Friederich Engels
Escrito em: 1876
O trabalho é a fonte de toda riqueza,
afirmam os economistas. Assim é, com efeito, ao lado da natureza, encarregada
de fornecer os materiais que ele converte em riqueza. O trabalho, porém, é
muitíssimo mais do que isso. É a condição básica e fundamental de toda a vida
humana. E em tal grau que, até certo ponto, podemos afirmar que o trabalho
criou o próprio homem.
Há muitas centenas de milhares de anos, numa época, ainda não estabelecida em definitivo,
daquele período do desenvolvimento da Terra que os geólogos denominam
terciário, provavelmente em fins desse período, vivia em algum lugar da zona
tropical — talvez em um extenso continente hoje desaparecido nas profundezas do
Oceano Indico — uma raça de macacos antropomorfos extraordinariamente
desenvolvida. Darwin nos deu uma descrição aproximada desses nossos
antepassados. Eram totalmente cobertos de pelo, tinham barba, orelhas
pontiagudas, viviam nas árvores e formavam manadas.
É de supor que, como consequência directa de seu gênero de vida, devido ao qual
as mãos, ao trepar, tinham que desempenhar funções distintas das dos pés, esses
macacos foram-se acostumando a prescindir de suas mãos ao caminhar pelo chão e
começaram a adoptar cada vez mais uma posição erecta. Foi o passo decisivo para
a transição do macaco ao homem.
Todos os macacos antropomorfos que existem hoje podem permanecer em posição
erecta e caminhar apoiando-se unicamente sobre seus pés; mas o fazem só em
casos de extrema necessidade e, além disso, com enorme lentidão. Caminham
habitualmente em atitude semi-erecta, e sua marcha inclui o uso das mãos. A
maioria desses macacos apoiam no solo os dedos e, encolhendo as pernas, fazem
avançar o corpo por entre os seus largos braços, como um paralítico que caminha
com muletas. Em geral, podemos ainda hoje observar entre os macacos todas as
formas de transição entre a marcha a quatro patas e a marcha em posição erecta.
Mas para nenhum deles a posição erecta vai além de um recurso circunstancial.
E posto que a posição erecta havia de ser para os nossos peludos antepassados
primeiro uma norma, e logo uma necessidade, dai se depreende que naquele
período as mãos tinham que executar funções cada vez mais variadas. Mesmo entre
os macacos existe já certa divisão de funções entre os pés e as mãos. Como
assinalamos acima, enquanto trepavam as mãos eram utilizadas de maneira
diferente que os pés. As mãos servem fundamentalmente para recolher e sustentar
os alimentos, como o fazem já alguns mamíferos inferiores com suas patas
dianteiras. Certos macacos recorrem às mãos para construir ninhos nas árvores;
e alguns, como o chimpanzé, chegam a construir telhados entre os ramos, para
defender-se das inclemências do tempo. A mão lhes serve para empunhar garrotes,
com os quais se defendem de seus inimigos, ou para os bombardear com frutos e
pedras. Quando se encontram prisioneiros realizam com as mãos várias operações
que copiam dos homens. Mas aqui precisamente é que se percebe quanto é grande a
distância que separa a mão primitiva dos macacos, inclusive os antropoides mais
superiores, da mão do homem, aperfeiçoada pelo trabalho durante centenas de
milhares de anos. O número e a disposição geral dos ossos e dos músculos são os
mesmos no macaco e no homem, mas a mão do selvagem mais primitivo é capaz de
executar centenas de operações que não podem ser realizadas pela mão de nenhum
macaco. Nenhuma mão simiesa construiu jamais um machado de pedra, por mais
tosco que fosse.
Por isso, as funções, para as quais
nossos antepassados foram adaptando pouco a pouco suas mãos durante os muitos
milhares de anos em que se prolongam o período de transição do macaco ao homem,
só puderam ser, a princípio, funções sumamente simples. Os selvagens mais
primitivos, inclusive aqueles nos quais se pode presumir o retorno a um estado
mais próximo da animalidade, com uma degeneração física simultânea, são muito
superiores àqueles seres do período de transição. Antes de a primeira lasca de
sílex ter sido transformada em machado pela mão do homem, deve ter sido
transcorrido um período de tempo tão largo que, em comparação com ele, o
período histórico por nós conhecido torna-se insignificante. Mas já havia sido
dado o passo decisivo: a mão era livre e podia agora adquirir cada vez mais
destreza e habilidade; e essa maior flexibilidade adquirida transmitia-se por
herança e aumentava de geração em geração.
