segunda-feira, 29 de agosto de 2022

A quem serve a fantasia de uma vitória ucraniana?

A quem serve a fantasia de uma vitória ucraniana?

Não é vocação destas páginas olhar para a guerra na Ucrânia pelo lado estritamente militar. O artigo a que damos divulgação, contudo, embora centrado nas operações militares, permite abordar questões de natureza política que nos parecem de primeira importância. Uma das quais é esta: não estando à vista, nem sendo plausível, uma vitória dos ucranianos na guerra, por que razão insistem Zelensky e os seus apoiantes ocidentais (EUA, Nato, UE) em recusar negociações com a Rússia e em afirmar que o conflito só terminará com a expulsão completa das tropas russas?

William Schryver denuncia a preparação das forças armadas ucranianas pela Nato para atacar o Donbass e a Crimeia desde final de 2021, acusa os ucranianos de usarem instalações civis como escudos para as suas operações militares, confirmando as revelações recentes da Amnistia Internacional, e desmente várias das alegações dos meios ocidentais sobre supostas vitórias ucranianas e derrotas russas. 

A ficção de uma vitória ucraniana é uma manobra propagandística que serve apenas um propósito: prolongar a guerra. Com isto se justifica o envio maciço de armas, o aumento dos gastos militares, o reforço da Nato, a vassalagem da Europa às ambições norte-americanas.

Só esporádica e timidamente algumas vozes têm contrariado a ideia fantasiosa de uma derrota militar russa. Os meios de informação afinam todos pelo mesmo diapasão: instilar na opinião pública a noção de que a guerra merece ser combatida porque pode ser vencida pela Ucrânia — e, através dela, pelos EUA, pela UE, pela Nato…

Os custos desta fantasia recaem, primeiro sobre os ucranianos sacrificados, depois sobre os povos europeus, depois ainda, em ondas de choque sucessivas, sobre os povos mais pobres do mundo. Esta catástrofe global agrava-se a olhos vistos por cada semana que passa.

O bloqueio dos meios de informação russos — na medida em que impede o confronto de versões diversas dos factos — cumpre a missão de esconder do público europeu e ocidental o que se passa realmente no terreno, e que (como se deduz das afirmações de Schryver) consiste num avanço, paulatino mas seguro, das tropas russas que, passo a passo, trituram a resistência das forças armadas ucranianas. Sem aquele confronto, ficam os propagandistas ocidentais com mãos livres para moldarem a cabeça do público com a sua versão exclusiva dos acontecimentos.

Para avaliar a monstruosidade do que está a suceder sob os nossos olhos, lembremos isto: antes de 24 de fevereiro estava sobre a mesa uma possibilidade de resolução pacífica da questão ucraniana. Se os acordos de Minsk, como a Rússia propunha, tivessem sido aceites pelos EUA e pela UE, a guerra teria sido evitada e a Ucrânia manteria o seu território de então. O preço a pagar por esta opção seria: as repúblicas do Donbass ganhariam autonomia política, mas permaneceriam na Ucrânia; a Ucrânia seria um país neutro, sem presença da Nato. E, neste quadro, é de admitir que a questão da Crimeia pudesse ser regulada por via negocial. Os primeiros responsáveis pela guerra são os que não quiseram aceitar este compromisso e tornaram a acção militar russa inevitável.

A degradação da vida social na Europa é evidente. Perante isso, a preocupação dos dirigentes políticos, nacionais e europeus, e dos seus propagandistas não é mudar o rumo desastroso por onde seguem — é convencer as populações atingidas de que têm de fazer sacrifícios. Mas sacrifícios em nome de quê? Em nome de uma guerra que nenhum europeu quis, que arrasa a Ucrânia e empurra os povos europeus para um precipício — não apenas económico e político, mas também, possivelmente, militar em escala alargada.

