domingo, 8 de outubro de 2017

Como nasceu a obra O Capital


 No dia 11 de setembro, completaram-se 150 anos de O Capital. Esta é sua história.

A obra que, talvez mais que qualquer outra, contribuiu para mudar o mundo nos últimos 150 anos, teve uma gestação longa e muito difícil. Marx começou a escrever O Capital só muitos anos após iniciar seus estudos de economia política. Se já a partir de 1844 havia criticado a propriedade privada e o trabalho alienado da sociedade capitalista, foi somente após o pânico financeiro de 1857 – que começou nos Estados Unidos e depois se estendeu a Europa – que se sentiu obrigado a deixar de lado sua incessante pesquisa e começar a redigir o que chamava sua “Economia”.

Crise, os Grundrisse e pobreza

Com o início da crise, Marx antecipou o nascimento de uma nova fase de convulsões sociais e considerou que o mais urgente era proporcionar ao proletariado a crítica ao modo de produção capitalista, um requisito prévio para superá-lo. Desse modo, nasceram os Grundrisse, oito cadernos nos quais examinou as formações econômicas pré-capitalistas e descreveu algumas características da sociedade comunista, ressaltando a importância da liberdade e do desenvolvimento dos indivíduos. O movimento revolucionário que surgiria por causa da crise ficou em uma ilusão e Marx não publicou seus manuscritos, consciente da distância que ainda estava do domínio total dos temas que enfrentava. A única parte publicada, após uma profunda reelaboração do capítulo sobre o dinheiro, foi a Contribuição à Crítica da Economia Política, um texto distribuído em 1859 e revisado por uma só pessoa: Engels.

O projeto de Marx era dividir sua obra em seis livros. Deveriam se dedicar ao capital, à propriedade da terra, ao trabalho assalariado, ao Estado, ao comércio exterior e ao mercado mundial. Contudo, em 1862, como resultado da guerra de secessão estadunidense, o New York Tribune despediu seus colaboradores europeus. Marx – que trabalhou para o jornal durante mais de uma década – e sua família voltaram a viver em condições de terrível pobreza, as mesmas que haviam sofrido durante os primeiros anos de seu exílio em Londres. Só contava com a ajuda de Engels, a quem escrevia: “Todos os dias, minha esposa me diz que preferiria estar em uma sepultura com as pequenas e, na verdade, não posso culpá-la, dadas as humilhações e sofrimentos que estamos padecendo, realmente indescritíveis”. Sua condição era tão desesperadora que, nas semanas mais sombrias, faltava comida para as filhas e papel para escrever. Buscou emprego em um escritório das ferrovias. A vaga, no entanto, não lhe foi concedida por causa de sua letra ruim. Portanto, para enfrentar a indigência, a obra de Marx esteve sujeita a grandes atrasos.

A mais-valia e o carbúnculo

Neste período, em um longo manuscrito intitulado Teorias sobre a Mais-Valia, realizou uma profunda crítica ao modo como todos os grandes economistas haviam tratado erroneamente a mais-valia como lucro ou renda. Para Marx, no entanto, era a forma específica pela qual se manifesta a exploração no capitalismo. Os trabalhadores passam parte de seu dia trabalhando para o capitalista de forma gratuita. Este último busca de todas as formas possíveis gerar mais-valia por meio do trabalho excedente: “Não basta que o trabalhador produza em geral, deve produzir mais-valia”, ou seja, servir à autovalorização do capital. O roubo de inclusive alguns poucos minutos da comida ou do descanso de cada trabalhador significa transferir uma enorme quantidade de riqueza aos bolsos dos patrões. O desenvolvimento intelectual, cumprir as funções sociais e os dias festivos são para o capital “puras e simples bagatelas”.

Après moi le déluge (depois de mim, o dilúvio) era para Marx o lema dos capitalistas, ainda que pudessem, hipocritamente, se opor à legislação sobre as fábricas em nome da “liberdade plena do trabalho”. A redução da jornada de trabalho e o aumento do valor da força de trabalho foi, portanto, o primeiro terreno da luta de classes.

