Por ocasião do centenário da publicação do livro de V.I. Lénine
Que Fazer? Problemas candentes do nosso movimento.
Por Irina A. Murátova1, é filósofa marxista, docente no Instituto Politécnico de Kiev. O presente artigo fui públicado na revista Markcism e Sovremennost, nº 1-2 (22-23) de 2002, publicação fundada em 1995 pela União dos Comunistas da Ucrania (N. Ed.)
Nos nossos dias ouvimos não raras vezes que os comunistas devem responder aos desafios que são colocados pelo nosso século. Por tais desafios subentende-se habitualmente a alteração das condições históricas e as complexas questões relacionadas com os acontecimentos que conduziram à liquidação do socialismo na URSS e as suas consequências para o mundo no seu conjunto. Pensamos, no entanto, que o principal desafio dos comunistas, hoje, está no legado revolucionário teórico e prático de Lénine, em exclusiva conformidade e concordância com o qual, e aferindo por ele a nossa estratégia e táctica, podermos dar verdadeiramente uma resposta prática comunista às exigências da actualidade.
De facto, os pungentes trabalhos de polémica e crítica de Lénine dirigem-se aos comunistas de hoje, não em menor, mas até em maior medida do que aos seus contemporâneos, companheiros e adversários. Isto é uma evidência para quem consulta sistematicamente os escritos de Lénine em geral e, em particular, a obra Que Fazer?.
A brochura de Lénine foi escrita em 1902, num período de divergências, quando a principal atenção da social-democracia russa se concentrava no esclarecimento e resolução de questões partidárias internas. Havia pouco, no período entre 1894 e 1898, a social-democracia alcançara unidade ideológica e foram empreendidas tentativas para alcançar também a unidade na actividade prática, organizativa (fundar o Partido Operário Social-Democrata da Rússia). Nessa altura, a atenção dirigia-se para luta ideológica contra os adversários da social-democracia, por um lado, e para o desenvolvimento do trabalho partidário prático, por outro. Como tarefas via-se o aprofundamento e alargamento do trabalho prático, uma vez que não se levantavam quaisquer obstáculos ao nível dos pontos de vista gerais, princípios e da teoria, dado que na altura ainda não tinham surgido dificuldades na combinação da luta política com a luta económica. Entre a teoria e a prática dos sociais-democratas ainda não havia o antagonismo que surgiu na época do «economismo» (entre os anos de 1897-1898 e 1902), quando se agudizou bruscamente a contradição entre a teoria, programa, objectivos tácticos e a prática da social-democracia. Foi nesta sequência que se tornou necessário realizar uma «clarificação dos pressupostos teóricos do trabalho prático», antes de se encarar novamente o seu aprofundamento e alargamento. A necessidade de uma «”explicação” sistemática (…) com todos os “economistas” sobre todos os pontos capitais» das divergências exigia começar ab ovo (desde o princípio) e analisar as
dificuldades do ponto de vista da única teoria do socialismo revolucionário, só conhecida da humanidade contemporânea, isto é, o marxismo, o qual uma parte dos sociais-democratas pretendia meter na gaveta com base numa crítica oportunista e burguesa. A falta de princípios e de ideologia acabaria por levar estes últimos a colaborarem com os liberais. A exigência de «”uma atenção vigilante para o aspecto teórico do movimento revolucionário do proletariado”» e o apelo a criticar implacavelmente as tendências anti-revolucionárias haviam sido feitos em 1899, quando a «crise do
marxismo estava, desde há muito, na ordem do dia».
O desenlace desta luta teórica, e a saída desta crise, consistia na ruptura definitiva da tendência revolucionária com a tendência oportunista. O descuido em relação à teoria dá frutos amargos na prática. Lénine sublinha que «precisamente durante a revolução nos farão falta os resultados da luta teórica contra os críticos para lutar resolutamente contra as suas posições práticas!» Tal é a importância histórica da orientação iskrista-leninista.
