O Ocidente diante das suas fragilidades
Manuel Raposo — 28 Março 2022
Elemento chave da guerra de propaganda do Ocidente contra a Rússia é o argumento de que está em causa um confronto entre Democracia e Autocracia. O argumento, estendendo-se para lá do conflito da Ucrânia, envolve igualmente a China e pretende fazer crer que existe uma conspiração de ditaduras e autocracias por esse mundo fora cujo objectivo é minar e derrubar os regimes democráticos ocidentais.
Esta suposta batalha pela democracia e pela liberdade é uma máscara sobre o que se passou e passa na Ucrânia. E é, simultaneamente, uma inversão dos factos ocorridos nos últimos trinta anos: têm sido as potências ocidentais, invocando uma superioridade moral que ninguém mais lhes reconhece, a promover agressões e a violar soberanias um pouco por todo o mundo, espezinhando a liberdade dos outros e aquilo a que chamam o direito internacional.
Um mal que vem de dentro
Torna-se evidente o propósito de mobilizar as opiniões públicas do mundo ocidental, escondendo-lhes as origens concretas do conflito ucraniano e o papel que nele tiveram o alargamento da NATO, a política expansionista dos EUA e o domínio, até aqui inquestionado, das potências imperialistas sobre o resto do mundo.
É também claro o propósito dos governantes ocidentais em obterem, da parte das populações europeia e norte-americana, uma carta branca para todas as acções de estímulo da guerra que estão a promover a pretexto de defenderem a liberdade e a democracia — ou, como dizem os propagandistas mais básicos, ”o nosso modo de vida”.
De alguma maneira, esta insistência revela como é fraco o cimento democrático do Ocidente. De facto, o que põe em causa os regimes democráticos ocidentais não são os ataques vindos de fora — é a própria decadência material, o cavar do fosso social, o apodrecimento das instituições, o esvaziamento da vida democrática que os atinge a partir de dentro. Os exemplos são claros para quem os queira ver.
O fim do progresso
As democracias ocidentais de hoje implantaram-se num número reduzido de países desenvolvidos e num tempo historicamente recente. Fundaram-se sobre um crescimento económico contínuo (assente na exploração de outros povos) que permitiu às suas classes dominantes comprar o silêncio e a acomodação das classes médias e debelar as reclamações das classes populares mais exploradas.
A crise desse crescimento, a estagnação económica instalada desde 2008, é o primeiro factor a minar as bases políticas dos regimes, e daí a sua crescente incapacidade para responderem às exigências de progresso social e a tendência para imporem cada vez maiores restrições às liberdades públicas.
O renascer do fascismo
O crescimento das forças extremistas de direita, desde a Europa aos EUA, é uma consequência da crise social que se instalou no ocidente capitalista e uma amostra de como as instituições democráticas não protegem as classes trabalhadoras (as autóctones e, menos ainda, as imigrantes) das ofensivas do fascismo. Pelo contrário, amparam essas forças e até vêem nelas um reduto de último recurso para defesa do poder das classes dominantes.
A tolerância com que a União Europeia encara as semi-ditaduras implantadas em estados membros como a Hungria ou a Polónia mostra como é permeável a fronteira entre as democracias ditas “liberais” e as chamadas “democracias iliberais” — termo este a que as sumidades pensantes da UE tiveram de deitar mão para poderem albergar no mesmo espaço de união política uma coisa e o seu contrário.
A subida de Trump à presidência do país mais poderoso e mais desenvolvido do mundo, que se gaba de ter a democracia mais elaborada do planeta, não pode ser vista como um mero episódio extravagante, mas como uma tendência latente em todos os países imperialistas. A substituição de Trump por Biden, apresentado como o seu oposto, mostra ao resto do mundo mais continuidade do que ruptura e, em muitos aspectos até, uma acentuação da agressividade norte-americana.
Que liberdade e que democracia?
Os povos do ocidente habituaram-se de tal modo a julgar a sua liberdade e os seus regimes democráticos pelo ritual dos actos eleitorais que já não se questionam sobre que democracia efectiva têm e de que liberdade real gozam.
Sabem apenas que as suas necessidades pessoais e colectivas sofrem cada vez maior erosão, que os políticos eleitos para governar representam sempre as mesmas forças dominantes, que o poder democrático é afinal monopólio de uma burguesia todo-poderosa que não abre mão dos seus privilégios.
E sabem também que o desenvolvimento económico (ou a falta dele) redunda de ano para ano em maiores desigualdades sociais. Por isso mesmo, uma percentagem enorme de cidadãos vira costas aos actos eleitorais, não vendo neles qualquer hipótese de expressão da sua vontade.
