quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Introdução de Friedrich Engels à Edição de 1891 de Trabalho Assalariado e Capital

Nos anos 40, Marx ainda não tinha terminado a sua crítica da Economia Política. Isso só aconteceu nos finais dos anos 50. Por isso, os escritos que apareceram antes do primeiro fascículo de Para a Crítica da Economia Política (1859) diferem aqui e ali dos redigidos a partir de 1859; contêm expressões e frases inteiras que, do ponto de vista dos escritos posteriores, parecem tortuosas e até incorrectas. Ora é evidente que em edições vulgares, destinadas ao público em geral, este ponto de vista anterior que faz parte da evolução espiritual do autor tem o seu lugar, e tanto ele como o público têm indiscutível direito a uma reprodução sem alterações desses escritos mais antigos. E não me passaria pela cabeça modificar uma só palavra que fosse.


Mas o caso muda quando a nova edição se destina quase exclusivamente à propaganda entre os operários. Neste caso, Marx teria incondicionalmente posto de acordo a antiga exposição, que data de 1849, com o seu novo ponto de vista. E eu estou certo de proceder nesse mesmo sentido, se operar para esta edição as poucas modificações e acrescentamentos necessários para atingir esse objectivo, em todos os pontos essenciais. Por isso, previno já o leitor: esta é a brochura não como Marx a redigiu em 1849, mas aproximadamente, como ele a teria escrito em 1891. Além disso, o texto real encontra-se difundido em tão grande número de exemplares que isto é suficiente até que eu o possa reimprimir sem alterações numa ulterior edição das obras completas.

As minhas alterações giram todas em torno de um ponto. Segundo o original, o operário vende ao capitalista o seu trabalho em troca do salário; segundo o texto actual, ele vende a sua força de trabalho. E por esta alteração devo uma explicação. Uma explicação aos operários para que vejam que não estão perante uma simples questão de palavras, mas, pelo contrário, perante um dos mais importantes pontos de toda a Economia Política. Explicação aos burgueses para que se possam convencer de como os operários sem instrução, para quem com facilidade se podem tornar inteligíveis os mais difíceis desenvolvimentos económicos, estão imensamente acima dos nossos arrogantes homens “instruídos” para quem questões tão complexas permanecem insolúveis durante toda a vida.

A Economia Política clássica[N75] reteve da prática industrial a representação corrente do fabricante de que compra e paga o trabalho dos seus operários. Esta representação chegava perfeitamente para uso nos negócios, a contabilidade e o cálculo do preço do fabricante. Transposta, de um modo ingenuo, para a Economia Política causou a esta mal-entendidos e confusões prodigiosos.

A Economia depara com o facto de que os preços de toda a mercadoria, e, portanto, o preço da mercadoria a que ela chama “trabalho”, variam continuamente; que eles sobem e descem em consequência de circunstâncias muito diferenciadas que, frequentemente, não têm conexão alguma com a produção da própria mercadoria, de tal modo que, em regra, os preços parecem ser determinados pelo puro acaso. Ora, logo que a Economia se tornou uma ciência[N76], uma das suas primeiras tarefas foi a de procurar a lei que se ocultava por detrás desse acaso, que aparentemente comandava o preço das mercadorias e que, na realidade, comandava esse mesmo acaso. Ela procurou nos preços das mercadorias que continuamente flutuam e oscilam, ora para cima, ora para baixo, o ponto central fixo em torno do qual se efectuam essas flutuações e oscilações. Numa palavra, ela partiu dos preços das mercadorias para procurar como sua lei reguladora o valor das mercadorias, a partir do qual deveriam explicar-se todas as flutuações de preços e ao qual finalmente todas se deveriam de novo reconduzir.

A Economia clássica achou, então, que o valor de uma mercadoria seria determinado pelo trabalho incorporado nela, o trabalho necessário para a sua produção; e contentou-se com esta explicação. Também nós podemos debruçar-nos, por um momento, sobre este problema. Só para prevenir equívocos, quero lembrar que esta explicação se tornou hoje completamente insuficiente. Marx, pela primeira vez, investigou fundamentalmente a propriedade que o trabalho tem de criar valor, e descobriu assim que nem todo o trabalho, aparente ou mesmo realmente necessário à produção de uma mercadoria, lhe acrescenta, em todas as circunstâncias, uma grandeza de valor que corresponde ao volume de trabalho empregue. Portanto, quando hoje nos limitamos a dizer, com economistas como Ricardo, que o valor de uma mercadoria se determina pelo trabalho necessário à sua produção, damos sempre como subentendidas as reservas feitas por Marx. Aqui basta-nos isto; o mais encontra-se exposto por Marx em Para a Crítica da Economia Política (1859) e no primeiro tomo de O Capital.

