quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Notas sobre a novela do Orçamento

 Notas sobre a novela do Orçamento

Artigo de Manuel Raposo — 24 Outubro 2020


Longe das necessidades dos trabalhadores e dos pobres

O que há de mais admirável na discussão sobre o Orçamento do Estado 2021 é o facto de toda a direita, do presidente da República ao Chega, fazer força para que o documento seja “aprovado à esquerda”.

Basta isto para duas coisas ficarem claras. Uma, é que a direita confia na capacidade do PS para travar os “excessos” do BE e do PCP, ou, como diz António Costa, impor “bom senso” aos aliados da legislatura passada. Outra, é que as exigências do BE e do PCP não irão ao ponto de provocar uma crise governativa e que, feitas as contas, serão encaixadas pelo patronato sem sobressaltos de maior.

Sem dar de barato a batalha pelo OE, o capital conta desta vez com um suplemento de ânimo que o faz salivar: os milhares de milhões de “auxílio à recuperação” que a União Europeia promete derramar sobre um capitalismo abúlico, à beira da falência, só para o manter à tona de água. Podem então umas quantas migalhas orçamentais calar a boca ao trabalho, desde que os milhões da Europa não faltem nos cofres das empresas.

Estamos longe da arrogância que marcou os anos da troika, quando a direita e o patronato defendiam sem disfarce que o trabalho tinha de pagar a factura da crise porque “vivia acima das suas possibilidades”. Quando as virtudes de um governo se mediam pela “coragem política” em contrariar a vontade e as necessidades da população. Quando a austeridade era bandeira do poder e se dizia sem vergonha que o povo “ai aguenta, aguenta!”. Quando madame Jonet, a patroa do Banco Alimentar, vinha à televisão ensinar os pobres a lavarem os dentes com pouca água e a não comerem bifes todos os dias.

De facto, toda a direita, e o patronato com ela, toleram com bonomia aquilo que chamam o “sentido social” do OE 2021. As reclamações do capital para maior apoio às empresas não se manifestam em contraposição a esse lado dito “social” do OE, mas a par dele. Também não se insurgem contra o maior endividamento e o maior défice do Estado que os próximos anos implicarão, coisa que entre 2011 e 2019 foi o alfa e o ómega da política orçamental.

Percebe-se porquê. Desde logo, o que o Governo propõe fica a milhas das necessidades dos trabalhadores e da população mais empobrecida e não vai, de modo nenhum, travar a degradação de vida que já está em marcha, o que significa que sobra larga margem ao capital. Depois, o colapso económico que se perfila, somado à crise de 2008 — que ficou por resolver —, deixa de lado as preocupações de então, centradas na redução do défice do Estado e no controlo da dívida e atenuadas com um assalto aos bolsos dos assalariados.

Hoje, a burguesia tem a economia num sufoco. Teme o colapso dos negócios, que os milhões da Europa por si podem não evitar. Teme, talvez acima de tudo, a crise social que está à vista. “Crise social” quer dizer acirramento da luta de classes. Na óptica do capital, portanto, é preciso tudo menos protestos de massas radicalizadas, tudo menos quedas de governos, tudo menos greves fora de controlo. Todo o seu esforço vai no sentido de manter o poder unido em torno dessa outra troika personificada por Costa, Marcelo e Rio. Os apoios de Marcelo ao Governo, o apoio de Costa à recandidatura de Marcelo e o espírito “construtivo” de Rio (seguindo aliás os conselhos do patronato para que a oposição ao Governo seja “colaborante”), mostram agora em pleno a sua utilidade para socorro do regime.

Forçar um OE aprovado à esquerda, não significa uma tentativa, que seria absurda por parte da direita, de reconstituir a “geringonça” e de lhe confiar o governo do país nesta época de aperto. Ao contrário, trata-se de atirar sobre a esquerda o ónus das dificuldades e de um fracasso governativo que aí venha, e abrir campo a uma entrada dura da direita em cena. Isso pode suceder quando o PS e os seus parceiros à esquerda, desgastados com os problemas sanitários, económicos e sociais todos somados, se mostrarem incapazes de garantir condições para sustentar um governo. É esta perspectiva que leva Marcelo a dizer que um “bloco central” — isto é, um governo apoiado por PS e PSD — não seria bom para o “equilíbrio do sistema político” (apesar da larga maioria parlamentar de que gozaria), obviamente porque o desgaste atingiria então os dois principais partidos das classes dominantes.

Consideradas as aflições da conjuntura, o patronato agradece ao PS e à esquerda parlamentar o esforço de serem eles a tirar as castanhas do lume. Obviamente, não é que subir o salário mínimo, assegurar melhores condições de trabalho, defender a contratação colectiva, pôr travão aos despedimentos, exigir melhores cuidados de saúde, etc. seja pouca coisa ou tenha o aplauso do patronato. Mas a batalha parlamentar em volta desses objectivos não dará resultados duradouros e politicamente úteis para os trabalhadores se tudo ficar reduzido a tais reivindicações. Por muito que o patronato esteja disposto a ceder (e não está) na situação de aperto que os negócios atravessam, aquilo que os trabalhadores possam ganhar no braço de ferro do OE não passa de uma insignificância em relação àquilo de que necessitam e que ficará por ganhar. Essa a condição que o capital põe à partida; essa a realidade que os trabalhadores não podem esquecer.

Nas condições da crise actual do capitalismo, nenhuma batalha parlamentar, por si, responde às exigências que a luta de classes coloca aos trabalhadores. A esquerda parlamentar age na perspectiva de que o marasmo económico há-de passar e que a actuação reformista pode trazer, primeiro um ganho de tempo, depois um ganho material efectivo, uma vez “normalizado” o crescimento. Mas a crise que explodiu em 2008 e se prolonga sem fim à vista, agora agravada com a pandemia, não tem o carácter de uma crise cíclica, temporária. O capital mundializado chegou a um beco sem saída. A estagnação crónica é o seu estado normal e isso retira-lhe condições materiais para acolher uma política reformista, de pacto social, com cedências regulares ao trabalho. Está aqui a razão do crescimento da extrema-direita. Outro sindicalismo, outra acção política, outra mobilização de massas tornam-se necessários para enfrentar os novos tempos.
 
O original encontra-se em "jornalmudardevida.net"

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