sexta-feira, 2 de abril de 2021

Líbia, Iraque: 10 e 18 anos depois, o caos.

Líbia, Iraque: 10 e 18 anos depois, o caos

Editor / Manlio Dinucci, il manifesto — 21 Março 2021

Hillary Clinton na Líbia: uma “vitória” sobre pilhas de cadáveres

 

Março é mês propício para os empreendimentos guerreiros do imperialismo. Fez agora 10 anos, a 19 de Março, a Líbia foi atacada e destruída por uma coligação militar norte-americana/europeia. Na mesma data (19 para 20 de Março), completaram-se 18 anos sobre a invasão do Iraque, com os mesmo efeitos destruidores. Num como noutro destes países impera hoje o caos, a luta entre gangues financiados por interesses externos. O Estado e todas as instituições sociais deixaram de existir. Muitas centenas de milhares de pessoas foram mortas (mais de um milhão só no Iraque), milhões foram deslocadas. As condições de vida caíram a pique. Os recursos naturais de ambos os países são saqueados metodicamente pelas empresas das potências que os atacaram.

 No caso do Iraque, sabe-se como a opinião pública foi habilmente neutralizada com mentiras a que a comunicação social deu uma criminosa guarida. As famosas “armas de destruição maciça” com que Saddam Hussein ameaçaria o mundo e a “nossa civilização”, nunca apareceram, porque eram simplesmente uma invenção da propaganda de guerra. Obtido o efeito manipulador, nem mais os dirigentes dos países cúmplices do ataque se preocuparam em dar outras justificações.

No caso da Líbia, foi mais simples: Muhamar Kadafi passou, de um dia para o outro, de amigo dos europeus a vilão, sem que se percebesse bem porquê. A opinião pública estava já de tal modo anestesiada que praticamente nem reagiu a mais esta acção de corsários — poupando aos corsários o esforço de inventarem desculpas.

O seguinte artigo de Manlio Dinucci, publicado recentemente no jornal italiano il manifesto, tem o mérito de revelar o pano de fundo da operação militar contra a Líbia. Por aí se vê que não apenas o interesse mais directo pelo petróleo e o gás esteve em jogo. Questões talvez até mais vitais para o imperialismo estiveram na raiz da agressão. Concretamente, os esforços que os países africanos estavam a empreender no sentido de marcarem distâncias face aos poderes imperialistas que os dominam — nomeadamente, pela criação de instituições financeiras próprias que os libertassem da carga do FMI, do Banco Mundial e do dólar.

Sintomaticamente, também no caso do Iraque, pouco antes de 2003, Saddam Hussein tinha mostrado intenções de passar a negociar as vendas de petróleo iraquiano em euros e não em dólares. Esta sim, se fosse avante, seria a sua verdadeira arma de “destruição maciça” — no caso, contra o dólar norte-americano.

Lembremos que, em ambos os casos, os EUA contaram com o apoio de uma trupe de vassalos, pelo que as justas acusações que Dinucci faz às autoridades italianas são extensíveis a outros Estados e Governos. Entre eles os Governos portugueses e os presidentes da República — não apenas da época dos acontecimentos, mas, ao longo dos anos, até agora. Cúmplices relapsos.

 

PORQUE É QUE, HÁ DEZ ANOS, A NATO DESTRUIU A LÍBIA

Manlio Dinucci / il manifesto

Há dez anos, em 19 de março de 2011, as forças dos EUA / NATO começaram o bombardeio aéreo-naval da Líbia. A guerra foi dirigida pelos Estados Unidos do princípio ao fim, primeiro por meio do Comando da África e, em seguida, por meio da NATO. Em sete meses, a Força Aérea EUA / NATO realizou 30 mil missões, das quais 10 mil de ataque, com mais de 40 mil bombas e mísseis.

A Itália — com o consentimento multipartidário do Parlamento (Partido Democrático na primeira fila) — participou na guerra com sete bases aéreas, com caças-bombardeiros, com porta-aviões e outros navios de guerra.