Mais tarde ou mais cedo, os povos da Europa terão de abordar a questão da guerra e do seu prolongamento indefinido, não pelo prisma dos dirigentes políticos que lhes exigem sacrifícios intermináveis e inaceitáveis, mas sim pelo prisma dos seus interesses próprios: até quando assistir impávidos à morte de milhares de pessoas? até quando aceitar os gastos colossais com a Nato e com a tropa? até quando tolerar os cortes nos apoios sociais? até quando suportar a carestia dos bens alimentares? até quando permitir cortes no consumo e aumentos de preços do gás e da electricidade? até quando correr os riscos de um alastramento da guerra? até quando deixar que os fascistas e a extrema-direita tirem dividendos da política suicida dos dirigentes europeus?

Questões como estas entroncam directamente nas escolhas políticas das autoridades europeias e dos nossos governantes. Quanto mais cedo forem enfrentadas, melhor.

 

A DESTRUIÇÃO DAS FORÇAS ARMADAS UCRANIANAS PELA RÚSSIA

William Schryver, imetatronink, 9 julho 2022

A “desmilitarização” da Ucrânia tem sido precisamente a ideia russa na Ucrânia. O seu principal objectivo, desde o início, conforme explicitamente afirmado pelo presidente Vladimir Putin no seu discurso histórico de 24 de fevereiro de 2022, era “desmilitarizar” a Ucrânia – destruir o seu exército. 

Quando a guerra começou, as forças ucranianas mais capazes, experientes, bem armadas e bem posicionadas NÃO estavam em Kiev, mas no Donbass e em Mariupol. Estavam a posicionar-se lá desde há meses, com o objectivo final de retomar o Donbass e a Crimeia – um objectivo que sempre esteve nas mentes dos líderes ideológicos e políticos da Ucrânia. 

Na verdade, eles falaram disso abertamente e sem reserva. Acreditavam firmemente que a capacidade das suas forças armadas, após oito anos de preparação, tinha chegado a um ponto que permitia alcançar esse objectivo. 

Os seus protectores na Nato encorajaram-nos a acreditar nisso – pois o maior sonho da Nato também era erguer as suas bandeiras sobre a base naval de Sebastopol e, assim, exercer domínio sobre todo o Mar Negro e o Bósforo.

De acordo com este e muitos outros objectivos geoestratégicos — acima de todos eles, travar o ressurgimento russo — a Nato fornece armas à Ucrânia há anos, e esses envios de armas foram expandidos e acelerados drasticamente no final de 2021. 

Dezenas de milhares de soldados ucranianos foram treinados no uso desses armamentos da Nato. E, como era sabido por qualquer pessoa que prestasse alguma atenção ao assunto, milhares de agentes de serviços de informação ocidentais, forças especiais e agências de mercenários (predominantemente americanos, britânicos e franceses – e em grande quantidade) foram incorporados nas forças ucranianas da linha de frente. Vários deles já foram mortos ou capturados, mas ainda resta um contingente substancial. 

Muitas dessas tropas ocidentais estão lá principalmente para coordenar a recepção, interpretação e uso “praticável” de dados altamente valorizados e, ainda mais, altamente secretos dos EUA/Nato (dados de informação, vigilância e reconhecimento).

 

O maior de todos os exércitos mandatários [proxy armies]

O exército que os EUA/Nato construíram na Ucrânia tinha crescido, no início de 2022, a ponto de se tornar a maior e mais bem armada força militar terrestre da Europa. Por quase todas as bitolas, era mais poderosa do que os exércitos combinados da Alemanha, França e Itália.

[Comparando algumas das forças terrestres existentes em 2022 na Ucrânia com as existentes no conjunto Alemanha+França+Itália temos o seguinte. Tanques: 2.596 contra 266+406+200. Veículos blindados: 12.303 contra 9.217+6.558+6.908. Diversos tipos de artilharia: 3.597 peças contra 159+227+183. Soldados: 500.000 contra 200.000+240.000+190.000]

As forças armadas ucranianas foram construídas especificamente para servir os interesses do império norte-americano no seu objectivo, há muito estabelecido, de mutilar a Rússia e impedir que ela volte a exercer influência global; para levar a cabo o seu desmembramento final e reduzi-la a um fragmento ténue do seu antigo status e glória. 

A decisão russa de invadir a Ucrânia no final de fevereiro de 2022 foi motivada e baseada em todos esses factores em conjunto, e foi acelerada pelos ataques generalizados de artilharia ucraniana na região de Donbass que tinham começado semanas antes. 