Mas logo que os economistas aplicaram esta determinação de valor pelo trabalho à mercadoria “trabalho” caíram de contradição em contradição. Como se determina o valor do “trabalho”? Pelo trabalho necessário que neste se encontra. Mas quanto trabalho se encontra no trabalho de um operário, durante um dia, uma semana, um mês, um ano? O trabalho de um dia, de uma semana, de um mês, de um ano. Se o trabalho é a medida de todos os valores só podemos expressar o “valor do trabalho” precisamente em trabalho. Mas nós não sabemos absolutamente nada acerca do valor de uma hora de trabalho se apenas soubermos que aquele é igual a uma hora de trabalho. Deste modo não avançamos um milímetro, e limitamo-nos a andar à volta da questão.

Por isso a Economia clássica procurou dar uma outra formulação, e disse: o valor de uma mercadoria é igual aos seus custos de produção. Mas quais são os custos de produção do trabalho? Para responder a esta pergunta, os economistas viram-se obrigados a torcer um pouco a lógica. Em vez dos custos de produção do próprio trabalho, que infelizmente não podem ser descobertos, eles investigam então os custos de produção do operário. E estes, sim, podem ser descobertos. Eles variam consoante o tempo e as circunstâncias, mas em dadas condições sociais, numa dada localidade, num dado ramo de produção eles estão igualmente dados, pelo menos dentro de limites bastante estreitos. Vivemos hoje sob o domínio da produção capitalista em que uma grande e sempre crescente classe da população só pode viver se trabalhar, a troco de um salário, para os proprietários dos meios de produção — das ferramentas, máquinas, matérias-primas, e meios de subsistência. Na base deste modo de produção, os custos de produção do operário consistem naquela soma de meios de subsistência ou do seu preço em dinheiro — que são, em média, necessários para o tornarem capaz de trabalhar, para o manterem capaz de trabalhar e para o substituírem por outro operário quando do seu afastamento por doença, velhice ou morte, para reproduzir, portanto, a classe operária na força necessária. Suponhamos que o preço em dinheiro desses meios de subsistência é, em média, 3 marcos por dia.

O nosso operário receberá, portanto, do capitalista que o empregou, um salário de três marcos por dia. Por este salário, o capitalista fá-lo trabalhar, digamos doze horas por dia. E esse capitalista faz os seus cálculos mais ou menos da seguinte maneira:
Suponhamos que o nosso operário — um ajustador — tem que fazer, num dia de trabalho, uma peça de máquina. A matéria-prima ferro e latão, já convenientemente trabalhados — custa vinte marcos. O consumo de carvão da máquina a vapor, o desgaste dessa mesma máquina a vapor, do torno e das outras ferramentas com que o nosso operário trabalha — calculados em relação a um dia e a um operário — representam, digamos, o valor de um marco. O salário de um dia é, segundo a nossa hipótese, de três marcos. No total, a nossa peça de máquina ficou por 24 marcos. Mas o capitalista espera receber em média 27 marcos dos clientes, isto é, três marcos a mais do que os custos que teve.

De onde vêm esses três marcos que o capitalista mete ao bolso? Segundo a afirmação da Economia clássica as mercadorias são vendidas, em média, pelo seu valor, isto é, a preços que correspondem à quantidade de trabalho necessário, contido nessas mercadorias. O preço médio da nossa peça de máquina — 27 marcos — seria portanto igual ao seu valor, igual ao trabalho que incorporado nela se encontra. Mas desses 27 marcos, 21 eram já valores existentes antes do nosso ajustador começar a trabalhar. Vinte marcos encontravam-se na matéria-prima, um marco no carvão consumido durante o fabrico, ou nas máquinas e ferramentas que nele foram utilizadas e diminuídas na sua capacidade de produção até ao valor desta soma. Ficam 6 marcos que se acrescentaram ao valor da matéria-prima. Mas esses 6 marcos, segundo a hipótese dos nossos economistas, só podem provir do trabalho acrescentado pelo nosso operário à matéria-prima. O seu trabalho de doze horas criou, portanto, um novo valor de 6 marcos. O valor do seu trabalho de doze horas seria, portanto, igual a seis marcos. Deste modo, teríamos finalmente descoberto o que é o “valor do trabalho”.

— Alto lá! — grita o nosso ajustador. — Seis marcos? Mas eu só recebi três! O meu capitalista jura a pés juntos que o valor do meu trabalho de doze horas é só de três marcos, e se eu lhe exigir seis, ele vai rir-se de mim. Como é isto arranjado?