Que legitimidade democrática pode arrogar-se um poder eleito nestas condições, a não ser a “legitimidade” que resulta da força que detém?
Uma “livre escolha”… manipulada
A manipulação das opiniões públicas pelos regimes democráticos nem sempre faz uso dos métodos repressivos mais grosseiros de uma ditadura, mas é seguramente mais eficaz no condicionamento colectivo das mentalidades.
Isso mesmo ficou provado nas eleições norte-americanas de 2017 e no referendo do Brexit com a intervenção de especialistas na manipulação da opinião pública, fazendo uso de dados pessoais fornecidos pelas redes sociais, designadamente o Facebook.
A ideia de livre escolha do eleitor, no recato da urna de voto, nunca teve grande contacto com a realidade, tidas em conta as desigualdades que condicionam as opções de cada votante e as alternativas estreitas que lhe são colocadas. Mas com tais intervenções de sofisticada “modernidade” inaugurou-se seguramente uma nova era na técnica de enformar a opinião pública. Tudo menos a liberdade individual que a democracia dita liberal tem como emblema.
Nem lei nem justiça, apenas a força
Sempre que enfrentam resistências sérias aos seus interesses, as democracias ocidentais não as combatem de igual para igual com base na lei ou na justiça — procuram esmagá-las com base na força (económica, política, militar) que possuem.
Invasões de países soberanos, golpes de estado, sanções económicas mortíferas, sistemas prisionais ilegais como o de Guantânamo, legalização da tortura, perseguição de quem ousa denunciar crimes de Estado como Julian Assange, leis de excepção a pretexto do combate ao terrorismo são armas a que tais democracias não hesitam em recorrer para impor a sua vontade.
A natural repulsa por estes métodos arrasta consigo, da parte das populações atingidas, uma rejeição daquelas democracias em concreto, dos seus dirigentes e, em muitos casos, até dos seus povos, tidos como cúmplices das barbaridades cometidas pelos dirigentes que elegeram ou aceitaram.
A prova dos factos
Que podem interessar ao resto do mundo as democracias norte-americana ou europeias se elas apenas servem para que os eleitores dos EUA ou da Europa consagrem, periodicamente, uma política permanente de subjugação de povos e países?
Para as populações do resto do mundo, esta evidência conta mais para a rejeição do Ocidente e dos seus apregoados valores morais e políticos do que as acusações acerca das ambições “imperiais” de Vladimir Putin ou de Xi Jinping.
Interesses, não ideais
O Ocidente — que no fundo criou as condições para o desencadear da guerra e faz tudo para a prolongar à custa dos ucranianos — quer dar um cunho idealista ao conflito: democratas contra autocratas, civilização contra barbárie, gente de bem contra criminosos. Esta tentativa de dar cobertura ideológica aos seus próprios actos tem por fito esconder os interesses que se jogam no conflito.
O auxílio militar ao regime ucraniano não visa defender nenhum daqueles valores. Não se atrevendo a entrar directamente na guerra, EUA e UE remeteram-se no plano militar a uma postura defensiva, restando-lhes tentar meter a Federação Russa num atoleiro e desgastá-la o mais possível. Neste sentido, o conflito é, da parte dos EUA e dos acobardados europeus, mais uma guerra por procuração, agora não já em paragens longínquas, mas em terreno europeu e tendo os ucranianos como carne para canhão.
Virar de página
É certo que a invasão russa foi condenada por larga maioria na assembleia geral da ONU. Mas ver nisso uma vitória do “mundo livre” contra a “tirania” seria optimismo a mais. Com efeito, esta condenação formal não pode ser vista em separado de um outro facto: a maioria dos países, representando a esmagadora maioria da população do mundo, recusa alinhar nas sanções contra a Rússia decretadas por norte-americanos e europeus. Quer isto dizer que a condenação formal não tem correspondência na condenação prática pretendida pelos EUA e pela UE.
Se os valores apregoados pelas democracias ocidentais estivessem em jogo na Ucrânia e fossem vistos pelo resto do mundo como valores universais, certamente que o comportamento dos países do chamado Sul Global seria outro. Mais de meio mundo não apoia as sanções porque não vê razão de princípio nem interesse em se colocar do lado dos EUA e da UE.
Esse Mais-de-meio-mundo, na sua diversidade, apercebe-se do essencial da questão: o poderio, até agora imbatível, das potências imperialistas vai sendo posto em causa, tanto pelo gigantismo económico da China, como pela capacidade militar e decisão política demonstradas pela Rússia. E é neste virar de página que a maioria dos povos do mundo tende a apostar.
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