Vemos, pois, que a mão não é apenas o órgão do trabalho; é também produto dele.
Unicamente pelo trabalho, pela adaptação a novas e novas funções, pela
transmissão hereditária do aperfeiçoamento especial assim adquirido pelos
músculos e ligamentos e, num período mais amplo, também pelos ossos; unicamente
pela aplicação sempre renovada dessas habilidades transmitidas a funções novas
e cada vez mais complexas foi que a mão do homem atingiu esse grau de perfeição
que pôde dar vida, como por artes de magia, aos quadros de Rafael, às estátuas
de Thorwaldsen e à música de Paganini.
Mas a mão não era algo com existência própria e independente. Era unicamente um
membro de um organismo íntegro e sumamente complexo. E o que beneficiava à mão
beneficiava também a todo o corpo servido por ela; e o beneficiava em dois aspectos.
Primeiramente, em virtude da lei que Darwin chamou de correlação do
crescimento. Segundo essa lei, certas formas das diferentes partes dos seres
orgânicos sempre estão ligadas a determinadas formas de outras partes, que
aparentemente não têm nenhuma relação com as primeiras. Assim, todos os animais
que possuem glóbulos vermelhos sem núcleo e cujo occipital está articulado com
a primeira vértebra por meio de dois côndilos, possuem, sem exceção, glândulas
mamárias para a alimentação de suas crias. Assim também, a úngula fendida de
alguns mamíferos está ligada de modo geral à presença de um estômago
multilocular adaptado à ruminação. As modificações experimentadas por certas
formas provocam mudanças na forma de outras partes do organismo, sem que estejamos
em condições de explicar tal conexão. Os gatos totalmente brancos e de olhos
azuis são sempre ou quase sempre surdos. O aperfeiçoamento gradual da mão do
homem e a adaptação concomitante dos pés ao andar em posição erecta exerceram
indubitavelmente, em virtude da referida correlação, certa influência sobre
outras partes do organismo. Contudo, essa acção se acha ainda tão pouco
estudada que aqui não podemos senão assinalá-la em termos gerais.
Muito mais importante é a acção directa — possível de ser demonstrada —
exercida pelo desenvolvimento da mão sobre o resto do organismo. Como já
dissemos, nossos antepassados simiescos eram animais que viviam em manadas;
evidentemente, não é possível buscar a origem do homem, o mais social dos
animais, em antepassados imediatos que não vivessem congregados. Em face de
cada novo progresso, o domínio sobre a natureza, que tivera início com o
desenvolvimento da mão, com o trabalho, ia ampliando os horizontes do homem,
levando-o a descobrir constantemente nos objectos novas propriedades até então
desconhecidas. Por outro lado, o desenvolvimento do trabalho, ao multiplicar os
casos de ajuda mútua e de actividade conjunta, e ao mostrar assim as vantagens
dessa actividade conjunta para cada indivíduo, tinha que contribuir
forçosamente para agrupar ainda mais os membros da sociedade. Em resumo, os
homens em formação chegaram a um ponto em que tiveram necessidade de dizer algo
uns aos outros. A necessidade criou o órgão: a laringe pouco desenvolvida do
macaco foi-se transformando, lenta mas firmemente, mediante modulações que
produziam por sua vez modulações mais perfeitas, enquanto os órgãos da boca
aprendiam pouco a pouco a pronunciar um som articulado após outro.
