Manuel Raposo - Terça-feira, 24 Março, 2020
Vai ser fácil atribuir ao coronavírus a crise económica que está em curso. Os propagandistas de serviço já lhe chamam “a crise do covid-19”. Mas, como em química, é preciso distinguir os reagentes dos catalizadores. A emergência criada com a epidemia viral veio apenas precipitar o que já se desenhava e que os observadores mais atentos previam desde, pelo menos, há meses.
A deflagração da crise financeira mundial de 2008 foi prontamente atribuída à “ganância” dos especuladores. Agora, aponta-se o dedo ao imprevisto covid-19. Em ambos os casos, pressente-se o propósito de absolver o sistema capitalista e desse modo esconder as causas essenciais deste novo colapso.
Uma queda abrupta mas previsível
As recentes quedas verticais das bolsas mostram que o inevitável está já a dar-se: a bolha financeira criada na última década estoira de forma fragorosa, o capital fictício movimentado na especulação esfuma-se ao ritmo de milhões por hora. A “recuperação” de que se falava ainda há meses revela-se inexistente. Toda a riqueza acumulada nas mãos de uns poucos, real ou virtual, mostra ser inteiramente inútil para responder à crise, tanto sanitária como económica.
As principais economias do mundo, para não dizer todas, sofrem recuos e entram em recessão. A Organização Internacional do Trabalho prevê um crescimento do desemprego entre 5 e 25 milhões, em cima dos quase 200 milhões existentes. A pobreza atingirá mais 9 milhões de trabalhadores. Grandes empresas (como entre nós a TAP , a Autoeuropa, a PSA ou a Continental) encerram ou abeiram-se da falência. Milhares de pequenas empresas fecham portas para não mais abrir.
Doze anos volvidos, nenhum dos males de 2008 foi resolvido e a queda, hoje, promete ser ainda mais violenta.
Uma crise dentro da crise
Na verdade, não se trata de uma segunda crise, esta que se atribui ao vírus. Trata-se antes de uma recaída da crise aberta em 2008. Diante do colapso dos negócios, a “solução” consistiu então em tentar cobrir a dívida gigantesca das instituições financeiras enchendo-lhes os cofres com mais dinheiro fresco. A “solução” para a dívida foi aumentar a dívida — e fazê-la pagar pelo trabalho, sob medidas de austeridade.
Nos doze anos decorridos assistiu-se a uma colossal acumulação de capital e de riqueza num número cada vez menor de mãos. Longe de significar um efectivo progresso, isso deu-se à custa do empobrecimento do trabalho assalariado; da degradação acentuada das infraestruturas e dos serviços públicos, nomeadamente da saúde e da assistência social (que agora se revela de efeitos criminosos); duma destruição ambiental mais acelerada; duma competição entre capitais e impérios mais feroz; duma multiplicação desenfreada de agressões armadas e de sanções económicas.
Nenhum real relançamento económico teve lugar — apenas a estabilização temporária da finança e a recuperação dos lucros do capital especulativo. Enquanto a euforia das bolsas durou, o poder e os seus altifalantes foram enganando a massa trabalhadora com a ideia falsa de que a economia estava em retoma. Foram espalhando ilusões de progresso num futuro indefinido de modo a calar as resistências daqueles que no presente pagavam os custos da salvação do capital.
A ordem dos factores conta
A epidemia tem pois o efeito de um acelerador, mas não está na origem da crise económica que agora se desencadeia de novo. É aliás perfeitamente plausível admitir que, se a economia capitalista estivesse de boa saúde e em progresso, os efeitos da pandemia poderiam ser debelados, com prejuízos, mas sem a catástrofe que agora se desenha.
Mais: se a economia e o poder dos Estados estivessem virados para o bem comum, haveria extensos cuidados sanitários, reservas de bens e medicamentos, investigação direccionada para a prevenção de novas doenças, franca cooperação internacional desinteressada — e a crise sanitária seria então encarada sem pânico e combatida com meios que agora não existem porque foram desprezados.
Neste sentido, é a crise arrastada deste capitalismo senil que faz da epidemia do coronavírus uma catástrofe, e não o contrário.
O capitalismo mundial a nu
O que fica à vista é, pois, a fraqueza intrínseca do capitalismo de hoje; a decorrente incapacidade de todo o sistema social por ele moldado em responder às necessidades colectivas; a sua total desadequação para responder às exigências de uma sociedade humana aberta, transnacional, global, igualitária.
