“Mas Monitor representa apenas uma das variedades do oportunismo: aberta, grosseira, cínica. As outras actuam dissimuladamente, subtilmente, ‘honestamente’. Engels disse uma vez: os oportunistas ‘honestos’ são os mais perigosos para a classe operária…” (Lênin, em O oportunismo e a falência da II Internacional, citando Engels, Para a crítica do projeto de programa social-democrata de 1891).
Nos países de língua latina, algumas palavras-chave do marxismo são vítimas de grandes ironias e inversões. Por exemplo: para o senso comum brasileiro, os revolucionários comunistas são “idealistas”; e as pessoas “materialistas” são aquelas que só se importam com suas riquezas individuais. A filosofia marxista, por sua vez, entende essas palavras de modo completamente diferente.
Evidentemente, esse obstáculo linguístico é só uma complicação adicional no longo processo de elevação da consciência revolucionária do proletariado. A todo tempo, em todas as épocas, a educação revolucionária de uma classe dominada só pode ser realizada por si própria, em meio à luta de classes, em meio à agitação, à propaganda e à organização revolucionária independente; por meio da interação constante, paciente e prolongada entre suas diversas camadas; entre a minoria revolucionária do proletariado (aquela que Lênin chamava de intelectualidade socialista) e a massa politicamente atrasada da classe (em todos seus matizes e gradações). Para isso, é preciso que também essa camada avançada do proletariado eleve constantemente seu próprio nível de compreensão e organização, estando também em constante crescimento e enraizamento a partir desse seu trabalho. Nunca é demais, então, nos determos especialmente sobre aqueles conceitos capciosos, cujo rigor científico e teórico escorrega perigosamente por entre os dedos.
Uma dessas palavrinhas latinas que causam bastante confusão até entre os marxistas é o conceito de “oportunismo”. Em nosso país, esse conceito é carregado de um sentido moral, pessoal: dizemos que “fulano é um oportunista” quando desejamos descrever um “aproveitador”, alguém que “se dá bem” às custas da coletividade. No movimento popular, esse termo passa a descrever, então, uma pessoa que tenta utilizar a força coletiva de classe dos trabalhadores para impulsionar e obter seus interesses e vantagens pessoais. Essa carga fortemente subjetiva do conceito acaba por estreitá-lo, tornando-o pura expressão de uma vantagem pessoal: o oportunismo seria, nessa compreensão, apenas um sinônimo de carreirismo. O oportunismo é, aqui, uma agenda pessoal. Mas oportunismo não é só, e nem principalmente, a obtenção de vantagens pessoais.
É bem verdade que não faltam, na sociedade contemporânea, carreiristas de todo o tipo que tentam obter vantagens pessoais através desse ou daquele aspecto do movimento popular – não só os de tipo mais comum, como os políticos parlamentares, mas também os burocratas sindicais, advogados, ou os marxólogos acadêmicos que fazem carreira nas Universidades às custas de uma teoria sem qualquer conexão com a prática revolucionária etc. Mas, na história da política proletária revolucionária, essa forma subjetiva e mais ou menos intencional não é a forma predominante e principal que o oportunismo assume. Pelo contrário: essa forma consciente e voluntária do oportunismo (considerado como um traço de personalidade) é aquela da qual o movimento revolucionário se livra com maior rapidez e facilidade – seja porque a identifica, isola e depura; seja porque, no mais das vezes, o movimento revolucionário não dispõe de uma influência social tão massiva a ponto de atrair tanto interesse dos políticos profissionais.