Mas também hoje a crítica leninista aos «críticos» não só não perdeu a sua importância, como se tornou ainda mais actual. Com efeito, partido e organização combativa de revolucionários não são para cada comunista uma e a mesma coisa, com todas as consequências teóricas, políticas e organizativas que daí decorrem. Com frequência ouvem-se vozes entre os membros do partido de que, alegadamente, a revolução não é um assunto actual, de que o carácter revolucionário e de classe na teoria e na prática é hoje descabido. Sobre a ditadura do proletariado, caso não se tenha já renunciado ao princípio, o melhor é omiti-la, não é popular Socialização da propriedade? Também é melhor não a realçarmos, para não assustar, disfarcemos. Não será a nós que Lénine dirigiu a seguinte exigência: «Histórica e logicamente (…) toda a tendência revolucionária, se pensa realmente numa luta séria, não pode prescindir de [uma] organização revolucionária [de combate].» E tal organização só é possível se assentar numa base teórica firme e se se guiar por teoria revolucionária.
Sem teoria revolucionária não é possível um movimento revolucionário. Por exemplo, Lénine considerou que o grande mérito histórico dos [Lénine refere-se aqui à organização de combate dos partidários de «A Vontade do Povo»* foi o facto de terem procurado «integrar todos os descontentes na sua organização e orientá-la para a luta decidida contra a autocracia». «O seu erro», segundo Lénine, «consistiu em se terem baseado numa teoria que, na realidade, não era de modo algum uma teoria revolucionária, e não terem sabido, ou não terem podido, estabelecer um ligação firme entre o seu movimento e a luta de classes no seio da sociedade capitalista em desenvolvimento.»
Não será a nós que é dirigido o reparo de Lénine de que «só a mais grosseira incompreensão do marxismo (ou a sua «compreensão» no sentido do “struvismo”)** pode levar à opinião de que o aparecimento de um movimento operário espontâneo de massas nos exime da obrigação de criar uma organização de revolucionários tão boa como a dos partidários da “Terra e Liberdade”, ou até
incomparavelmente melhor». O movimento operário, pelo contrário, «impõe-nos precisamente esta obrigação, porque a luta espontânea do proletariado não se transformará na sua verdadeira “luta de classe” enquanto não for dirigida por uma forte organização de revolucionários». «Se começarmos por estabelecer de uma maneira sólida uma forte organização de revolucionários, podemos assegurar a estabilidade do movimento no seu conjunto».
Não assistimos hoje também a essa fuga às responsabilidades que Lénine desmascarou, e que agora ressurge sob o pretexto de que os operários são indiferentes, não lutam, de que não existe um movimento operário minimamente importante (quanto mais revolucionário!), de que o papel histórico da classe operária está a tornar-se duvidoso, e que, portanto, não é tempo para organizações
revolucionárias? Não serão os comunistas que pensam deste modo, consciente ou inconscientemente, porta-vozes das ideias que Lénine classificou sem rodeios de pequeno-burguesas, insistindo incessantemente na necessidade de romper com elas? Poder-se-á apresentar tais ideias a coberto do estandarte da militância comunista?
Lénine, ao exigir a ruptura definitiva com as ideias pequeno-burguesas sobre o socialismo, sublinhou o seu carácter «INCONTESTAVELMENTE reaccionário, por quanto se apresentam na qualidade de teorias socialistas».* «A Vontade do Povo» («Народная воля») foi uma organização revolucionária populista,
surgida em 1879 da cisão do partido «Terra e Liberdade» («Земля и воля»), que adoptou
métodos violentos de luta para forçar o regime a realizar reformas democráticas. (N. Ed.)
** O «struvismo» (Piotr Berngárdovitch Struve – 1870-1944) ou «marxismo legal» foi
uma tendência da burguesia liberal na Rússia dos anos 1890-1900 que, na aparência,
reconhecia o marxismo, mas expurgado da sua essência revolucionária e adaptado às suas
necessidades. Mais tarde foi a base teórica do «economismo» que, por sua vez, reduzia a
acção do proletariado a revindicações de carácter económico, reservando à burguesia liberal
a luta política.