A comparação com os animais mostra-nos que essa explicação da origem da
linguagem a partir do trabalho e pelo trabalho é a única acertada. O pouco que
os animais, inclusive os mais desenvolvidos, têm que comunicar uns aos outros
pode ser transmitido sem o concurso da palavra articulada. Nenhum animal em
estado selvagem sente-se prejudicado por sua incapacidade de falar ou de
compreender a linguagem humana. Mas a situação muda por completo quando o
animal foi domesticado pelo homem. O contacto com o homem desenvolveu no cão e
no cavalo um ouvido tão sensível à linguagem articulada que esses animais
podem, dentro dos limites de suas representações, chegar a compreender qualquer
idioma. Além disso, podem chegar a adquirir sentimentos antes desconhecidos por
eles, como o apego ao homem, o sentimento de gratidão, etc. Quem conheça bem
esses animais dificilmente poderá escapar à convicção de que, em muitos casos,
essa incapacidade de falar é experimentada agora por eles como um defeito.
Desgraçadamente, esse defeito não tem remédio, pois os seus órgãos vocais se
acham demasiado especializados em determinada direcção. Contudo, quando existe
um órgão apropriado, essa incapacidade pode ser superada dentro de certos
limites. Os órgãos vocais das aves distinguem-se em forma radical dos do homem
e, no entanto, as aves são os únicos animais que podem aprender a falar; e o
animal de voz mais repulsiva, o papagaio, é o que melhor fala. E não importa
que se nos objecte dizendo-nos que o papagaio não sabe o que fala. Claro está
que por gosto apenas de falar e por sociabilidade o papagaio pode estar horas e
horas repetindo todo o seu vocabulário. Mas, dentro do marco de suas
representações, pode chegar também a compreender o que diz. Ensinai a um
papagaio dizer palavrões (uma das distrações favoritas dos marinheiros que
regressam das zonas quentes) e vereis logo que se o irritardes ele fará uso
desses palavrões com a mesma correção de qualquer verdureira de Berlim. E o
mesmo ocorre com o pedido de gulodices.
Primeiro o trabalho, e depois dele e com ele a palavra articulada, foram os
dois estímulos principais sob cuja influência o cérebro do macaco foi-se
transformando gradualmente em cérebro humano — que, apesar de toda sua
semelhança, supera-o consideravelmente em tamanho e em perfeição. E à medida em
que se desenvolvia o cérebro, desenvolviam-se também seus instrumentos mais
imediatos: os órgãos dos sentidos. Da mesma maneira que o desenvolvimento
gradual da linguagem está necessariamente acompanhado do correspondente
aperfeiçoamento do órgão do ouvido, assim também o desenvolvimento geral do
cérebro está ligado ao aperfeiçoamento de todos os Órgãos dos sentidos. A vista
da águia tem um alcance muito maior que a do homem, mas o olho humano percebe
nas coisas muitos mais detalhes que o olho da águia. O cão tem um olfacto muito
mais fino que o do homem, mas não pode captar nem a centésima parte dos odores
que servem ao homem como sinais para distinguir coisas diversas. E o sentido do
tato, que o macaco possui a duras penas na forma mais tosca e primitiva, foi-se
desenvolvendo unicamente com o desenvolvimento da própria mão do homem, através
do trabalho.
O desenvolvimento do cérebro e dos sentidos a seu serviço, a crescente clareza
de consciência, a capacidade de abstracção e de discernimento cada vez maiores,
reagiram por sua vez sobre o trabalho e a palavra, estimulando mais e mais o
seu desenvolvimento. Quando o homem se separa definitivamente do macaco esse
desenvolvimento não cessa de modo algum, mas continua, em grau diverso e em
diferentes sentidos entre os diferentes povos e as diferentes épocas,
interrompido mesmo às vezes por retrocessos de carácter local ou temporário,
mas avançando em seu conjunto a grandes passos, consideravelmente impulsionado
e, por sua vez, orientado em um determinado sentido por um novo elemento que
surge com o aparecimento do homem acabado: a sociedade.
