Atrás referimos que a consciência socialista é para Lénine a única base que pode garantir a vitória do comunismo. Foi em torno desta questão (a relação entre a consciência e a espontaneidade) que Lénine identificou a essência das divergências entre os ideólogos da época da «crise do marxismo», reflectida no livro Que Fazer?.
No entendimento de Lénine, a social-democracia [assim se chamava na altura o socialismo revolucionário (N. Ed.)] é a junção do movimento operário com o socialismo. Aos ideólogos da classe operária cumpre contribuir para o desenvolvimento da consciência de classe do proletariado, da sua organização e coesão para a luta política contra o regime capitalista. Mas Lénine exige que a questão da consciência esteja presente tanto no trabalho teórico como no político e organizativo, considerando que a fraqueza do movimento operário reside precisamente na insuficiente consciência e iniciativa dos dirigentes revolucionários.
Por isso, na sua opinião, a análise destas divergências é de um enorme interesse geral e merecedora de atenção, uma vez que a tarefa dos comunistas não é sobreporem-se mas sim elevar o movimento operário ao nível do seu programa.
Hoje, como há 100 anos, nem todos os comunistas compreendem a afirmação de Lénine de que os operários não tinham nem podiam ter consciência socialista.
Vemos de novo comunistas, de que Marx falou, que apenas vêem miséria na miséria, não descortinando o seu aspecto destruidor, revolucionário, que derrubará a velha sociedade. Afirmam que não existem «manifestações» do movimento operário. Esta expressão corrente, assinala Lénine, decorre antes de mais de uma compreensão imprópria e indecorosamente estreita da teoria de Marx.
Em resposta a tais conjecturas, salienta que só um conhecimento superficial pode levar a pensar que Marx agiu perante um proletariado preparado. «O programa comunista de Marx foi por ele elaborado antes de 1848 (…) O movimento operário social-democrata, que mostrou a todos de forma evidente o
papel revolucionário e unificador do capitalismo, começou duas décadas mais tarde, quando a doutrina científica do socialismo tomou a sua forma definitiva, quando a grande indústria se difundiu mais amplamente e surgiram numerosos divulgadores, enérgicos e talentosos, desta doutrina nos meios operários.
Fazendo uma interpretação falsa dos factos históricos e esquecendo o enorme trabalho investido pelos socialistas para infundir consciência e organização ao movimento operário, os nossos filósofos, além disso, atribuem a Marx as concepções fatalistas mais absurdas. Como se, na sua opinião, a organização e a socialização dos operários ocorressem por si próprias e, consequentemente, alegam, se ao vermos
o capitalismo não vemos o movimento operário então isso é porque o capitalismo não cumpre a sua missão e não porque nós trabalhamos ainda de forma insuficiente na organização e propaganda entre os operários».Pior ainda é quando, a partir desta objecção sobre a falta de movimento operário, começam a sonhar com a «pacificação da luta económica secular das classes antagónicas».
Em vez de cairmos no «manilovismo», escreve Lénine, é preciso compreender que se deve procurar dar à luta organização e consciência e que para isso é preciso empenharmo-nos na militância comunista. Para que «a acção progressiva do capitalismo» se revele, é preciso que os comunistas se lancem energicamente ao trabalho pela sua causa: elaborar uma interpretação detalhada da nossa história e da realidade actual, identificando no concreto todas as formas de luta de classe e exploração; divulgar esta teoria junto dos operários, ajudá-los a assimilá-la, e conceber as formas de organização mais apropriadas às condições actuais para difundir o comunismo e unir os operários numa força política.
Como Lénine sublinha, a consciência da oposição irreconciliável entre os interesses dos operários e todo o actual regime político e social, ou seja, a consciência socialista, não surge do antagonismo espontâneo entre operários e patrões, esta só pode ser introduzida de fora. «A classe operária, exclusivamente com as suas próprias forças, só é capaz de desenvolver uma consciência trade -unionista, quer dizer, a convicção de que é necessário agrupar-se em sindicatos, lutar contra os patrões, exigir do governo estas ou aquelas leis necessárias aos operários, etc. Por seu lado, a doutrina do socialismo nasceu de teorias filosóficas, históricas elaboradas por representantes instruídos das classes possidentes, por intelectuais.»
Deste modo, a doutrina teórica do socialismo científico contemporâneo surge de modo completamente independente do crescimento espontâneo do movimento operário, surge como resultado do desenvolvimento do pensamento da intelligentsia socialista revolucionária. Concordando com K. Kautski, Lénine demonstra que se trata de um profundo erro imaginar que o movimento operário, por si próprio, é capaz de elaborar uma ideologia independente. É completamente erróneo imaginar que a consciência socialista constitui um resultado directo da luta de classes do proletariado. Como doutrina é evidente que o socialismo tem as suas raízes nas relações económicas actuais tal como a luta de classe do proletariado.