Mas basta uma breve consulta à literatura revolucionária do século passado para verificar que esse aspecto incidental do oportunismo sequer é mencionado, na maioria das discussões:
A questão é puramente de princípio: a luta deve ser conduzida como uma luta de classes do proletariado contra a burguesia, ou deve ser permitido que, no bom estilo oportunista (ou, como é chamado na tradução socialista: possibilista), o caráter de classe do movimento, junto com o programa, seja posto de lado, em toda parte onde haja uma chance de ganhar mais votos, mais adeptos, por esse meio. (Carta de Engels a August Bebel, em outubro de 1882) [1]
A justa observação de Parvus, de que é difícil pegar um oportunista com a armadilha de uma simples assinatura, mais uma vez foi confirmada: facilmente ele assinará qualquer papel, e com a mesma facilidade negará tal assinatura, pois o oportunismo compreende exatamente a ausência de princípios determinados e firmes. Hoje os oportunistas repudiam toda tentativa de introduzir o oportunismo, e toda estreiteza, prometendo solenemente “não esquecer um só instante a derrubada da autocracia”, fazer “a agitação não somente contra o capital” etc., etc. E amanhã mudam o meio de expressão e retomam os velhos métodos sob o pretexto de defender a espontaneidade, a marcha progressiva da obscura luta cotidiana, exaltando as reivindicações que deixam entrever resultados tangíveis etc. (Lênin, no “Apêndice” de Que fazer?) [2]
Nossos oportunistas russos que, como todos os oportunistas, menosprezam a teoria do marxismo revolucionário e o papel do proletariado como vanguarda, vivem constantemente na ilusão de que a burguesia liberal deve ser inevitavelmente o “chefe” da revolução burguesa. Eles falham totalmente em entender o papel histórico, digamos, da Convenção na grande Revolução Francesa, como ditadura das camadas mais baixas da sociedade, do proletariado e da pequena burguesia. Eles falham totalmente em compreender a ideia da ditadura do proletariado e do campesinato como o único baluarte social possível de uma revolução burguesa russa totalmente vitoriosa. Em essência, oportunismo significa sacrificar os interesses de longo prazo e permanentes do proletariado por interesses fugazes e temporários. (Lênin, em Quem é a favor de alianças com os Kadets?) [3]
Oportunismo significa sacrificar interesses fundamentais para obter vantagens temporárias e parciais. Essa é a essência da questão, se considerarmos a definição teórica de oportunismo. Muitas pessoas se extraviaram neste ponto. No caso da Paz de Brest-Litovsk, sacrificamos os interesses da Rússia, entendidos no sentido patriótico, que eram, na verdade, secundários do ponto de vista socialista. Fizemos sacrifícios imensos e, no entanto, eles foram apenas secundários. (Lênin, em Discurso em um encontro de militantes da organização de Moscou do PCR(b)) [4]
Nenhuma palavra sequer sobre as vantagens pessoais auferidas pelos oportunistas. Engels refere-se ao eleitoralismo, mas critica-o não como fonte de vantagens pessoais para os parlamentares: mesmo se uma vitória eleitoral fosse considerada do ponto de vista coletivo, partidário, como um objetivo de interesse geral do movimento, essa vitória imediata não valia o sacrifício da agitação e da propaganda em favor dos objetivos finais revolucionários. Lênin prossegue dizendo o mesmo: o oportunismo consiste objetivamente no sacrifício dos interesses gerais do proletariado em nome de interesses momentâneos e parciais, independente das causas subjetivas desse sacrifício (que, no geral, se conectam com a debilidade dos princípios teóricos, seja no âmbito da consciência individual, seja no âmbito da firmeza ideológica coletiva). Vejamos os exemplos: no caso da penúltima citação de Lênin, a causa subjetiva do reboquismo poderia ser atribuída, simplesmente, a um erro de compreensão, a um entendimento estreito da teoria revolucionária marxista, resultado do menosprezo por ela. Já no caso comentado na última citação de Lênin, o oportunismo poderia ser resultado do mais honesto sentimento patriótico, ou seja, resultado de um interesse coletivo nacional, embora esse interesse fosse apenas parcial, do ponto de vista do proletariado internacional. E veja: Lênin acusa gente de seu próprio partido, o partido que fez a revolução, o partido já depurado dos mencheviques… de extraviar-se em direção ao oportunismo – e isso sem propor a expulsão desses “extraviados”! Como isso é possível?
Lênin compreendia que as bases do oportunismo, essa tendência à sobreposição dos interesses imediatos aos interesses finais, eram não somente ideológicas, mas materiais: justamente porque o proletariado não é um todo homogêneo, é sempre possível que os interesses corporativos de uma parte sua se sobreponham a seus interesses em conjunto. Essa heterogeneidade, na época do capitalismo monopolista, é agravada especialmente nos países centrais e nos setores dinâmicos da economia – daí todas as teorizações de Lênin sobre a chamada aristocracia operária como base material do predomínio da tendência oportunista sobre o movimento operário. [5] Disso decorre, de um ponto de vista leninista, a necessidade da cisão política do proletariado revolucionário em um partido comunista, independente não só em relação à burguesia mas também em relação ao oportunismo – que Lênin também denominou, por outras vezes, como “política liberal para operários”, ou “trade-unionismo”: uma política abertamente reformista e conciliadora, antirrevolucionária. Mas seria uma utopia ingênua acreditar que uma organização pode proclamar-se revolucionária e anti-oportunista e que isso basta para livrá-la, de uma vez por todas, de qualquer risco de degradação em direção ao oportunismo – ou pior, acreditar que essa degradação depende apenas da intenção carreirista maior ou menor dos membros dessa organização. Prova suficiente disso é o processo de social-democratização de inúmeros partidos autodeclarados comunistas e anti-social-democráticos, ao longo de todo o último século.