Em 1862, Marx escolheu o título de seu livro: O Capital. Acreditava que podia começar imediatamente a redigi-lo, no entanto, às já graves vicissitudes financeiras se somaram problemas de saúde. De fato, o que sua esposa Jenny descreveu como “a terrível enfermidade” contra a qual Marx precisaria lutar muitos anos de sua vida era o carbúnculo, uma horrível infecção que se manifesta em várias partes do corpo com uma série de abscessos cutâneos e uma extensa e debilitante furunculose. Marx foi operado e “sua vida permaneceu durante muito tempo em perigo”. Sua família estava à beira do abismo.


O Moro (este era seu apelido) se recuperou e até dezembro de 1865 se dedicou a escrever o que se converteria em sua autêntica obra magna. Além disso, a partir do outono de 1864 assistiu assiduamente as reuniões da Associação Internacional de Trabalhadores, para a qual escreveu durante oito anos seus principais documentos políticos. Estudar durante o dia na biblioteca, para se inteirar das novas descobertas, e seguir trabalhando em seu manuscrito durante toda a noite: esta foi a esgotadora rotina a qual Marx se submeteu até a exaustão de todas as suas energias e o esgotamento de seu corpo.

Um todo artístico

Ainda que havia reduzido seu projeto de seis para três volumes sobre O Capital, Marx não quis abandonar seu propósito de publicá-los juntos. De fato, escreveu a Engels: “Não posso decidir sobre o que abrir mão, antes de tudo estar diante de mim, sejam quais forem os defeitos que possam ter, este é o valor de meus livros: todos formam um todo artístico, alcançável somente graças ao meu sistema de não o entregar ao impressor antes de tê-lo completo diante de mim”.

O dilema de “corrigir uma parte do manuscrito e entregá-lo ao editor ou terminar de escrever tudo” foi resolvido pelos acontecimentos. Marx sofreu outro ataque bestial de carbúnculo, o mais virulento de todos. A Engels disse que havia “perdido a pele”. Os médicos lhe disseram que a recaída se deu em razão do excesso de trabalho e as contínuas vigílias noturnas. Marx se concentrou no livro um: O processo de produção do capital.

Os furúnculos seguiram o atormentando e, durante semanas, Marx nem sequer pôde se sentar. Tentou se operar. Procurou uma navalha e disse a Engels que tentou extirpar essa maldita coisa. Desta vez, o encerramento de sua obra não foi postergado pela “teoria”, mas, sim, por “razões físicas e burguesas”.

Em abril de 1867, o manuscrito foi finalmente concluído. Marx pediu a seu amigo de Manchester, que lhe ajudou durante 20 anos, que lhe enviasse dinheiro para poder recuperar “a roupa e o relógio que se encontram na casa de empenho”. Marx sobreviveu com o mínimo indispensável e, sem esses objetos, não podia viajar à Alemanha, onde a imprensa esperava por sua obra.

A correção do rascunho durou todo o verão e Engels lhe destacou que a exposição da forma do valor era muito abstrata e “se ressentia da perseguição dos furúnculos”. Marx respondeu: “espero que a burguesia se recorde de meus furúnculos até o dia de sua morte”.

O Capital foi colocado à venda no dia 11 de setembro de 1867. Um século e meio depois, o texto figura entre os livros mais traduzidos, vendidos e discutidos na história da humanidade. Para aqueles que queiram entender o que realmente é o capitalismo e por que os trabalhadores devem lutar por uma “forma superior de sociedade, cujo princípio fundamental seja o desenvolvimento pleno e livre de cada indivíduo”, O Capital é hoje mais que nunca uma leitura simplesmente imprescindível”.

*O artigo é de Marcello Musto, professor da Universidade Iorque, Toronto-Canadá, publicado por La Razón, 24-09-2017. A tradução é do Cepat.

http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/572065-como-nasceu-a-obra-o-capital

Via: Os Bárbaros
04 de Outubro 2017


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