«Mas o socialismo e a luta de classes surgem um ao lado do outro e não derivam um do outro; surgem de premissas diferentes. A consciência socialista moderna não pode surgir senão na base de profundos conhecimentos científicos»A presença de revolucionários, ideólogos e dirigentes suficientemente
preparados e armados com a teoria socialista é uma condição necessária para assegurar o carácter socialista do movimento operário, uma vez que é necessário desenvolver a consciência política da classe operária até ao nível da consciência política socialista. A tese de que «a consciência socialista é algo introduzido de fora na luta de classe do proletariado e não algo que surgiu espontaneamente no
seu seio» comporta um série de importantes conclusões:
1. Aos ideólogos do movimento operário exige-se consciência. A insuficiente consciência e iniciativa dos dirigentes revolucionários, a sua impreparação para levarem a cabo as tarefas gigantescas de direcção ideológica e de concentração dos operários numa força política são vistas como uma manifestação de fraqueza do movimento operário. A este propósito sublinha a recomendação de Engels: «Em particular, os dirigentes deverão instruir-se cada vez mais em todas as questões teóricas, libertar-se cada vez mais da influência da fraseologia tradicional, própria da antiga concepção do mundo, e ter sempre presente que o socialismo, desde que se tornou uma ciência, exige ser tratado como uma ciência, isto é, ser estudado. A consciência assim alcançada e cada vez mais lúcida deve
ser difundida entre as massas operárias com grande zelo e deve consolidar-se cada vez mais fortemente a organização do partido e a dos sindicatos».
2. É a unidade ideológica que determina a unidade organizativa e prática do partido, o que transmite consciência e unidade à luta revolucionária do proletariado. Está relacionada com isto a tese da necessidade de junção da teoria marxista com o movimento operário, sem a qual o movimento não se torna independente e revolucionário, mas permanece subordinado à burguesia quer em termos
ideológicos quer em termos práticos. Ao mesmo tempo, também a teoria, mesmo a mais revolucionária, corre o risco de não passar de boas intenções se não se efectuar a sua junção com as forças revolucionárias reais.
No entanto, em certas circunstâncias, a junção do movimento operário com o socialismo não ocorre, permanecendo como objectivo. Foi o caso do grupo «Emancipação do Trabalho», que, como assinalou Lénine, apenas no plano teórico fundou a social-democracia e deu o primeiro passo ao encontro do movimento operário. A fundação no plano teórico significa que alcançou a unidade ideológica marxista, o que preparou as bases para a unidade prática e organizativa do movimento do proletariado na Rússia.
A principal tarefa teórica do marxismo é destruir a mentira dos ideólogos burgueses sobre a realidade, independentemente das suas boas intenções ou boa consciência. «O primeiro dever daqueles que querem procurar “os caminhos paraa felicidade da humanidade” é não se enganarem a eles próprios, é terem a coragem de reconhecer abertamente aquilo que existe. E quando os ideólogos dos trabalhadores compreenderem isto e o sentirem, então reconhecerão que os “ideais” devem consistir em (…) formular as tarefas e objectivos desta “dura luta das classes sociais”, que é travada ante os nossos olhos na nossa sociedade capitalista; que o êxito se mede (…) não pela elaboração de conselhos à “sociedade” e ao “Estado”, mas pelo grau de difusão destes ideais numa determinada classe da sociedade; que o ideal mais elevado não vale um tostão furado enquanto não souberdes fundi-lo solidamente com os interesses daqueles que tomam parte na luta económica». Conferir um carácter ideológico à luta em curso – eis a base sob a qual Lénine considera necessário construir o programa. «O marxismo encontra os seus critérios de avaliação na formulação e na explicação
teórica da luta que se trava ante os nossos olhos das classes sociais e dos interesses económicos».
Deste modo, as questões da teoria não são de modo nenhum bagatelas, nem são inócuos os erros teóricos. Por trás dos raciocínios teóricos estão interesses, e a teoria é a representação dos diferentes interesses das diferentes forças sociais. A diferença de concepções sobre uma mesma realidade conduz na prática, como resultado, a diferentes sistemas de acção. A diferença num aspecto teórico, por exemplo, uma concepção diferente sobre o domínio do capital, arrasta consigo uma
diferença prática. É precisamente da concepção da realidade que decorre directamente o programa de acção, e do grau de objectividade desta concepção depende o programa em concreto que dela decorre, depende no fim de contas o êxito do seu cumprimento.