Por isso mesmo, o pior risco que o movimento revolucionário pode cometer é aferrar-se a uma compreensão unilateral e limitada do oportunismo, entendido como traço de personalidade, ou como carreirismo individual. A pior e mais perene forma do oportunismo é aquela inconsciente, que não se liga a qualquer vantagem pessoal, e que se comete com toda a honestidade e zelo do mundo: como dizia Marx, o caminho para o inferno é pavimentado por boas intenções. No mesmo sentido, o caminho mais rápido para o rebaixamento ideológico do movimento revolucionário é a restrição do conceito de “oportunismo” à sua forma intencional e pessoal. Isso porque a forma mais fácil de encubar o oportunismo em uma organização revolucionária consiste em declará-la “livre de qualquer risco de oportunismo”, baseando-se abstratamente na boa-fé entre camaradas e contribuindo, assim, para o rebaixamento da vigilância ideológica contra os desvios à direita que podem sempre surgir diante de novos dilemas históricos. É preciso lembrar disso em especial em épocas como as nossas, de refluxo do movimento operário e de ofensiva dos reacionários, épocas nas quais a maré empurra com tanta força à direita que arrasta inclusive muitos autoproclamados socialistas – que, em nome de suas frentes-amplas com as classes proprietárias, ou seja, em nome do defencismo democrático-formal imediato, abandonam a agitação e a propaganda pela revolução socialista do proletariado (não faltam exemplos disso na realidade atual, especialmente entre os Socialistas-e-Libertários).
Mas mesmo entre os reformistas declarados, aqueles que são plenos e perfeitos representantes do chamado oportunismo, ou “possibilismo”, de nada adianta a investigação das intenções: pouco importa se (para tomarmos mais um exemplo da realidade brasileira) Lula promove sua política conciliadora porque obtém vantagens pessoais com isso, ou se o faz porque considera de todo o coração que esse seja o curso de ação que trará mais benefícios ao povo pobre a curto prazo. Embora, em todo caso, Lula forneça farto material para a agitação revolucionária, o que importa não é demonstrar às massas que sua intenção é “indigna” – isso faria, no máximo, com que a massa depositasse suas confianças em um outro conciliador “mais honesto”. O que importa é demonstrar a falência incondicional de seus métodos; demonstrar que, independente das melhores intenções de qualquer reformista, sua política mina as condições ideológicas e organizativas de luta do proletariado pelo poder e fortalece as condições de domínio da burguesia, subordina politicamente a independência política do proletariado aos pequenos e grandes proprietários etc.
Essa tarefa não é simples, nem pode ser realizada do dia para a noite. Ora, também essa confusão da consciência política das massas encontra expressão em nossa linguagem cotidiana: quando ouvimos que “fulano é uma pessoa muito política”, podemos ter quase certeza de que o fulano em questão não é um revolucionário militante, mas um conciliador. O trabalho de reorganização e educação política das amplas massas do proletariado ainda tem pela frente um longo caminho – e só pode marchar até o fim sob a bandeira vermelha da Revolução Socialista. Justamente por isso, de nada adianta tomarmos atalhos em direção ao subjetivismo e ao moralismo, em nossa agitação e propaganda contra o possibilismo: é apenas pelo confronto aberto entre as perspectivas objetivas das forças políticas da classe trabalhadora, pela prova da prática e pela polêmica teórica em torno de suas estratégias e táticas, no combate cotidiano contra o reboquismo, pela independência revolucionária do proletariado, que será possível desenvolver e fundir, na luta, o Bloco Revolucionário do Proletariado.
PS: Recentemente, um camarada perguntou-me sobre a infeliz expressão “oportunismo ‘de esquerda’”. O camarada queria saber onde, nas obras de Lênin, o bolchevique dizia que o “esquerdismo” poderia era definido como uma variante “de esquerda” do oportunismo. Depois de alguma pesquisa, confirmei minha primeira impressão: o termo não é citado nenhuma vez nos textos mais conhecidos de Lênin sobre o “esquerdismo”, nem em nenhum outro que pude conferir. Nesses textos, Lênin refere-se ao esquerdismo como um “doutrinarismo”, e em momento algum equipara esse “desvio de esquerda” ao outro desvio, diametralmente oposto, de direita. Com efeito: a falta de firmeza nos princípios teóricos e o doutrinarismo não podem ser igualados. Em ambos os casos, rompe-se a conexão entre estratégia e tática – mas, em cada desvio, é um dos aspectos dessa conexão que é tomado unilateralmente. O oportunismo afoga a estratégia revolucionária no imediatismo das táticas. O doutrinarismo opera de modo inverso, sacrificando as mediações táticas de cada estágio que atravessa a luta da classe operária no altar da performance revolucionária, recusando qualquer luta por reformas e proclamando a atualidade imediata da insurreição e do programa máximo (e, assim, renunciando a participar das lutas cotidianas não-revolucionárias, da luta eleitoral, dos sindicatos etc., também deixa de contribuir de modo consistente para o desenvolvimento da consciência e organização revolucionária do proletariado, através de cada um dos estágios de defensiva e contraofensiva que a luta do proletariado contra a burguesia atravessa).