Se anteriormente, com o nosso valor do trabalho, caíamos num círculo sem saída, agora é que estamos mesmo metidos numa contradição insolúvel. Procuramos o valor do trabalho e acabamos por encontrar mais do que precisávamos. Para o operário, o valor do seu trabalho de doze horas é de três marcos; para o capitalista, é de seis marcos, dos quais ele paga ao operário três como salário — e mete ele próprio os outros três no bolso. O trabalho teria portanto não um, mas dois valores, e ainda por cima bastante diferentes!

A contradição torna-se ainda mais absurda quando reduzimos a tempo de trabalho os valores expressos em dinheiro. Nas doze horas de trabalho é criado um novo valor de seis marcos. Portanto, em seis horas, três marcos — a soma que o operário recebe pelo trabalho de doze horas. Pelo trabalho de doze horas, o operário recebe o equivalente ao produto de seis horas de trabalho. Assim sendo, ou o trabalho tem dois valores em que um é o dobro do outro, ou então doze é igual a seis! Em qualquer dos casos revela-se um puro contra-senso.

E por mais voltas que lhe demos, não conseguimos sair desta contradição, enquanto falarmos da compra e da venda do trabalho, e do valor do trabalho. Foi o que aconteceu aos nossos economistas. O último rebento da Economia clássica, a escola de Ricardo, fracassou em grande parte na insolubilidade desta contradição. A Economia clássica metera-se num beco sem saída. O homem que encontrou a maneira de sair desse beco foi Karl Marx.

O que os economistas tinham considerado como custos de produção “do trabalho”, eram os custos de produção, não do trabalho, mas do próprio operário vivo. E o que o operário vendia ao capitalista não era o seu trabalho. “No momento em que começa realmente o seu trabalho — disse Marx — este deixa logo de lhe pertencer e o operário não poderá portanto vendê-lo.” Poderia, quando muito, vender o seu trabalho futuro, isto é, comprometer-se a executar um dado trabalho num tempo determinado. Mas então o operário não vende trabalho (que ainda teria de ter lugar); põe sim à disposição do capitalista a sua força de trabalho, a troco de um salário determinado, por um determinado tempo (se trabalha à jorna) ou para determinada tarefa (se trabalha à peça): ele aluga ou vende a sua força de trabalho. Mas essa força de trabalho faz um com a sua própria pessoa e é inseparável dela. Por conseguinte, os seus custos de produção coincidem com os custos de produção [do operário]; o que os economistas chamavam custos de produção do trabalho são precisamente os custos de produção do operário e, por isso, os da força de trabalho. E assim já podemos regressar dos custos de produção da força de trabalho ao valor da força de trabalho, e determinar a quantidade de trabalho socialmente necessário que é requerido para a produção de uma força de trabalho de determinada qualidade — como o fez Marx no capítulo da compra e venda da força de trabalho (O Capital, tomo 1, capítulo 4, secção 3).

Mas que se passa depois do operário ter vendido a sua força de trabalho ao capitalista, isto é, de a ter posto à sua disposição, a troco de um salário previamente combinado, salário à jorna ou à peça? O capitalista leva o operário para a sua oficina ou fábrica, onde já se encontram todos os objectos necessários ao trabalho: matérias-primas, matérias auxiliares (carvão, corantes, etc.), ferramentas, máquinas. Aí começa o labutar do operário. Seja o seu salário diário de três marcos como no caso acima — pouco importando que ele os ganhe à jorna ou à peça. Suponhamos novamente que o operário, em doze horas acrescenta às matérias-primas utilizadas com o seu trabalho um novo valor de seis marcos, novo valor que o capitalista realiza vendendo a peça uma vez pronta. Deste novo valor paga três marcos ao operário, mas guarda para si os outros três marcos. Ora, se o operário cria um valor de seis marcos em doze horas, em seis horas [criará] um valor de três. Portanto, ele já reembolsou o capitalista com o valor equivalente aos três marcos contidos no salário depois de trabalhar seis horas para ele. Ao fim de seis horas de trabalho ambos estão quites, não devem um centavo um ao outro.

— Alto lá! — grita agora o capitalista. — Aluguei o operário por um dia inteiro, por doze horas. Seis horas são só meio dia. Portanto, vamos lá continuar a trabalhar até fazer as outras seis horas — só nessa altura é que ficaremos quites. E com efeito, o operário tem que se submeter ao contrato aceite “de livre vontade”, segundo o qual se compromete a trabalhar doze horas inteiras por um produto de trabalho que custa seis horas de trabalho.

