O início do ano de 1975 marca, de forma indelével, uma radicalização da luta de classes e das lutas do proletariado, por este ter atingido um maior nível de consciencialização e de organização activa. Vários factores tinham contribuído para isso. O desemprego, devido a sabotagem económica maciça e falências fraudulentas, tinha atingido elevados níveis a partir do último terço do ano de 1974, o que acelerou as formas de luta dos operários, camponeses e trabalhadores contra o capitalismo, os monopólios e os latifúndios.
A questão da unicidade sindical atravessou e flamejou todo o mês de Janeiro, num aceso debate fracturante. Este período marcou ainda, uma vaga de ocupações de casas desabitadas e de terras agrícolas e agudização das lutas operárias e do movimento grevista pela defesa dos postos de trabalho, culminando numa onda de ocupações de empresas.
Nas costas portuguesas, numa nítida manobra de demonstração de exuberante força provocatória e intimidatória, uma esquadra naval da OTAN/NATO fazia manobras militares e anunciava para breve a chegada ao porto de Lisboa, facto que provocou uma febril reacção no espectro político revolucionário. Depois de alguns adiamentos, a esquadra da NATO entrou no Tejo a 2 de Fevereiro. Eis, aqui, em linhas gerais, os motivos que levaram a reunião de delegados dos trabalhadores da Inter-Comissões de Empresas da Cintura Industrial de Lisboa a convocar uma marcha de protesto contra a presença da armada da Organização do Tratado do Atlântico Norte, para o dia 7 de Fevereiro de 1975.
Imediatamente proibida pelo lacre do Governo Provisório, de coligação do PPD, PS e PCP, a manifestação contou, de pronto, com substancial adesão de 38 comissões de trabalhadores, à cabeça das quais encontravam-se a Efacec-Inel, Applied, Automátic de Corroios, Cergal, CTT, Lisnave, Melka, Messa,Pfizer, Setenave, TAP, Xavier de Lima e o apoio de diversas estruturas políticas, de empresas e de moradores. Já antes, a 26 de Janeiro, milhares de pessoas tinham desfilado contra o desemprego e a presença da OTAN no nosso País, entre o Terreiro do Paço e a Praça de Londres, um ensaio proveitoso.
Depois da interdição ordenada pelos arautos da governança, o prestimoso governador civil do distrito de Lisboa, Mário Bruxelas, que era igualmente maioral do MDP/CDE, faz saber em aviso datado de 5 de Fevereiro, que proíbe «qualquer manifestações públicas» entre 7 e 12 de Fevereiro, a fim de ilegalizar a manifestação operária unitária contra o desemprego.
Apesar da expressa proibição, entre os dias 2 e 6 de Fevereiro de 1975, distintas organizações partidárias anunciam que mantêm a convocatória para a “Manifestação Unitária Contra o Desemprego”: a Frente Eleitoral de Comunistas (Marxistas-Leninistas), o Movimento de Esquerda Socialista, o Partido Revolucionário do Proletariado, o Partido de Unidade Popular e a União Democrática Popular. O Secretariado da Organização Regional de Lisboa do MES divulga, então, um comunicado intitulado “Todos à Manifestação de Sexta-Feira, Dia 7, Contra o Desemprego!”, onde «denuncia» o «silêncio que os meios de informação têm feito quanto a esta movimentação operária e anticapitalista».
Porém, antecipando-se à interdição imposta pelo Governo, a Comissão Política do Comité Central do Partido Comunista Português toma posição pública a 4 de Fevereiro de 1975, através duma Nota de Imprensa, na qual evoca a sua «particular autoridade» para acentuar que devido à «complexa situação nacional e internacional, seria particularmente perigosa para a jovem democracia portuguesa uma política precipitada e aventureirista em relação à NATO» e que a manifestação tinha «carácter provocatório em que a reacção estaria altamente interessada», pois «a intenção dessas manifestações parece ser provocar perigosos confrontos» com os «marinheiros da NATO». Dois dias volvidos, a 6 de Fevereiro, o PCP reforça a intenção em condenar a manifestação operária contra o desemprego e contra a OTAN, devido ao seu «carácter provocatório», tendo, também o dirigente Octávio Pato reforçado os remoques acusativos e torpes insinuações através da TV contra «grupos provocatórios pseudo-revolucionários» apoiados «pela reacção internacional».
O PS igualmente verberou a intenção dos manifestantes e o Secretariado da União dos Sindicatos do Sul, estrutura da Intersindical Nacional, em Santa Aliança torpedeou vilmente os organizadores como sendo«provocadores» a fazer «o jogo da reacção», num descaramento abominável comparando-a à «maioria silenciosa» do 28 de Setembro!(manifestação fascista abortada graças a esta movimentação operária) O absurdo não tem, nem tinha, limites!
Apesar de tanta e exacerbada oposição nada impediu a classe operária de aparecer em massa, calculada em 40.000 trabalhadores, segundo A CAPITAL, ou em 80.000 nas contas do DIÁRIO DE LISBOA. Assim ou assado, a manifestação foi enorme, tendo em conta a vergonhosa campanha e a sabotagem a que foi sujeita, pois «a proibição governamental, a contrapropaganda, o dispositivo militar de prevenção nada puderam contra a determinação de dezenas de milhares de trabalhadores».