PS2: Rosa Luxemburgo escreveu, em setembro de 1898, um texto intitulado Possibilismus und opportunismus, onde comentou, a respeito da questão linguística e de mérito:
“Os termos são: possibilismo e oportunismo. Heine acredita que toda a aversão do partido a estas tendências baseia-se em um mal-entendido acerca do verdadeiro significado linguístico destas palavras estrangeiras. Ah! O camarada Heine, como Fausto, estudou jurisprudência com dedicado empenho, mas infelizmente, diferentemente de Fausto, não estudou, com o mesmo esforço ardente, muito mais que isso. E, no genuíno espírito de um pensamento jurídico, ele diz a si mesmo: no princípio era a Palavra. Se quiséssemos saber se o possibilismo e o oportunismo podem prejudicar ou beneficiar a social-democracia, basta consultar o dicionário de palavras estrangeiras e a questão estará respondida em cinco minutos. O dicionário estrangeiro nos informa que o possibilismo é ‘uma política que busca aquilo que é possível sob determinadas circunstâncias’, e Heine então exclama: ‘de fato, eu pergunto a todas as pessoas sensatas: uma política deveria tentar alcançar o que é impossível sob determinadas circunstâncias dadas?’ Como pessoas sensatas, respondemos que, claro, se a solução de questões de política e tática fosse tão simples, os lexicógrafos seriam os estadistas mais sábios, em vez de proferir discursos social-democratas, nós deveríamos começar a promover cursos populares sobre linguística.
Certamente, nossa política deve e pode apenas se esforçar por aquilo que seja possível sob determinadas circunstâncias. Mas isso não responde, de forma alguma, como e de que maneira devemos lutar pelo possível. Esse, contudo, é o ponto crucial.
A questão fundamental do movimento socialista sempre foi como reconciliar sua atividade prática imediata com seu objetivo final. As várias ‘escolas’ e tendências do socialismo diferem umas das outras de acordo com suas diversas soluções para este problema. E a social-democracia é precisamente o primeiro partido socialista que entendeu como harmonizar seu objetivo final revolucionário com sua atividade prática do dia a dia e, desta forma, tem sido capaz de atrair para a luta grandes massas. […]
É apenas porque nós não concedemos nem um centímetro de nossa posição que nós forçamos o governo e os partidos burgueses a nos conceder o pouco que pode ser alcançado em termos de sucesso imediato. Mas se nós começamos a perseguir o que é ‘possível’ de acordo com o oportunismo, sem nos preocupar com nossos próprios princípios e por meio das negociatas, como fazem os estadistas, então logo nos encontraremos na posição do caçador que não só falhou em matar a caça, mas também perdeu sua espingarda no processo.
Não são as palavras estrangeiras (oportunismo, possibilismo) que tememos, como pensa Heine: o que tememos é a germanização destes termos em nossa prática partidária. Que estas permaneçam, para nós, palavras estrangeiras. E que, havendo ocasião, que nossos camaradas evitem desempenhar o papel de intérpretes.” [Disponível em: A outra Rosa, LavraPalavra, 2021.]
Notas:
[1] Tradução livre. Disponível em inglês em: https://www.marxists.org/archive/marx/works/1882/letters/82_10_28.htm
[2] https://www.marxists.org/portugues/lenin/1902/quefazer/anexo.htm
[3] Tradução livre. Disponível em inglês em: https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1906/jun/24.htm
[4] Tradução livre. Disponível em inglês em: https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1920/dec/06.htm
[5] Entre outros exemplos: “Quanto mais frequentemente temos ocasião de observar no nosso tempo como o movimento operário de diferentes países sofre com o oportunismo em consequência da estagnação e da putrefação da burguesia, em consequência da absorção da atenção dos dirigentes operários pelas ninharias do dia etc., mais precioso é o riquíssimo material da correspondência [entre Marx e Engels], que mostra a profundíssima compreensão dos objetivos transformadores radicais do proletariado e a definição invulgarmente flexível das tarefas táticas do momento do ponto de vista desses objetivos revolucionários e sem a mínima concessão ao oportunismo ou à fraseologia revolucionária.”
Em: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1913/mes/correspondencia.htm
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