Foi necessário, seguramente, que
transcorressem centenas de milhares de anos — que na história da Terra têm uma
importância menor que um segundo na vida de um homem (1) — antes que a
sociedade humana surgisse daquelas manadas de macacos que trepavam pelas
árvores. Mas, afinal, surgiu. E que voltamos a encontrar como sinal distintivo
entre a manada de macacos e a sociedade humana? Outra vez, o trabalho. A manada
de macacos contentava-se em devorar os alimentos de uma área que as condições
geográficas ou a resistência das manadas vizinhas determinavam. Transportava-se
de um lugar para outro e travava lutas com outras manadas para conquistar novas
zonas de alimentação; mas era incapaz de extrair dessas zonas mais do que
aquilo que a natureza generosamente lhe oferecia, se exceptuarmos a acção
inconsciente da manada ao adubar o solo com seus excrementos. Quando foram
ocupadas todas as zonas capazes de proporcionar alimento, o crescimento da
população simiesca tornou-se já impossível; no melhor dos casos o número de
seus animais mantinha-se no mesmo nível Mas todos os animais são uns grandes
dissipadores de alimentos; além disso, com frequência, destroem em germe a nova
geração de reservas alimentícias. Diferentemente do caçador, o lobo não
respeita a cabra montês que lhe proporcionaria cabritos no ano seguinte; as
cabras da Grécia, que devoram os jovens arbustos antes de poder desenvolver-se,
deixaram nuas todas as montanhas do pais. Essa “exploração rapace” levada a
efeito pelos animais desempenha um grande papel na transformação gradual das
espécies, ao obrigá-las a adaptar-se a alimentos que não são os habituais para
elas, com o que muda a composição química de seu sangue e se modifica toda a
constituição física do animal; as espécies já plasmadas desaparecem. Não há
dúvida de que essa exploração rapace contribuiu em alto grau para a humanização
de nossos antepassados, pois ampliou o número de plantas e as partes das plantas
utilizadas na alimentação por aquela raça de macacos que superava todas as
demais em inteligência e em capacidade de adaptação. Em uma palavra, a
alimentação, cada vez mais variada, oferecia ao organismo novas e novas
substâncias, com o que foram criadas as condições químicas para a transformação
desses macacos em seres humanos. Mas tudo isso não era trabalho no verdadeiro
sentido da palavra. O trabalho começa com a elaboração de instrumentos. E que
representam os instrumentos mais antigos, a julgar pelos restos que nos
chegaram dos homens pré-históricos, pelo gênero de vida dos povos mais antigos
registrados pela história, assim como pelo dos selvagens actuais mais
primitivos? São instrumentos de caça e de pesca, sendo os primeiros utilizados
também como armas. Mas a caça e a pesca pressupõem a passagem da alimentação
exclusivamente vegetal à alimentação mista, o que significa um novo passo de
sua importância na transformação do macaco em homem. A alimentação cárnea
ofereceu ao organismo, em forma quase acabada, os ingredientes mais essenciais
para o seu metabolismo. Desse modo abreviou o processo da digestão e outros
processos da vida vegetativa do organismo (isto é, os processos análogos ao da
vida dos vegetais), poupando, assim, tempo, materiais e estímulos para que
pudesse manifestar-se activamente a vida propriamente animal. E quanto mais o
homem em formação se afastava do reino vegetal, mais se elevava sobre os
animais. Da mesma maneira que o hábito da alimentação mista converteu o gato e
o cão selvagens em servidores do homem, assim também o hábito de combinar a
carne com a alimentação vegetal contribuiu poderosamente para dar força física
e independência ao homem em formação. Mas onde mais se manifestou a influência
da dieta cárnea foi no cérebro, que recebeu assim em quantidade muito maior do
que antes as substâncias necessárias à sua alimentação e desenvolvimento, com o
que se foi tomando maior e mais rápido o seu aperfeiçoamento de geração em
geração. Devemos reconhecer — e perdoem os senhores vegetarianos — que não foi
sem ajuda da alimentação cárnea que o homem chegou a ser homem; e o facto de
que, em uma ou outra época da história de todos os povos conhecidos, o emprego
da carne na alimentação tenha chegado ao canibalismo (ainda no século X os antepassados
dos berlinenses, os veletabos e os viltses, devoravam os seus progenitores) é
uma questão que não tem hoje para nós a menor importância.
O consumo de carne na alimentação significou dois novos avanços de importância
decisiva: o uso do fogo e a domesticação dos animais. O primeiro reduziu ainda
mais o processo da digestão, já que permitia levar a comida à boca, como se
disséssemos, meio digerida; o segundo multiplicou as reservas de carne, pois
agora, ao lado da caça, proporcionava uma nova fonte para obtê-la em forma mais
regular. A domesticação de animais também proporcionou, com o leite e seus
derivados, um novo alimento, que era pelo menos do mesmo valor que a carne
quanto à composição. Assim, esses dois adiantamentos converteram-se directamente
para o homem em novos meios de emancipação. Não podemos deter-nos aqui em examinar
minuciosamente suas consequências.