Mesmo antes da ofensiva aero-naval, sectores tribais e grupos islâmicos hostis ao Governo de Kadafi haviam sido financiados e armados na Líbia, e forças especiais, especialmente do Catar, foram infiltradas para iniciar confrontos armados dentro do país.

Foi deste modo destruído o Estado africano que, conforme documentou o Banco Mundial em 2010, tinha mantido “elevados níveis de crescimento económico”, com um aumento do PIB de 7,5% ao ano, e registado “elevados indicadores de desenvolvimento humano”, incluindo o acesso universal ao ensino básico e médio e, para mais de 40% da população escolar, ao ensino universitário.

Apesar das disparidades, o padrão de vida médio na Líbia era mais alto do que nos outros países africanos. Cerca de dois milhões de imigrantes, a maioria africanos, encontraram lá trabalho. O Estado líbio, que possuía as maiores reservas de petróleo da África e outras de gás natural, concedia margens de lucro limitadas às empresas estrangeiras. Graças às exportações de energia, a balança comercial da Líbia foi superavitária em 27 mil milhões de dólares por ano.

Com esses recursos, o Estado líbio investiu cerca de 150 mil milhões de dólares no exterior. Os investimentos da Líbia em África foram cruciais para o plano da União Africana de criar três organizações financeiras: o Fundo Monetário Africano, com sede em Yaoundé (Camarões); o Banco Central Africano, com sede em Abuja (Nigéria); o Banco Africano de Investimentos, com sede em Trípoli (Líbia). Esses órgãos serviriam para criar um mercado comum e uma moeda única para a África.

Não é por acaso que a guerra da NATO pela demolição do Estado líbio começou menos de dois meses após a cimeira da União Africana que, em 31 de Janeiro de 2011, decidiu a criação do Fundo Monetário Africano para esse mesmo ano. Isso é revelado pelos e-mails da secretária de Estado do governo Obama, Hillary Clinton, trazidos à luz pelo WikiLeaks: os Estados Unidos e a França queriam eliminar Kadafi antes que ele usasse as reservas de ouro da Líbia para criar uma moeda pan-africana alternativa ao dólar e ao franco CFA [franco das Colónias Francesas de África], moeda imposta pela França a 14 ex-colónias. (*)

Prova disto é o facto de, antes de os bombardeiros entrarem em acção em 2011, já os bancos terem entrado em acção: eles apreenderam 150 mil milhões de dólares investidos no exterior pelo Estado líbio, dos quais a maior parte desapareceu. Neste grande roubo, destaca-se o Goldman Sachs, o mais poderoso banco de investimentos dos Estados Unidos, do qual [o actual primeiro-ministro italiano] Mario Draghi foi vice-presidente.

Hoje, na Líbia, as receitas das exportações de energia são acumuladas por grupos de poder e multinacionais, no meio de uma situação caótica de confrontos armados. O padrão de vida da maioria da população entrou em colapso. Imigrantes africanos, acusados​de serem “mercenários de Kadafi”, foram presos até em jaulas de jardim zoológico, torturados e assassinados.

A Líbia tornou-se a principal rota de trânsito, nas mãos de traficantes de seres humanos, de um fluxo migratório caótico para a Europa que causou muito mais vítimas do que a guerra de 2011. Em Tawergha as milícias islâmicas de Misrata apoiadas pela NATO (as que assassinaram Kadafi em Outubro de 2011) realizaram uma verdadeira limpeza étnica, forçando quase 50 mil cidadãos líbios a fugir sem poder voltar.

De tudo isto é também responsável o parlamento italiano que, em 18 de Março de 2011, comprometeu o governo a “tomar todas as iniciativas” (ou seja, a entrada da Itália na guerra contra a Líbia) com o pretexto de “garantir a protecção das populações da região”.

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(*) Doze ex-colónias francesas da África Central e Ocidental, mais a Guiné-Bissau (ex-colónia portuguesa) e a Guiné Equatorial (ex-colónia espanhola) — Nota MV.

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