A recaída a que agora assistimos evidencia não apenas o marasmo vivido desde 2008. Confirma também os limites do processo de globalização desencadeado nos anos de 1990. Os benefícios que o capital imperialista tirou da expansão verificada nos últimos 30 anos tudo indica que chegaram ao fim. É a percepção desse limite que está na base do proteccionismo e do nacionalismo a que recorrem potências de primeiro plano como os EUA ou o Reino Unido.
Dado o beco sem saída a que todo o sistema chegou, o que se perspectiva não é um mirífico novo surto de progresso: é uma atrofia do capitalismo mundializado.
A intervenção do Estado
Na emergência da pandemia, salta à vista a incapacidade da glorificada “iniciativa privada” e do sacrossanto “mercado” para responderem às exigências sociais mínimas: vida e saúde. Não faltam exemplos: clínicas e hospitais privados só se tornam úteis quando incorporados no Serviço Nacional de Saúde, a prática de “stock zero” cria faltas clamorosas de bens e equipamentos essenciais, inúmeras actividades económicas revelam-se absolutamente supérfluas por não haver plano para as necessidades sociais, a burocracia estatal mostra ser um empecilho no socorro às vítimas, os monopólios das cadeias de abastecimento abeiram-se da ruptura, a condição privada da banca impede que a riqueza social que ela acumula seja devidamente direccionada.
O Estado arregaça as mangas e chama a si todos os encargos da vida colectiva para assegurar as tarefas que os empresários não asseguram, numa demonstração mais de como o capital se tornou inútil e parasitário. Mas o Estado só entra em cena, em última análise, para salvar o capital da morte — socializando prejuízos, estatizando empresas se preciso for, imprimindo dinheiro a rodos — na esperança de que a onda passe e os negócios possam mais tarde ser retomados, cobrando com juros as perdas de agora.
As gigantescas injecções de dinheiro (muito superiores às de 2008) que os Estados estão já a fazer — dando liquidez a empresas paradas, distribuindo dinheiro para tentar manter o consumo, suspendendo as limitações orçamentais no caso da União Europeia, etc. — vão fazer aumentar as dívidas públicas e os défices estatais para níveis nunca vistos, e não vão conseguir impedir mais uma liquidação maciça de capital, isto é, de riqueza social.
A consequência que se adivinha será o desemprego em massa, a quebra dos salários directos, a perda irremediável das pensões de reforma sujeitas aos azares da especulação bolsista, a degradação ainda maior dos serviços públicos — tudo contribuindo para aumentar o fardo nas costas da massa trabalhadora.
O que faz falta
Todo aquele esforço comprova como a economia capitalista, tornada senil, não consegue responder às exigências colectivas de hoje, e como a sobrevida do capitalismo arrasta a sociedade por inteiro para o caos. Ganha pleno sentido a exigência de uma ordem social nova, socialista.
As próprias medidas de emergência, ironicamente, aproximam-se em termos formais dessa necessidade: assegurar poder de compra mínimo a toda a gente, proporcionar cuidados de saúde e apoio social gratuitos e universais, manter emprego e salários apesar da queda dos negócios, requisitar empresas privadas para produção útil, estatizar sectores estratégicos. Mas a natureza de classe do Estado faz com que tudo isto seja limitado, temporário e feito na mira de repor mais adiante o sistema de exploração.
Não por acaso, os governantes e os propagandistas do poder falam em “guerra” a respeito da pandemia. Têm em vista criar na população uma unanimidade obediente, ganhar margem para combater protestos sociais e reivindicações que venham a levantar-se. Criam assim condições para a arbitrariedade do poder, para a intervenção repressiva, sob o argumento falso de que o mal atinge todos por igual e que todos estarão a ser defendidos por igual.
Debaixo da bandeira da “guerra” à pandemia, o poder procura ocultar a verdadeira guerra de classes que inevitavelmente se agudiza nas condições de penúria e de descalabro social que se avizinham. A guerra efectiva, do ponto de vista de quem trabalha, é contra um sistema social-económico que repetidamente se mostra incapaz de assegurar bem-estar, vida, saúde.
Quando toda a humanidade é conduzida à beira do caos — é nessa iminência que estamos — a questão que se coloca é criar a força social que empurre para a cova um capitalismo que esgotou a sua capacidade de proporcionar progresso. Na ausência dessa força, torna-se inevitável que a massa trabalhadora sofra de novo (e agora, com toda a probabilidade, de forma agravada) os custos de mais esta síncope do velho mundo capitalista. O único agente capaz de uma verdadeira mudança social são as classes trabalhadoras. Está nas suas mãos ganharem consciência disso mesmo e organizarem-se para imporem uma tal mudança.
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