, burocracia, clero e magistratura, órgãos moldados segundo um plano de divisão sistemática e hierárquica do trabalho, data da época da monarquia absoluta, em que servia à sociedade burguesa nascente de arma poderosa nas suas lutas contra o feudalismo.

Em presença de ameaça de sublevação do proletariado, a classe possidente unida utilizou então o poder de Estado, aberta e ostensivamente, como o engenho de guerra nacional do capital contra o trabalho.

Na sua cruzada permanente contra as massas dos produtores, foi forçada não só a investir o executivo de poderes de repressão cada vez maiores, mas também a retirar pouco a pouco à sua própria fortaleza parlamentar, a Assembleia Nacional, todos os meios de defesa contra o executivo.

O poder de Estado, que parecia planar bem acima da sociedade, era todavia, ele próprio, o maior escândalo desta sociedade e, ao mesmo tempo, o foco de todas as corrupções.

O primeiro decreto da Comuna foi pois a supressão do exército permanente e a sua substituição pelo povo em armas.

A Comuna era composta por conselheiros municipais, eleitos por sufrágio universal nos diversos bairros da cidade.

Eram responsáveis e revogáveis a todo o momento.

A maioria dos seus membros era naturalmente operários ou representantes reconhecidos da classe operária.

Em vez de continuar a ser o instrumento do governo central, a polícia foi imediatamente despojada dos seus atributos políticos e transformada num instrumento da Comuna, responsável e revogável a todo o momento.

O mesmo se deu com os outros funcionários de todos os outros ramos da administração.

Desde os membros da Comuna até ao fundo da escala, a função pública devia ser assegurada com salários de operários.

Uma vez abolidos o exército permanente e a polícia, instrumentos do poder material do antigo governo, a Comuna teve como objectivo quebrar o instrumento espiritual da opressão, o "poder dos padres"; decretou a dissolução e a expropriação de todas as igrejas, na medida em que elas constituíam corpos possuidores.

Os padres foram remetidos para o calmo retiro da vida privada, onde viveriam das esmolas dos fiéis, à semelhança dos seus predecessores, os apóstolos.

Todos os estabelecimentos de ensino foram abertos ao povo gratuitamente e, ao mesmo tempo, desembaraçados de toda a ingerência da Igreja e do Estado.

Assim, não só a instrução se tornava acessível a todos, como a própria ciência era libertada das grilhetas com que os preconceitos de classe e o poder governamental a tinham acorrentado.

Os funcionários da justiça foram despojados dessa fingida independência que não servira senão para dissimular a sua vil submissão a todos os governos sucessivos, aos quais, um após outro, haviam prestado juramento de fidelidade, para em seguida os violar.

Assim como o resto dos funcionários públicos, os magistrados e os juízes deviam ser eleitos, responsáveis e revogáveis.

Após uma luta heróica de cinco dias, os operários foram esmagados.

Fez-se então, entre os prisioneiros sem defesa, um massacre como se não tinha visto desde os dias das guerras civis que prepararam a queda da República romana.

Pela primeira vez, a burguesia mostrava a que louca crueldade vingativa podia chegar quando o proletariado ousa afrontá-la, como classe à parte, com os seus próprios interesses e as suas próprias reivindicações.

E, no entanto, 1848 não passou de um jogo de crianças, comparado com a raiva da burguesia em 1871.

Proudhon, o socialista do pequeno campesinato e do artesanato, odiava positivamente a associação.

Dizia dela que comportava mais inconvenientes do que vantagens, que era estéril por natureza e até mesmo prejudicial, pois entravava a liberdade do trabalhador; dogma puro e simples...

E é também por isso que a Comuna foi o túmulo da escola proudhoniana do socialismo."

As coisas não correram melhor para os blanquistas.

Educados na escola da conspiração, ligados pela estrita disciplina que lhe é própria, partiam da ideia de que um número relativamente pequeno de homens resolutos e bem organizados era capaz, chegado o momento, não só de se apoderar do poder, mas também, desenvolvendo uma grande energia e audácia, de se manter nele durante um tempo suficientemente longo para conseguir arrastar a massa do povo para a Revolução e reuni-la à volta do pequeno grupo dirigente.

Para isso era preciso, antes de mais nada, a mais estrita centralização ditatorial de todo o poder entre as mãos do novo governo revolucionário.

E que fez a Comuna que, em maioria, se compunha precisamente de blanquistas?

Em todas as suas proclamações aos franceses da província, convidava-os a uma livre federação de todas as comunas francesas com Paris, a uma organização nacional que, pela primeira vez, devia ser efectivamente criada pela própria nação.

Quanto à força repressiva do governo outrora centralizado, o exército, a polícia política, a burocracia, criada por Napoleão em 1798, retomada depois com prontidão por cada novo governo e utilizada por ele contra os seus adversários, era justamente esta força que devia ser destruída por toda a parte, como o fora já em Paris."

"Para evitar esta transformação, inevitável em todos os regimes anteriores, do Estado e dos órgãos do Estado em senhores da sociedade, quando na origem eram seus servidores, a Comuna empregou dois meios infalíveis.

Primeiro, submeteu todos os lugares, da administração, da justiça e do ensino, à escolha dos interessados através de eleição por sufrágio universal e, evidentemente, à revogação, em qualquer momento, por esses mesmos interessados.

E segundo, retribuiu todos os serviços, dos mais baixos aos mais elevados, pelo mesmo salário que recebiam os outros operários. O vencimento mais alto que pagou foi de 6000 francos.

Assim, punha-se termo à caça aos lugares e ao arrivismo, sem falar da decisão suplementar de impor mandatos imperativos aos delegados aos corpos representativos.

Esta destruição do poder de Estado, tal como fora até então, e a sua substituição por um poder novo, verdadeiramente democrático, estão detalhadamente descritas na terceira parte de A Guerra Civil (Karl Marx).

Mas era necessário voltar a referir aqui brevemente alguns dos seus traços, porque, precisamente na Alemanha, a superstição do Estado passou da filosofia para a consciência comum da burguesia e mesmo de muitos operários.

Na concepção dos filósofos, o Estado é "a realização da Ideia" ou o reino de Deus na terra traduzido em linguagem filosófica, o domínio onde a verdade e a justiça eternas se realizam ou devem realizar-se.

Daí esta veneração que se instala tanto mais facilmente quanto, logo desde o berço, fomos habituados a pensar que todos os assuntos e todos os interesses comuns da sociedade inteira não podem ser tratados senão como o foram até aqui, quer dizer, pelo Estado e pelas suas autoridades devidamente estabelecidas.

E julga-se que já se deu um passo prodigiosamente ousado ao libertarmo-nos da fé na monarquia hereditária e ao jurarmos pela república democrática.

Imagem: Na alvorada de 18 de Março (1871), Paris foi despertada por este grito de trovão: VIVE LA COMMUNE!

“A Guerra Civil em França”, Karl Marx. Centelha, Coimbra, 1975.

 

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