sexta-feira, 20 de maio de 2022

A ambição globalista da Nato



A ambição globalista da Nato

Manuel Raposo — 18 Maio 2022

Finlândia, Suécia. Mais dois peões para a política de sempre: o domínio dos EUA na Europa e no mundo

O previsto alargamento da Nato à Finlândia e à Suécia está a ser aclamado como uma prova do reforço e da coesão do bloco Ocidental e como uma demonstração da derrota dos planos “de Putin”, isto é, da Federação Russa. Soma-se isto aos clamores diários que anunciam uma vitória militar dos ucranianos e que pressagiam um descalabro económico da Rússia e até o possível derrube do regime russo. Esta visão ocidental da situação peca, não só por um optimismo postiço, próprio da propaganda de guerra (como é evidente acerca do desenrolar das operações militares), mas também pela miopia que atinge norte-americanos e europeus quando se trata de ver os acontecimentos para lá da espuma dos dias ou dos ganhos imediatos. 

A ficção da simples defesa

A Nato nasceu, contra o que afirmam os seus promotores, como uma aliança militar agressiva. O seu propósito inicial, como se sabe, foi a contenção da influência política da URSS na sequência da segunda guerra mundial. Defensiva foi a criação do Pacto de Varsóvia, seis anos depois, para responder ao rearmamento da Alemanha promovido pelos EUA e pela renascente Europa Ocidental.

A dissolução do Pacto de Varsóvia, como toda a gente percebe, retirou qualquer razão que restasse à Nato para continuar a existir a pretexto de conter a influência soviética. A sua continuação e a extensão aos países do leste europeu (mais as tentativas falhadas de agregar a Ucrânia e a Geórgia) dão prova do seu carácter agressivo. A Nato tornou-se o principal instrumento do imperialismo norte-americano para garantir a sua hegemonia na Europa e no mundo.

Importa lembrar, para desfazer a ideia peregrina de uma aliança militar defensiva, as agressões e intervenções da Nato desde que os EUA se sentiram sem competidor à altura, a partir de 1991, a começar na Jugoslávia e a findar no Afeganistão. Lembremos ainda os propósitos de replicar o modelo e de alargar o raio de acção da Aliança à África, ao Atlântico Sul e à própria Ásia. Tudo isto — agressões, intervenções “humanitárias”, alargamento — em zonas do globo em que os EUA acham ter interesses a “defender”.

Nenhum laivo de democracia

As forças, a orientação política, as decisões da Nato não são mais do que as forças, a política e as decisões dos EUA. Não existe nenhuma democracia interna à Nato que permita aos seus membros decidir livremente o que lhes interessa se for contra o que convém aos EUA. 

O comando militar efectivo está, sem partilha, em mãos de generais norte-americanos. As cimeiras da Nato são uma farsa de democracia para dar legitimidade às decisões vindas de Washington. Os secretários-gerais da Nato são meros fantoches dirigidos a partir do Pentágono, como o néscio Stoltenberg evidencia de forma acabada. 

Os europeus pagam a sua “protecção” como um lojista desprotegido paga a um gangue mafioso para ter a segurança que ele decide dar-lhe.

A integração da Finlândia e da Suécia representa apenas o ganho de mais dois peões para que seja prosseguida a mesma política de sempre, ou seja, assegurar aos EUA o seu domínio sobre a Europa e no xadrez mundial. No momento presente, melhor será dizer: assegurar aos EUA um amparo na queda, tendo em vista o declínio inexorável do seu poder sobre o mundo. E este aspecto tem a maior importância para avaliar os acontecimentos: a perda de capacidade económica e política reforça o pendor agressivo do imperialismo norte-americano, por ser no campo militar que a sua superioridade ainda poderá dar-lhe trunfos.

Uma Europa submetida e submissa

Para além de não beneficiarem de nenhuma igualdade de tratamento face aos EUA e de pagarem milhões de euros para o orçamento da Nato, os europeus pagam evidentemente outro tributo: a submissão política e a falta de independência. Os esboços tímidos da França e da Alemanha em procurarem uma chamada “independência estratégica” (face aos EUA, claro) nunca passaram de suspiros que estão a ser abafados pela contra-ofensiva norte-americana em resposta à guerra na Ucrânia. 

Mas apresentar isto como uma derrota da Rússia — como até certa esquerda argumenta para provar o que considera ser o “erro estratégico de Putin” ao desencadear a guerra — é colocar as coisas de pernas para o ar. Ao contrário, é a longa submissão (pode dizer-se histórica) dos europeus ao imperialismo ianque que lhes cortou as pernas, não só em todo o pós-guerra, mas também no pós-guerra fria e ainda diante da iminência da guerra na Ucrânia. Foi isto que fez da UE um sub-imperialismo subordinado aos interesses maiores dos EUA.

Uma lógica de confronto permanente

Foram na realidade Biden e consortes (na sequência de uma tarefa iniciada por Obama em 2014) que tudo fizeram para exacerbar o conflito com a Rússia em solo ucraniano, sem que a UE tivesse a coragem de levantar a voz para travar o extremismo norte-americano e procurar atender às reclamações da Rússia. O facto de nenhum Chirac e nenhum Schröder terem sequer procurado marcar distâncias, como sucedeu em 2003 ante a iminência do ataque ao Iraque, é elucidativo sobre o grau de dependência da UE diante da política anti-russa de Washington.