Partindo da concentração no Terreiro do Paço, o desfile cerrado durou cinco longas e emocionantes horas,«em filas solidamente organizadas». Após passagem pela Rua Augusta e Rossio, o cortejo seguiu Avenida da Liberdade acima. Porém, na Praça do Marquês de Pombal foi barrado pelos cordões duma força de intervenção dos comandos, equipada com carros de combate e metralhadoras aperradas para reprimir os manifestantes, que ali vedava o acesso à Avenida do Duque de Loulé, onde então ficava a embaixada norte-americana.
Momentos de imensa tensão esvoaçavam no ar, os operários à frente trajados com fato-macaco e capacete a forçar ordeiramente o caminho, sem vacilar e a vozear uníssonas palavras de ordem: «P’RA FRENTE, NINGUÉM RECUA, EM FRENTE!» e «SOLDADOS E MARINHEIROS SÃO FILHOS DO POVO». Perante tão firme disciplina, força, combatividade e enorme determinação, «quando tudo parecia anunciar uma confrontação violenta e trágica», um major do COPCON acabou por mandar afastar os “chaimites” e abrir caminho, reconhecendo que «os trabalhadores tinham o direito de fazer a manifestação». Estava vencida a primeira etapa! Junto da embaixada americana, guardada pela GNR e tropas, as palavras de ordem ecoaram em vibrante uníssono, «FORA A NATO, INDEPENDÊNCIA NACIONAL!», «VIVA A CLASSE OPERÁRIA!».
O ponto máximo ocorreu na Praça de Londres, junto ao Ministério do Trabalho, onde nova força militar vedava o acesso e ameaçava cumprir as ordens repressivas emanadas dos gabinetes. Minutos de grande tensão a pairar no ar e, então, aconteceu dos momentos mais magníficos e exaltantes. Os militares enviados para reprimirem a massa compacta de gente, puseram as armas em posição de descanso b«o cano das espingardas G3»e “aderiram” à manifestação de punho erguido no ar, solidários com o povo trabalhador, saúdam os manifestantes, numa explosão impressionante: «SOLDADOS E MARINHEIROS TAMBÉM SÃO EXPLORADOS», «VIVA A CLASSE OPERÁRIA». Indescritível, só visto e sentido! Seguiu-se o comício com empolgantes intervenções de operários das comissões de trabalhadores, reforçado por palavras de ordem especialmente elucidativas: «TRABALHO SIM, DESEMPREGO NÃO», «GREVE SIM, LOCK-OUT NÃO»,«NÃO AO DESEMPREGO, ABAIXO O CAPITALISMO». Passava da meia-noite quando tudo terminou, depois de «uma noite desanuviada e luminosa» com cinco horas de «disciplina proletária» pelas ruas da capital.
A manifestação foi, essencialmente, um poderoso grito de revolta contra o desemprego, o capitalismo, o imperialismo e uma grande vitória da classe operária. Desbaratou tão-somente a proibição do Governo capitulacionista, a interdição do governo civil, as calúnias e mentiras da central sindical, a campanha difamatória, a condenação formal do PS, PCP e MDP e duas colunas militares enviadas para reprimi-la, tudo isto com um número particularmente elevado de participantes.
A manifestação foi, essencialmente, um poderoso grito de revolta contra o desemprego, o capitalismo, o imperialismo e uma grande vitória da classe operária. Desbaratou tão-somente a proibição do Governo capitulacionista, a interdição do governo civil, as calúnias e mentiras da central sindical, a campanha difamatória, a condenação formal do PS, PCP e MDP e duas colunas militares enviadas para reprimi-la, tudo isto com um número particularmente elevado de participantes.
Marca também uma afirmação indiscutível duma corrente operária revolucionária. Apesar dos poderosíssimos boicotes, sem a cobertura dos meios de comunicação, à margem do aparelho político-sindical reformista, provou ser possível mobilizar a classe operária e organizar uma corrente revolucionária, com posições políticas de vanguarda. Pela primeira vez, a luta da classe operária não se limitava aos aspectos económicos e sindicais, mas tinha, isso sim, um elevado cariz político. Significativo, também, a adesão entusiasta dos soldados, fruto talvez do ocaso, mas também dum certa influência em sectores das forças armadas.
Para terminar, vamos ouvir a palavra insuspeita dum observador (Avelino Rodrigues, Cesário Borga, Mário Cardoso, Portugal Depois de Abril, 1976, p. 118):
«Esta manifestação veio comprovar também, e de forma espectacular, que o Partido Comunista não dominava por completo as massas trabalhadoras; que havia igualmente movimentos operários próximos de posições de extrema-esquerda que não estavam dispostos a seguir uma política que consideravam revisionista e, por isso, propunham alternativas revolucionárias para combater o fascismo e o capitalismo. Demonstraram amplamente que eram uma força real e não uma “minoria silenciosa”, epíteto com que o Partido Comunista denegriu a manifestação».
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