O homem, que havia aprendido a comer tudo o que era comestível, aprendeu
também, da mesma maneira, a viver em qualquer clima. Estendeu-se por toda a
superfície habitável da Terra, sendo o único animal capaz de fazê-lo por
iniciativa própria. Os demais animais que se adaptaram a todos os climas — os
animais domésticos e os insectos parasitas —não o conseguiram por si, mas
unicamente acompanhando o homem. E a passagem do clima uniformemente cálido da
pátria original para zonas mais frias, onde o ano se dividia em verão e
inverno, criou novas exigências, ao obrigar o homem a procurar habitação e a
cobrir seu corpo para proteger-se do frio e da umidade. Surgiram assim novas
esferas de trabalho, e com elas novas actividades, que afastaram ainda mais o
homem dos animais.
Graças à cooperação da mão, dos órgãos da linguagem e do cérebro, não só em
cada indivíduo, mas também na sociedade, os homens foram aprendendo a executar
operações cada vez mais complexas, a propor-se e alcançar objectivos cada vez
mais elevados. O trabalho mesmo se diversificava e aperfeiçoava de geração em
geração, estendendo-se cada vez a novas actividades. A caça e à pesca veio
juntar-se a agricultura, e mais tarde a fiação e a tecelagem, a elaboração de
metais, a olaria e a navegação. Ao lado do comércio e dos ofícios apareceram,
finalmente, as artes e as ciências; das tribos saíram as nações e os Estados.
Apareceram o direito e a política, e com eles o reflexo fantástico das coisas
no cérebro do homem: a religião. Frente a todas essas criações, que se
manifestavam em primeiro lugar como produtos do cérebro e pareciam dominar as
sociedades humanas, as produções mais modestas, fruto do trabalho da mão,
ficaram relegadas a segundo plano, tanto mais quanto numa fase muito recuada do
desenvolvimento da sociedade (por exemplo, já na família primitiva), a cabeça
que planejava o trabalho já era capaz de obrigar mãos alheias a realizar o
trabalho projectado por ela. O rápido progresso da civilização foi atribuído
exclusivamente à cabeça, ao desenvolvimento e à actividade do cérebro. Os
homens acostumaram-se a explicar seus actos pelos seus pensamentos, em lugar de
procurar essa explicação em suas necessidades (reflectidas, naturalmente, na
cabeça do homem, que assim adquire consciência delas). Foi assim que, com o
transcurso do tempo, surgiu essa concepção idealista do mundo que dominou o
cérebro dos homens, sobretudo a partir do desaparecimento do mundo antigo, e
continua ainda a dominá-lo, a tal ponto que mesmo os naturalistas da escola
darwiniana mais chegados ao materialismo são ainda incapazes de formar uma ideia
clara acerca da origem do homem, pois essa mesma influência idealista lhes impede
de ver o papel desempenhado aqui pelo trabalho.
Os animais, como já indicamos de passagem, também modificam com sua atividade a
natureza exterior, embora não no mesmo grau que o homem; e essas modificações
provocadas por eles no meio ambiente repercutem, como vimos, em seus
causadores, modificando-os por sua vez. Nada ocorre na natureza em forma
isolada. Cada fenómeno afecta a outro, e é por seu turno influenciado por este;
e é em geral o esquecimento desse movimento e dessa interacção universal o que impede
a nossos naturalistas perceber com clareza as coisas mais simples. Já vimos
como as cabras impediram o reflorestamento dos bosques na Grécia; em Santa
Helena, as cabras e os porcos desembarcados pelos primeiros navegantes chegados
à ilha exterminaram quase por completo a vegetação ali existente, com o que
prepararam o terreno para que pudessem multiplicar-se as plantas levadas mais
tarde por outros navegantes e colonizadores. Mas a influência duradoura dos
animais sobre a natureza que os rodeia é inteiramente involuntária e constitui,
no que se refere aos animais, um fato acidental. Mas, quanto mais os homens se
afastam dos animais, mais sua influência sobre a natureza adquire um carácter
de uma ação intencional e planejada, cujo fim é alcançar objectivos projectados
de antemão. Os animais destroçam a vegetação do lugar sem dar-se conta do que
fazem. Os homens, em troca, quando destroem a vegetação o fazem com o fim de
utilizar a superfície que fica livre para semear trigo, plantar árvores ou
cultivar a videira, conscientes de que a colheita que irão obter superará
várias vezes o semeado por eles. O homem traslada de um pais para outro plantas
úteis e animais domésticos, modificando assim a flora e a fauna de continentes
inteiros. Mais ainda: as plantas e os animais, cultivadas aquelas e criados
estes em condições artificiais, sofrem tal influência da mão do homem que se
tornam irreconhecíveis.