« As teorias destes ideólogos da pequena burguesia, que se apresentam na qualidade de representantes dos interesses dos trabalhadores, são abertamente reaccionárias», neste ponto Lénine é categórico. «Dissimulam o antagonismo das actuais relações socioeconómicas (…), raciocinando como se a situação pudesse ser remediada com medidas de ordem geral, destinadas a satisfazer todos e a assegurar o “crescimento”, a “melhoria”, etc., como se fosse possível conciliar e unir. São reaccionários porque apresentam o nosso Estado como algo que está acima das classes e seria por isso apropriado e capaz de prestar uma ajuda minimamente séria e honesta à população explorada. «São reaccionários, por fim, porque não compreendem em absoluto a necessidade da luta, de uma luta encarniçada dos próprios trabalhadores para a sua emancipação. (…) Ao ouvi-los parece que seriam capazes de arranjar tudo por si próprios. Os operários podem ficar tranquilos.»«Romper RESOLUTAMENTE e DEFINITIVAMENTE com todas as ideias e teorias pequeno-burguesas – eis a principal lição preciosa», que Lénine exige que seja retirada da sua campanha contra os representantes de uma das tendências deste tipo de ideias socialistas pequeno-burguesas.
O marxismo «legal», oficial, burguês não é um fenómeno exclusivo do nosso tempo. Se confrontarmos as ideias expostas de forma tão completa e definida por Lénine com as ideias actuais de socialismo, não só entre socialistas como também entre comunistas, convencemo-nos do seu carácter pequeno-burguês (de pequenos proprietários), de que pertencem ao mesmo tipo de ideias com as quais Lénine
insiste na necessidade de romper. E devemos insistir nisto tanto quanto já naquele tempo estas ideias e correspondente táctica demonstraram que «na falta de uma crítica materialista das instituições políticas, e sem uma compreensão do carácter de classe do Estado contemporâneo, do radicalismo político ao oportunismo político não é mais que um passo».
Porém, não podemos dizer que a maioria dos comunistas actuais debate os problemas candentes do seu movimento com a mesma paixão e frontalidade com que Lénine o faz neste notável livro que, no seu tempo, levou para o debate aberto entre correligionários as questões mais candentes do movimento operário. Lénine qualificou de surpreendente miopia a atitude daqueles que encaravam a polémica e o debate como algo «inconveniente». Para informação de todos os adversários da clareza, da intransigência, do ardor da polémica, etc., refira-se que Lénine colocou como epígrafe na capa do seu livro um extracto de uma carta de Lassalle a Marx, de 24 de Junho de 1852, onde se sublinha algo que a lógica burocrática não será sequer capaz de suspeitar, nomeadamente: «A luta de partido dá ao Partido força e vitalidade; a maior prova da fraqueza de um partido é o seu amorfismo e o esbatimento de fronteiras nitidamente delimitadas; o Partido reforça-se depurando-se».
A análise de Lénine das principais divergências do movimento serviu precisamente para delimitar fronteiras entre os partidos da revolução social e os partidos democráticos das reformas sociais, bem como contribuiu para intensificar a luta da social-democracia revolucionária contra a burguesia social-reformadora. O trabalho Que Fazer? revelou a profunda diferença qualitativa entre as ideias dos
democratas e dos socialistas, ajudou a tomar consciência do abismo que as separa, permitiu compreender a inevitabilidade e a necessidade imperiosa da ruptura total e definitiva com as ideias dos democratas. Permitiu compreender, com a mesma clareza, que «socialismo é o protesto e a luta contra a exploração dos trabalhadores, luta orientada para a supressão completa desta exploração», e
que remediar e remendar a sociedade burguesa actual, em vez de a combater, é a principal concepção teórica dos democratas que permanecem no campo das relações sociais vigentes, que vêem no órgão do Estado, que se desenvolveu no quadro desta sociedade burguesa e que protege os interesses das classes nela dominantes, o instrumento para as reformas. Por fim, o livro contribuiu para o rompimento definitivo da corrente revolucionária com a corrente oportunista, de que atrás se falou. «Infinita humilhação e auto-aviltamento do socialismo perante o mundo inteiro, corrupção da consciência socialista das massas operárias – a única base que nos pode assegurar a vitória», foi assim que Lénine qualificou as acções dos partidários europeus dos «partidos das reformas», que concebem a democracia como a eliminação da dominação de classe e a colaboração de classes, e introduzem
no socialismo elementos e ideias burguesas.