Se o ideólogo está em condições de compreender que o capitalismo não é uma casualidade, mas um produto directo do actual sistema económico (social, político e jurídico), que se formou na luta entre forças sociais opostas, então encontrará a saída no desenvolvimento das contradições de classe desse regime económico; verá que não há saída da sociedade burguesa fora da luta de classe do proletariado
contra a burguesia. A luta contra uma classe só pode ser travada por outra classe – eis a saída. Neste caso, a tarefa do ideólogo será servir única e exclusivamente essa classe, o seu desenvolvimento autónomo e pensamento independente, o que não só diminuirá o tempo de existência da sociedade burguesa, acelerando o seu declínio, como lhe porá fim, dando mais força e capacidade combativa à classe operária. Lá onde o capital domina tudo, lá onde é travada uma luta surda de interesses é preciso «não encobri-la, mas expô-la; não sonhar: “melhor seria que fosse sem luta”, mas desenvolvê-la para a tornar mais vigorosa, contínua, consequente e, sobretudo, mais ideológica».
Assim, Lénine insiste na unidade dos aspectos teóricos e práticos do socialismo revolucionário. A desconformidade e descoordenação entre estes dois aspectos levam a dissensões e vacilações, ao divórcio entre as palavras e os actos. Em particular, o fenómeno do culto da espontaneidade, da diminuição do papel dos socialistas conscientes no movimento revolucionário do proletariado, bem como a consolidação teórica deste servilismo, foi considerado por Lénine como reaccionário, exigindo por isso uma luta implacável contra a espontaneidade na luta de classe do proletariado.
Quando as concepções teóricas estão suficientemente esclarecidas nos seus principais traços essenciais, torna-se possível eliminar mal-entendidos e incompreensões no aspecto prático do socialismo, colocá-lo no terreno da luta de classes, ajustar o programa político, os modos de actuação, a táctica. Na acção prática, a corrente socialista revolucionária «como é sabido, assume a tarefa de
dirigir a luta de classe do proletariado e de organizar esta luta».
Tudo o que seja diminuir o papel dos socialistas conscientes, dirigentes e ideólogos, e qualquer impreparação e inépcia da sua parte constituem concessões à espontaneidade e significam «– independentemente da vontade de quem o faz – o reforço da influência da ideologia burguesa sobre os operários.» Com efeito, se está excluída qualquer possibilidade de uma ideologia autónoma elaborada pelas próprias massas operárias no decurso da própria luta, nesse caso a questão só pode colocar-se do seguinte modo: ou ideologia burguesa ou ideologia socialista. Como sublinha Lénine: «Não há meio-termo (porque a humanidade não elaborou nenhuma outra “terceira” ideologia; além disso, em geral, na sociedade dilacerada por contradições de classe, não pode nunca existir uma ideologia à
margem das classes ou acima das classes). Por isso, tudo o que seja rebaixar a ideologia socialista, tudo o que seja afastar-se dela significa fortalecer a ideologia burguesa».
O desenvolvimento espontâneo do movimento operário marcha precisamente para a sua subordinação à ideologia burguesa, porque o movimento operário espontâneo é o trade-unionismo, é uma luta «exclusivamente profissional», uma luta estritamente económica, e isto significa precisamente «a escravização ideológica dos operários pela burguesia». Por isso, explica Lénine, os admiradores da espontaneidade insinuam-se junto dos operários menos desenvolvidos. Dizem que os operários apenas estão interessados em lutar por reivindicações que proporcionem resultados palpáveis. A tarefa dos ideólogos socialistas, dos revolucionários comunistas, «consiste em combater a espontaneidade, em fazer com que o movimento operário se desvie desta tendência espontânea do trade-unionismo de se acolher debaixo da asa da burguesia e em atraí-lo para debaixo da asa do movimento revolucionário.» Não atrair os operários para o socialismo equivale «a ceder o campo de actividade» aos ideólogos que «arrastam o movimento operário “pela linha da menor resistência”, isto é, pela linha do trade- unionismo burguês ou (…) que o arrastam pela linha da “ideologia” cleropolicial».
Reduzir a luta económica ao trade-unionismo, à política trade-unionista, é amarrar os operários à ideologia burguesa através da luta espontânea, desprovida de consciência e de ideologia de classe.
É preciso uma luta árdua contra a espontaneidade – insiste Lénine.
A escravização ideológica dos operários pela burguesia realiza-se através da fragmentação da classe operária por várias ideologias: uma parte concentra-se nos sindicatos, outra nos partidos sociais-democratas, uma terceira sente-se protegida por polícias de sotaina, uma quarta está fascinada com as sociedades por acções, etc., etc. Conseguir a supremacia dos operários e a sua solidariedade em torno da bandeira da ideologia socialista só é possível por via de uma luta incessante contra todas as outras ideologias. E este trabalho revolucionário exige uma intervenção de grande amplitude na propaganda e agitação política e na organização. A tarefa dos socialistas conscientes consiste em transformar a política trade-unionista na luta política socialista, elevar os operários até ao grau de consciência política socialista.
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