Não foram até hoje encontrados os antepassados silvestres de nossos cultivos cerealistas.
Ainda não foi resolvida a questão de saber qual o animal que deu origem aos
nossos cães actuais, tão diferentes uns de outros, ou às atuais raças de
cavalos, também tão numerosos. Ademais, compreende-se de logo que não temos a
intenção de negar aos animais a faculdade de actuar em forma planificada, de um
modo premeditado. Ao contrário, a acção planificada existe em germe onde quer
que o protoplasma — a albumina viva — exista e reaja, isto é, realize
determinados movimentos, embora sejam os mais simples, em resposta a
determinados estímulos do exterior. Essa reacção se produz, não digamos já na
célula nervosa, mas inclusive quando ainda não há célula de nenhuma espécie. O
ato pelo qual as plantas insectívoras se apoderam de sua presa aparece também,
até certo ponto, como um acto planejado, embora se realize de um modo
totalmente inconsciente. A possibilidade de realizar actos conscientes e
premeditados desenvolve-se nos animais em correspondência com o desenvolvimento
do sistema nervoso e adquire já nos mamíferos um nível bastante elevado.
Durante as caçadas organizadas na Inglaterra pode-se observar sempre a
infalibilidade com que a raposa utiliza seu perfeito conhecimento do lugar para
ocultar-se aos seus perseguidores, e como conhece e sabe aproveitar muito bem
todas as vantagens do terreno para despistá-los. Entre nossos animais
domésticos, que chegaram a um grau mais alto de desenvolvimento graças à sua
convivência com o homem podem ser observados diariamente atos de astúcia,
equiparáveis aos das crianças, pois do mesmo modo que o desenvolvimento do
embrião humano no ventre materno é uma réplica abreviada de toda a história do
desenvolvimento físico seguido através de milhões de anos pelos nossos
antepassados do reino animal, a partir do estado larval, assim também o
desenvolvimento espiritual da criança representa uma réplica, ainda mais
abreviada, do desenvolvimento intelectual desses mesmos antepassados, pelo
menos dos mais próximos. Mas nem um só acto planificado de nenhum animal pôde
imprimir na natureza o selo de sua vontade. Só o homem pôde fazê-lo.
Resumindo: só o que podem fazer os animais é utilizar a natureza e modificá-la
pelo mero facto de sua presença nela. O homem, ao contrário, modifica a
natureza e a obriga a servir-lhe, domina-a. E ai está, em última análise, a
diferença essencial entre o homem e os demais animais, diferença que, mais uma
vez, resulta do trabalho.
Contudo, não nos deixemos dominar pelo entusiasmo em face de nossas vitórias
sobre a natureza. Após cada uma dessas vitórias a natureza adopta sua vingança.