Fechando os olhos ao antagonismo entre os interesses da classe operária e os interesses da burguesia, a corrente oportunista no socialismo e no proletariado corrompeu a consciência socialista, banalizando o marxismo, propagando a teoria da amenização das contradições sociais, declarando absurda a ideia da revolução social e da ditadura do proletariado, reduzindo o movimento operário e a luta de classes ao trade-unionismo estreito e à luta «realista» por pequenas reformas graduais. Isto «era exactamente o mesmo que se a democracia burguesa negasse o direito do socialismo à independência e, por consequência, o seu direito à existência; na prática isto significava tender a converter o nascente movimento operário em apêndice dos liberais».19 A ruptura era necessária e inevitável, de outro modo o socialismo revolucionário teria desaparecido.
No movimento comunista actual está de novo colocada na ordem do dia a necessidade de uma delimitação nítida das fronteiras da corrente marxista revolucionária. O conteúdo da actividade de muitos partidos que se chamam comunistas não corresponde a este nome. Isto é particularmente alarmante numa situação em que os trabalhadores manifestam uma importante confiança nos comunistas, apesar de tudo: apesar das dúvidas que suscitam alguns líderes partidários, apesar da inconsequência de muitas decisões e acções desses partidos. Justificar esta confiança, conferir à actividade destes partidos um carácter e conteúdo realmente comunistas, ser comunista na prática e não só no nome – construir de facto uma organização revolucionária – eis a tarefa que se vai divisando ante os comunistas no decurso dos acontecimentos.
Hoje estão de novo em marcha as ideias e teorias que «dissimulam o antagonismo das actuais relações socioeconómicas», apresentando-as «como se a situação pudesse ser remediada com medidas de ordem geral, destinadas a satisfazer todos e a assegurar o “crescimento”, a “melhoria”, etc.», como se fosse possível conciliar e unir todos e chegar a acordo sobre tudo. Neste sentido ganha importância a principal «lição útil» que Lenine exige que se retire da crítica destas concepções, nomeadamente: os comunistas devem «Romper RESOLUTAMENTE e DEFINITIVAMENTE com todas as ideias e teorias pequeno-burguesas», não admitindo que renasçam sob a bandeira do partido comunista; devem contraporlhes uma visão directa sobre a realidade e sobre as relações socioeconómicas e reconhecer abertamente que não há outro caminho para o socialismo senão através do movimento operário.
Numa situação em que as questões controversas do movimento comunista não só não são levantadas, mas com frequência silenciadas, em que se procura abafar, dissimular, aplanar ou mesmo ocultar as divergências sobre questões de princípio, conservando-se uma unanimidade amorfa e indiferente, o livro de Lénine actua como um crítico intransigente, que exige uma «explicação sistemática (…) sobre
todos os pontos capitais (…) das divergências» entre comunistas, coloca questões incómodas e dá respostas objectivas. Mostra a necessidade de «um trabalho mais corajoso, mais amplo, mais unificado, mais centralizado»,20 na altura feito em torno do jornal Iskra, que agora urge fazer no movimento comunista actual.
Também hoje este livro – um combatente provado, um polemista experiente, um organizador colectivo, um propagandista e um agitador – presta um serviço à causa da formação de uma organização revolucionária. É apenas preciso estudá-lo e armarmo-nos com as suas teses de princípio.
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