sábado, 5 de março de 2022

Ucrânia empurrada para a frente de batalha


 
Manuel Raposo — 4 Março 2022

Do jornal Mudar de Vida:

Ucrânia empurrada para a frente de batalha

EUA-NATO: serviço combinado atira a Ucrânia para a frente de batalha
No ataque da Rússia à Ucrânia, os EUA e a UE têm ocasião de ver, em espelho, as suas próprias acções das últimas décadas.
 
 O mesmo vale para as autoridades portuguesas e para cada um dos governos europeus, que nunca levantaram qualquer objecção às intervenções militares, às sanções e às ameaças de todo o tipo, com origem nos EUA ou na própria UE, contra países como a Jugoslávia, o Iraque, o Afeganistão, a Líbia, a Síria, a Venezuela, o Irão, ou Cuba — todos eles tão soberanos como a Ucrânia.
 
No ponto a que os acontecimentos chegaram, pouco importam as apreciações morais que justifiquem a agressão russa ou a condenem; importa sim perceber os motivos que conduziram a tal desenlace e porque não foi evitado. Se isto for ignorado, a opinião pública nacional e mundial será arregimentada por uma barragem de propaganda irracional sem saber ao que vai.
 
Se fosse vontade do Ocidente evitar a guerra, as medidas estavam à vista: cumprir os acordos de Minsk de 2014-15, no que respeita às regiões do leste ucraniano, e declarar que a Ucrânia não integraria a NATO. Foi este caminho que EUA e UE recusaram.
 
O que verdadeiramente incomoda os dirigentes do Ocidente imperialista é o facto de, desta vez, ser a Rússia a violar o direito internacional em nome dos seus interesses estratégicos. Direito esse que EUA e UE espezinharam à vontade — sem sofrerem qualquer sanção — desde que o fim da guerra-fria lhes deu uma supremacia incontestada sobre o mundo.
 
Em trinta anos de rédea solta, o Ocidente invocou a bel-prazer, e com todo o arbítrio, o direito de se “defender preventivamente” de alegadas ameaças à sua segurança, fosse isso o que fosse. Que não se tratava de defesa, prova-o a doutrina militar dos EUA, adoptada desde o mandato de George W. Bush, de fazer uso do seu arsenal nuclear não como mero meio de resposta ou dissuasão, mas como instrumento de primeiro ataque.
 
Invocando a “superioridade moral” das suas democracias, o Ocidente impôs guerras, expandiu as suas alianças militares, promoveu mudanças de regimes políticos, organizou “revoluções coloridas” e golpes de estado, assassinou dirigentes, cercou os seus principais competidores com bases militares e esquadras navais, ameaçou o mundo com a guerra espacial. Não foi o direito que o guiou: foi a força incontestada de que dispôs durante vários anos. É essa supremacia que agora está em causa.
 
Desde que os EUA se viram livres da URSS, as organizações internacionais que tinham nascido do relativo equilíbrio imposto pelo confronto Leste-Oeste — a começar pela ONU — foram desvalorizadas, torpedeadas e anuladas pela arrogância ianque, com a colaboração ou a passividade da UE. Em vez de regras aceites pela comunidade de países, a tríade imperialista EUA-UE-Japão impôs ao mundo a lei do mais forte, escudada no poderio militar norte-americano. E nos últimos anos fez tudo para substituir as normas, formalmente democráticas, contidas na Carta das Nações Unidas por “regras” e “valores” por si ditadas a que o resto de mundo teria de obedecer.

 
No caso da Ucrânia, portanto — considerando a lógica de confronto que o Ocidente pôs em campo nas relações internacionais —, a Rússia invoca com mais razão o direito à sua segurança do que alguma vez o fizeram os EUA ou a UE. 
 
Confrontado com sua própria decadência, o imperialismo norte-americano pôs em marcha uma nova guerra-fria tendo por alvos principais a Rússia e a China. É neste quadro que a questão ucraniana tem de ser avaliada. O Ocidente fez dos ucranianos carne para canhão: provocou uma mudança de regime em 2014 por meio de um golpe de estado, planeou a integração do país na NATO, levou ao extremo o confronto com a Rússia desconsiderando todas as suas reclamações, fechou os canais diplomáticos, instigou o confronto militar. E agora procura tirar dividendos junto da opinião pública, apontado a Rússia e Putin como intratáveis.
 
A Europa, mesmo com algumas tentativas frouxas de intermediação, acabou por sujeitar-se à linha dura definida a partir de Washington. Ainda mal refeita da devastação pandémica, vai arcar com o grosso dos previsíveis prejuízos da guerra: nova onda de refugiados, aumento geral dos preços, quebra nas reservas de energia, agravamento da estagnação económica, maior dependência face aos EUA. E, em vez de procurar vias de apaziguamento, lança achas na fogueira ucraniana e envereda pelo caminho da sua própria militarização, como bem mostrou o anúncio pelo chanceler Scholz de uma “nova era” na política de defesa da Alemanha.
 
A generosidade europeia em receber refugiados vai a par do fornecimento de armas ao regime de Kiev; a glorificação do patriotismo dos ucranianos é acompanhada de mirabolantes prognósticos de uma derrota militar russa. Tudo isto é uma fina cortina de fumo para esconder a falta de vontade que EUA e UE demonstraram em evitar a guerra e a aposta que fizeram de atirar a Ucrânia para o conflito, sabendo perfeitamente que o país não teria qualquer possibilidade de resistir. Toda a ajuda agora prestada a Zelensky destina-se apenas a prolongar a guerra para desgastar a Rússia o mais possível, à custa dos sacrifícios da população ucraniana.
 
As vozes que lamentam a falta de músculo da NATO e do Ocidente e fazem irresponsáveis apelos às armas são fruto directo da mesma política de confronto que empurrou os ucranianos para a frente de batalha. Têm o objectivo de criar condições para que a opinião pública mundial aceite o agravamento do conflito com a Rússia — em clima de nova guerra-fria — numa lógica primária de ou-nós-ou-eles, de razoabilidade contra loucura. 
 
As campanhas de diabolização de Saddam Hussein, de Muhamar Kadafi, do Islão, do mundo árabe, as teorias sobre o “choque de civilizações”, as mentiras montadas pelos serviços secretos — e o papel que tudo isso teve na preparação das opiniões públicas para as guerras que se seguiram — mostram o caminho que está a ser aberto quando se insulta Putin, o regime russo e a própria Rússia da forma mais descabelada.

 
Ver no conflito ucraniano uma luta entre duas concepções do mundo, entre autocracia e democracia, entre tirania e liberdade é uma mistificação. O que se disputa é o espaço que a perda de hegemonia do Ocidente imperialista deixa às novas potências que ontem estavam na sombra e eram por isso amesquinhadas, e que agora se afirmam com capacidade para competir no tabuleiro mundial. 
 
A nova ordem que o conflito anuncia, não se sabe ao certo que forma irá ter. Mas é seguro que reflectirá a alteração irremediável da balança de forças mundial. O alinhamento pelo campo dos EUA e da UE a pretexto de que representam “A Democracia” e “A Liberdade” é na verdade mais um episódio de capitulação — não já perante uma força ascendente, mas diante de um velho mundo em queda.
 
 
 
 As duas últimas fotos correspondem à destruição da Iuguslávia promovido pela ofensiva militar dos EUA/Nato.
 
In MUDAR de VIDA

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