Fala-se de defender a Suécia e a Finlândia. Mas, nem um nem outro destes países foram ameaçados pela Rússia, a qual, por seu lado, teria todo o interesse em que eles continuassem neutros, como adiante se verá. Na lógica de confronto criada por acção dos EUA, sim, a integração dos dois países na Nato é que os vai colocar na linha da frente de um futuro eventual conflito, tal como aconteceu com a Ucrânia. 

A segurança da Europa, que a Nato jura defender, fica assim, pelo contrário, abalada uma vez mais por voltar a alterar o balanço de forças entre a Nato e a Rússia. Os EUA criam deste modo uma nova fonte de pressão sobre a Rússia, e ainda mais se decidirem colocar armas nucleares na Finlândia, que partilha uma fronteira de 1300 km com a Rússia.

Preparando o terreno desde 2016

Numa visita à Finlândia feita em Julho de 2016, Vladimir Putin conferenciou com o presidente finlandês sobre os riscos do país entrar para a Nato, questão que já então estava sobre a mesa, e acerca do desequilíbrio que isso voltaria a introduzir na Europa. 

Estava-se na altura ainda longe da actual guerra, mas aumentavam as provocações dos EUA à Rússia exercidas através do regime ucraniano sobre as populações do Donbass. Ao mesmo tempo, os norte-americanos faziam pressões sobre os dois países nórdicos para integrarem a Nato com o objectivo de expandir a sua presença no Mar Báltico e no Árctico, duas outras fronteiras naturais da Rússia.

Numa campanha eleitoral finlandesa em abril de 2019, o debate sobre a entrada na Nato foi lançado com o intuito de testar (e se possível vencer) as resistências da população. Políticos e comentadores apresentavam então essa opção como um “seguro contra incêndio”, e o presidente Sauli Niistro (o mesmo que hoje está em funções) apadrinhava a ideia como um “reforço de segurança” para a Finlândia. 

Na mesma altura, e em consonância, estrategas norte-americanos colocavam a possibilidade de estender os efeitos do artigo 5.º do tratado da Nato (de defesa mútua) a “parceiros próximos”, como a Suécia e a Finlândia, mesmo sem pertencerem formalmente à Aliança. Esta manobra pretendia tornear as dificuldades levantadas por uma opinião pública adversa. As intenções só não passaram à prática porque na altura faltava o apoio “da população, do parlamento e da orientação de política externa”, como reconheceu o líder de um partido finlandês. (Global Times, 6 abril 2019)

De então para cá, desenrolou-se o trabalho de convencer as opiniões públicas sob o martelo da “ameaça russa”, a fim de apresentar como sendo vontade dos povos aquilo que na origem é puro interesse geoestratégico dos norte-americanos e das classes dominantes europeias que os servem.

Com a Nato, nunca haverá segurança

Contra aqueles — políticos, comentadores, propagandistas — que começam a contar a história recente a partir de 24 de fevereiro deste ano, é preciso lembrar que os EUA fizeram da Europa o palco principal do seu confronto com a URSS e depois com a Rússia, desde há 70 anos. É do exclusivo interesse dos EUA manter as ameaças de guerra sempre activas a fim de colocar a Rússia sob permanente pressão, e adicionalmente subjugar os aliados. A guerra na Ucrânia é o mais recente episódio desta política de confronto.

A colaboração das potências europeias nesta manobra que leva décadas coloca os povos europeus ao arrasto dos desígnios norte-americanos. No caso presente, tal submissão pode medir-se já no dia-a-dia das populações pelo aumento das despesas militares, pelo agravamento do custo de vida e pela ameaça de escassez de bens de consumo — tudo resultado em grande parte das sanções impostas à Rússia.

A segurança na Europa — que enche a boca dos dirigentes norte-americanos e europeus, mas não os impediu de promoverem as agressões que quiseram sempre que isso lhes interessou, a começar com a destruição da Jugoslávia — não pode ser conseguida enquanto for a Nato a determinar os destinos dos povos do continente. 

A estabilidade e a paz na Europa serão sempre precárias enquanto prevalecer a disputa de interesses das forças capitalistas-imperialistas que nela de debatem. É o que nos mostra a história dos últimos 70 anos, para não ir mais longe. Mas mesmo essas estabilidade e paz relativas não poderão ser alcançadas sem a Rússia, e ainda menos contra a Rússia — evidência que o chanceler alemão Scholz chegou a admitir num raro momento de lucidez, logo esquecido em nome da “unidade” com os EUA.

A entrega dos dirigentes políticos, sem excepção, e da esmagadora maioria das forças políticas da UE nos braços dos EUA, deixa os povos da Europa desamparados. Mas  também faz deles a única origem possível de resistência à política de guerra. Será essa a base segura para levantar um movimento de contestação do imperialismo, e da Nato como seu braço armado.

Via Jornalmudardevida.net

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