É verdade que as primeiras consequências dessas vitórias são as previstas por
nós, mas em segundo e em terceiro lugar aparecem consequências muito diversas,
totalmente imprevistas e que, com frequência, anulam as primeiras. Os homens
que na Mesopotâmia, na Grécia, na Ásia Menor e outras regiões devastavam os
bosques para obter terra de cultivo nem sequer podiam imaginar que, eliminando
com os bosques os centros de acumulação e reserva de umidade, estavam
assentando as bases da actual aridez dessas terras. Os italianos dos Alpes, que
destruíram nas encostas meridionais os bosques de pinheiros, conservados com
tanto carinho nas encostas setentrionais, não tinham idéia de que com isso
destruíam as raízes da indústria de lacticínios em sua região; e muito menos
podiam prever que, procedendo desse modo, deixavam a maior parte do ano secas
as suas fontes de montanha, com o que lhes permitiam, chegado o período das
chuvas, despejar com maior fúria suas torrentes sobre a planície. Os que
difundiram o cultivo da batata na Europa não sabiam que com esse tubérculo
farináceo difundiam por sua vez a escrofulose. Assim, a cada passo, os fatos
recordam que nosso domínio sobre a natureza não se parece em nada com o domínio
de um conquistador sobre o povo conquistado, que não é o domínio de alguém
situado fora da natureza, mas que nós, por nossa carne, nosso sangue e nosso
cérebro, pertencemos à natureza, encontramo-nos em seu seio, e todo o nosso
domínio sobre ela consiste em que, diferentemente dos demais seres, somos
capazes de conhecer suas leis e aplicá-las de maneira adequada.
Com efeito, aprendemos cada dia a compreender melhor as leis da natureza e a
conhecer tanto os efeitos imediatos como as consequências remotas de nossa
intromissão no curso natural de seu desenvolvimento. Sobretudo depois dos
grandes progressos alcançados neste século pelas ciências naturais, estamos em
condições de prever e, portanto, de controlar cada vez melhor as remotas
consequências naturais de nossos atos na produção, pelo menos dos mais correntes.
E quanto mais isso seja uma realidade, mais os homens sentirão e compreenderão
sua unidade com a natureza, e mais inconcebível será essa ideia absurda e
anti-natural da antítese entre o espírito e a matéria, o homem e a natureza, a
alma e o corpo, ideia que começa a difundir-se pela Europa sobre a base da
decadência da antiguidade clássica e que adquire seu máximo desenvolvimento no
cristianismo.
Mas, se foram necessários milhares de anos para que o homem aprendesse, em
certo grau, a prever as remotas consequências naturais no sentido da produção,
muito mais lhe custou aprender a calcular as remotas consequências sociais
desses mesmos actos. Falamos acima da batata e de seus efeitos quanto à difusão
da escrofulose. Mas que importância pode ter a escrofulose, comparada com os
resultados que teve a redução da alimentação dos trabalhadores a batatas
puramente sobre as condições de vida das massas do povo de países inteiros, com
a fome que se estendeu em 1847 pela Irlanda em consequência de uma doença
provocada por esse tubérculo e que levou à sepultura um milhão de irlandeses
que se alimentavam exclusivamente, ou quase exclusivamente, de batatas e
obrigou a que emigrassem para além-mar outros dois milhões? Quando os árabes
aprenderam a destilar o álcool, nem sequer ocorreu-lhes pensar que haviam
criado uma das armas principais com que iria ser exterminada a população
indígena do continente americano, então ainda desconhecido. E quando mais tarde
Colombo descobriu a América não sabia que ao mesmo tempo dava nova vida à
escravidão, há muito tempo desaparecida na Europa, e assentado as bases do
tráfico dos negros. Os homens que nos séculos XVII e XVIII haviam trabalhado
para criar a máquina a vapor não suspeitavam de que estavam criando um
instrumento que, mais do que nenhum outro, haveria de subverter as condições
sociais em todo o mundo e que, sobretudo na Europa, ao concentrar a riqueza nas
mãos de uma minoria e ao privar de toda propriedade a imensa maioria da
população, haveria de proporcionar primeiro o domínio social e político à
burguesia, e provocar depois a luta de classe entre a burguesia e o
proletariado, luta que só pode terminar com a liquidação da burguesia e a
abolição de todos os antagonismos de classe. Mas também aqui, aproveitando uma
experiência ampla, e às vezes cruel, confrontando e analisando os materiais
proporcionados pela história, vamos aprendendo pouco a pouco a conhecer as
consequências sociais indirectas e mais remotas de nossos actos na produção, o
que nos permite estender também a essas consequências o nosso domínio e o nosso
controle.