Com o trabalho à peça é exactamente a mesma coisa. Suponhamos que o nosso operário cria doze peças de mercadoria em doze horas, e que cada uma delas custa 2 marcos de carvão e de desgaste das máquinas, sendo vendida depois a 2 marcos e meio. Mantendo-se a mesma suposição que no caso anterior, o capitalista dará ao operário 25 pfennigs por peça, o que perfaz, pelas doze peças, três marcos para ganhar os quais o operário precisa de doze horas. O capitalista obtém 30 marcos pela venda das doze peças; descontando 24 marcos pela matéria-prima e pelo desgaste, sobram seis marcos, dos quais paga três de salário e guarda três. Exactamente como no caso anterior. Também aqui o operário trabalha seis horas para si, isto é, para repor o seu salário (meia hora em cada uma das doze horas) e seis horas para o capitalista.

A dificuldade em que fracassavam os melhores economistas, enquanto partiram do valor do “trabalho”, desaparece logo que, em vez disso, partimos do valor da “força de trabalho”. A força de trabalho é, na sociedade capitalista dos nossos dias, uma mercadoria como qualquer outra, mas, certamente, uma mercadoria muito especial. Com efeito, ela tem a propriedade especial de ser uma força criadora de valor, uma fonte de valor e, principalmente com um tratamento adequado, uma fonte de mais valor do que ela própria possui. No estado actual da produção, a força de trabalho humana não produz só num dia um valor maior do que ela própria possui e custa; com cada nova descoberta científica, com cada nova invenção técnica, este excedente do seu produto diário sobe acima dos seus custos diários, reduz-se portanto aquela parte do dia de trabalho em que o operário retira do seu trabalho o equivalente ao seu salário diário e alonga-se portanto, por outro lado, aquela parte do dia de trabalho em que ele tem de oferecer o seu trabalho ao capitalista sem ser pago por isso.

Tal é a constituição económica da nossa actual sociedade: é somente a classe trabalhadora que produz todos os valores. Pois o valor é apenas uma outra expressão para trabalho, aquela expressão pela qual se designa, na sociedade capitalista dos nossos dias, a quantidade de trabalho socialmente necessário incorporada a uma determinada mercadoria. Estes valores produzidos pelos operários não pertencem, porém, aos operários. Pertencem aos proprietários das matérias-primas, das máquinas e ferramentas e dos meios financeiros que permitem a estes proprietários comprar a força de trabalho da classe operária. De toda a massa de produtos criados pela classe operária, ela só recebe portanto uma parte. E, como acabamos de ver, a outra parte, que a classe capitalista conserva para si e que divide, quando muito, ainda com a classe dos proprietários fundiários, torna-se com cada nova descoberta ou invenção maior ainda, enquanto a parte que reverte para a classe operária (parte calculada por cabeça) ora aumenta, mas muito lentamente e de maneira insignificante, ora não sobe e, em certas circunstâncias, pode mesmo diminuir.

Mas essas invenções e descobertas que se sucedem e substituem cada vez mais rapidamente, esse rendimento do trabalho humano que aumenta diariamente em proporções nunca vistas, acabam por criar um conflito no qual a actual economia capitalista tem de soçobrar. De um lado, imensas riquezas e um excedente de produtos que os compradores não podem absorver. Do outro, a grande massa proletarizada da sociedade, transformada em operários assalariados e precisamente por esta razão incapacitada de se apropriar desse excedente de produtos. A cisão da sociedade numa pequena classe excessivamente rica e numa grande classe de operários assalariados não proprietários faz com que essa sociedade se asfixie no próprio excedente, enquanto a grande maioria dos seus membros dificilmente ou nunca está protegida da mais extrema miséria. Este estado de coisas torna-se dia a dia mais absurdo e mais desnecessário. Ele tem de ser eliminado, ele pode ser eliminado. É possível uma nova ordem social em que desaparecerão as actuais diferenças entre as classes e em que — após um período de transição, talvez curto e com certas privações, mas, em todo o caso, moralmente muito útil — por uma utilização e um crescimento planificados das imensas forças produtivas já existentes de todos os membros da sociedade, com trabalho obrigatório para todos, os meios de vida, do prazer de viver, de formação e exercício de todas as capacidades do corpo e do espírito estarão igualmente à disposição de todos e numa abundância sempre crescente. E que os operários estão cada vez mais decididos a conquistar esta nova ordem social, testemunhá-lo-á dos dois lados do Oceano o 1.o de Maio que amanhece e o Domingo, 3 de Maio.

Friedrich Engels
Londres, 30 de Abril de 1891.

Publicado em suplemento ao n.º 109 do quotidiano Vorwärts, de 13 de Maio de 1891, e na edição em opúsculo de Lohnarbeit und Kapital, de Karl Marx, Berlim, 1891.


Sem comentários:

Enviar um comentário

Por favor nâo use mensagens ofensivas.