Destruir esse poderoso exército mandatário que os Estados Unidos e os seus parceiros da Nato construíram metodicamente nas suas fronteiras foi, lógica e manifestamente, o principal objectivo da Rússia. Não havia outro.

A eliminação dessa poderosa ameaça, colocada literalmente à sua porta, foi compreensivelmente vista pelos russos como um imperativo existencial.

 

Destruindo o maior de todos os exércitos mandatários

Para melhor alcançarem esse objectivo, efectuaram um estratagema russo clássico para impedir que as forças do norte da Ucrânia fossem reforçar as do leste e do sul assim que a luta começasse. 

Foi por isso que os russos conduziram a elaborada operação de “feint and fix” [“simular” um ataque e “fixar” as tropas ucranianas] em Kiev e nos arredores. E, considerando tudo, a operação funcionou perfeitamente. 

Dito isso, é essencial entender que as maiores e mais eficazes simulações devem ser convincentes. E, para serem convincentes, muitas vezes correm o risco de sair caras. As melhores simulações são baseadas numa análise de custo/benefício cujo “benefício” geralmente representa o objectivo principal de uma guerra. 

No caso da operação de simulação e fixação em Kiev, houve um custo substancial – embora não fosse tão caro quanto os propagandistas de guerra ocidentais tentaram retratar. Isso ocorre porque grande parte da simulação consistia em demonstrações de intenção, em vez de acções concretas. 

Por exemplo, depois de alcançarem o domínio aéreo nos primeiros dias da guerra, os russos montaram uma enorme coluna blindada e conduziram-na à vontade pela estrada principal do norte em direcção a Kiev. Então, estacionaram-na lá por muitos dias, ocasionalmente fingindo ir numa direcção ou outra, antes de finalmente recuarem para as suas próprias fronteiras e juntarem-se às forças que se preparavam para lançar a ofensiva principal no Donbass.

Tudo o que fizeram ao norte de Kiev foi para exibição. Eles não quebraram, as suas tropas não fugiram, não ficaram sem combustível. Foi apenas uma grande “simulação em força”. 

Até a Bielorrússia ajudou à teatralidade reunindo tropas e veículos, movendo-os agressivamente para a fronteira da Ucrânia e fazendo ameaças veladas de se juntar ao ataque russo a Kiev – o que, é claro, eles nunca fizeram, porque tal ataque nunca foi encarado. E essas manifestações agressivas da Bielorrússia cessaram assim que os russos concluíram a operação de simulação e moveram as suas forças para o sudeste. 

O resultado dessa operação de simulação foi que, ao longo de várias semanas, os russos efectivamente “fixaram” mais de 100.000 soldados ucranianos e seus equipamentos nas proximidades de Kiev, assumiram o controle dos principais nós de transporte e corredores entre Kiev e o Donbass, e simultaneamente, conduziram uma grande ofensiva para cercar e aniquilar o grupo do exército ucraniano de 20.000 homens em Mariupol, uma cidade portuária altamente estratégica na costa do Mar de Azov.

As forças em Mariupol incluíam o notório “Batalhão Azov” neonazi, cujo armamento e treino há muito eram uma prioridade dos EUA/Nato, e eram considerados um dos componentes mais tremendos do exército ucraniano. 

As forças em Mariupol também incluíam muitas dezenas de “conselheiros” da Nato (CIA, forças especiais e os chamados “contratados”). Também estiveram presentes cerca de 2.500 mercenários estrangeiros, a maioria deles veteranos da Nato das guerras no Iraque e no Afeganistão. 

Enquanto reforços [ucranianos] potenciais permaneceram inactivos e paralisados em Kiev e nos arredores, a poderosa força em Mariupol foi metodicamente cercada e sistematicamente aniquilada numa operação que, estou certo, será estudada em escolas militares, durante gerações, como uma das mais impressionantes operações de guerra urbana já executadas. 