Contudo, para levar a termo esse controle é necessário algo mais do que o
simples conhecimento. É necessária uma revolução que transforme por completo o
modo de produção existente até hoje e, com ele, a ordem social vigente.
Todos os modos de produção que existiram até o presente só procuravam o efeito
útil do trabalho em sua forma mais directa e Imediata. Não faziam o menor caso
das consequências remotas, que só surgem mais tarde e cujos efeitos se
manifestam unicamente graças a um processo de repetição e acumulação gradual. A
primitiva propriedade comunal da terra correspondia, por um lado, a um estádio
de desenvolvimento dos homens no qual seu horizonte era limitado, em geral, às
coisas mais imediatas, e pressupunha, por outro lado, certo excedente de terras
livres, que oferecia determinada margem para neutralizar os possíveis
resultados adversos dessa economia primitiva. Ao esgotar-se o excedente de
terras livres, começou a decadência da propriedade comunal. Todas as formas
mais elevadas de produção que vieram depois conduziram à divisão da população
em classes diferentes e, portanto, no antagonismo entre as classes dominantes e
as classes oprimidas. Em consequência, os interesses das classes dominantes
converteram-se no elemento propulsor da produção, enquanto esta não se limitava
a manter, bem ou mal, a mísera existência dos oprimidos.
Isso encontra sua expressão mais acabada no modo de produção capitalista, que
prevalece hoje na Europa ocidental. Os capitalistas individuais, que dominam a
produção e a troca, só podem ocupar-se da utilidade mais imediata de seus actos.
Mais ainda: mesmo essa utilidade — porquanto se trata da utilidade da
mercadoria produzida ou trocada — passa inteiramente ao segundo plano,
aparecendo como único incentivo o lucro obtido na venda.
* * *
A ciência social da burguesia, a economia política clássica, só se ocupa preferentemente
daquelas consequências sociais que constituem o objectivo imediato dos actos
realizados pelos homens na produção e na troca. Isso corresponde plenamente ao
regime social cuja expressão teórica é essa ciência. Porquanto os capitalistas
isolados produzem ou trocam com o único fim de obter lucros imediatos, só podem
ser levados em conta, primeiramente, os resultados mais próximos e mais
imediatos. Quando um industrial ou um comerciante vende a mercadoria produzida
ou comprada por ele e obtém o lucro habitual, dá-se por satisfeito e não lhe
interessa de maneira alguma o que possa
ocorrer depois com essa mercadoria e seu comprador. O mesmo se verifica com as
consequências naturais dessas mesmas acções. Quando, em Cuba, os plantadores
espanhóis queimavam os bosques nas encostas das montanhas para obter com a
cinza um adubo que só lhes permitia fertilizar uma geração de cafeeiros de alto
rendimento pouco lhes importava que as chuvas torrenciais dos trópicos
varressem a camada vegetal do solo, privada da protecção das arvores, e não
deixassem depois de si senão rochas desnudas! Com o atual modo de produção, e
no que se refere tanto às conseqüências naturais como às consequência sociais
dos actos realizados pelos homens, o que interessa prioritariamente são apenas
os primeiros resultados, os mais palpáveis. E logo até se manifesta estranheza
pelo fato de as consequências remotas das acções que perseguiam esses fins serem
multo diferentes e, na maioria dos casos, até diametralmente opostas; de a
harmonia entre a oferta e a procura converter-se em seu antípoda, como nos
demonstra o curso de cada um desses ciclos industriais de dez anos, e como
puderam convencer-se disso os que com o “crack” viveram na Alemanha um pequeno
prelúdio; de a propriedade privada baseada no trabalho próprio converter-se
necessariamente, ao desenvolver-se, na ausência de posse de toda propriedade
pelos trabalhadores, enquanto toda a riqueza se concentra mais e mais nas mãos
dos que não trabalham; de [...](2)
Notas:
(1) Notas Sir William Thomson. grande autoridade
na matéria, calculou em pouco mais de cem milhões de anos o tempo transcorrido
desde o momento em que a Terra se esfriou o suficiente para que nela pudessem
viver as plantas e os animais. (retornar ao texto)
(2) (Nota de Engels) Engels refere-se à crise econômica de 1873/1874
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