Os russos reverteram completamente a proporção de baixas geralmente aceite entre atacante e defensor, e fizeram-no contra um inimigo protegido por fortificações maciças e complexas que haviam sido preparadas, durante anos, dentro da extensa siderurgia Azovstal.

Enquanto tudo isso acontecia, as forças russas e os seus aliados das repúblicas de Donetsk e Lugansk empenharam-se em “moldar o campo de batalha” na região de Donbass em antecipação à próxima e mais importante etapa da guerra. 

Tenha-se em conta que as forças ucranianas no Donbass passaram oito longos anos construindo na região uma série elaborada de fortificações consolidadas com o objectivo de resistir a um ataque dos russos e infligir-lhes danos severos quando o fizessem. 

Evidentemente, os russos sabiam de tudo isso e planearam claramente um curso de acção destinado a superar as vantagens que acresciam para os ucranianos em resultado das suas fortificações e das suas tácticas condenáveis de usar civis e habitações como escudos. 

[Uma vitória esmagadora]

Como as coisas estão agora, no início de julho, é incontestável que a operação russa no Donbass foi uma vitória esmagadora. É, na minha opinião, a gestão mais impressionante de um campo de batalha quase-urbano na história moderna. A força original, composta por mais de 60.000 dos soldados mais bem treinados e equipados do exército ucraniano, foi efectivamente destruída. Sofreu perdas catastróficas dos seus quadros profissionais experientes e treinados pela Nato. As suas perdas maciças de pessoal foram parcialmente repostas por tropas de milícias territoriais mal treinadas, mas as suas perdas ainda mais maciças de armamento pesado não podem ser repostas.

Descrevi a estratégia e as tácticas russas num artigo anterior. Eis um breve resumo da abordagem táctica russa para a batalha do Donbass: 

Passo 1: Unidades de reconhecimento avançadas (geralmente em força, com dezenas ou centenas de drones no ar) para avaliar a situação; conduzir o fogo; retransmitir aos comandantes por vídeo e por geocoordenadas. 

Passo 2: Com enxames de drones para correcção de alvos, transmitir vídeo de ataque em tempo real, continuar a atacar as fortificações com artilharia rebocada e móvel, sistemas de lançamento múltiplo de foguetes (em gradações de força e precisão) e até terríveis munições termobáricas para alvos particularmente escolhidos. 

Deixar passar o fumo. Repetir o Passo 1. Ainda há algo que mexe? Repetir o Passo 2. Repetir o Passo 1. Corpos mortos por todo o lado? 

Passo 3: Enviar tanques e infantaria para limpar. Seguir para a próxima série de fortificações. E assim por diante… 

É por isso que a Ucrânia agora sofre centenas de mortes em batalha todos os dias. E é também por isso que, durante meses, os russos sofreram muito poucas baixas – uma proporção de 1 para 10 e, provavelmente, muito menor.

A artilharia (com ocasionais ataques aéreos e de mísseis de precisão) está a fazer toda a luta. O objectivo russo NUNCA foi “tomar Kiev”. Já ouvi todos os argumentos e racionalizações em contrário. Eles são comprovadamente falaciosos. O principal objectivo russo foi SEMPRE destruir o exército ucraniano, cujos grupos mais poderosos estavam posicionados no Donbass e em Mariupol. E têm feito isso COMPLETAMENTE. 

Estou igualmente convencido de que a “desmilitarização” continuará a ser o objectivo russo na Ucrânia até que os ucranianos implorem a rendição, aceitando quaisquer termos propostos pelos russos. Só então a disposição do território será decidida de uma vez por todas, e se o mapa incluir um topónimo para uma Ucrânia soberana, provavelmente será algo como a imagem em baixo  mostra.

Só esperamos que os fanáticos desesperados do império-a-todo-o-custo em Londres e Washington não cometam um erro fatal nas suas tentativas vãs de manter a sua hegemonia diante de um mundo multipolar que ressurge. 

Poderá ser este o mapa da Ucrânia depois da guerra

Correcção (27.8.22): O texto de William Schryver foi originalmente divulgado pelo autor no site imetatronink em 9 de julho. Contrariamente ao que tínhamos dito, Schryver não é militar.

Tradução e adaptação: MV.

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