13 de outubro de 2018
Por Gabriel Landi Fazzio
O “mal menor” é a palavra de ordem
permanente da esquerda liberal. Essa é a própria essência daquilo que se chama
“oportunismo” na esquerda. Mas se os comunistas realmente acreditam que haja o
perigo do fascismo e estão sinceramente combatendo-o; neste caso irão votar até
mesmo em um liberal, sem qualquer barganha, a fim de evitar que os reacionários
fortaleçam suas posições na luta contra a classe trabalhadora e as camadas
oprimidas do povo!
O segundo turno das eleições costuma ser o momento em que toda a podridão
do sistema eleitoral burguês fica mais evidente. Os discursos dos candidatos se
flexibilizam, quando não se descaracterizam completamente, em nome de atrair
novos eleitores. Adversários políticos trocam apoio mediante negociatas
envolvendo os futuros ministérios. É a época das fotografias mais cínicas, dos
apertos de mãos mais hipócritas, das publicidades mais apelativas. Toda a
esquerda reformista (ou, como ela gosta de se chamar em nossa época,
“democrático-popular”, uma fórmula na qual por ‘popular’ deve-se entender
‘social’ e por ‘democrático’ deve-se entender ‘liberal’) se mete nesse pântano
sem pensar duas vezes – seja trocando cargos por apoio ou trocando apoio por
cargos, e fazendo significativas concessões à direita no programa de seus candidatos
que concorrem em segundo turno. A esquerda revolucionária, por sua vez,
raramente vê suas candidaturas próprias nestas rodadas eleitorais. É obrigada,
então, a definir qual a sua tática perante o segundo turno.
A militância comunista, como toda a população eleitora (em especial as
pessoas que apoiaram as candidaturas menos votadas), é cobrada publicamente a
se reposicionar: é interpelada pela afirmação de que, caso não mude seu voto,
será tão responsável pela vitória do adversário quanto os próprios apoiadores
deste! Um bom indicador dessa pressão em todo o eleitorado é o número de
abstenções e votos nulos e brancos em cada um dos dois turnos. Nas últimas
décadas, algumas vezes oscilou para cima, mas raramente em grande proporção;
outras vezes, tais cifras de abstenções reduziram significativamente, sob a
maré desesperada dos realinhamentos gerais e das campanhas eleitorais
catastrofistas em segundo turno.
Desde 1988, a Constituição brasileira
estabelece a possibilidade de segundo turno em eleições para a Presidência, o
Governo e as Prefeituras de cidades com mais de 200 mil habitantes. Caso
nenhuma candidatura tenha mais da metade dos votos válidos em primeiro turno,
uma nova votação é realizada entre as duas mais votadas. O argumento a favor
desse sistema é que, supostamente, ele evitaria a eleição de uma candidatura
que não represente a “vontade da maioria”. Mas uma observação atenta coloca em
dúvida esse argumento: a “maioria” que o segundo turno gera não é realmente “a
vontade da maioria”. Na verdade, a própria existência de um segundo turno
comprova que não pode se firmar uma maioria absoluta no primeiro momento,
quando as vontades podem se expressar mais amplamente. Essa “segunda chance” à
maioria para formar uma vontade comum é acomodação geral da vontade das
minorias em torno das vontades de uma ou outra minoria relativamente maiores –
minorias estas que, também, não foram por si próprias majoritárias no primeiro
turno. Visto desse modo, se evidencia a limitação das supostas “vantagens” da
existência de um segundo turno – sem que sequer tenhamos que questionar a
própria ideia de que a soma dos votos pessoais, em uma democracia dos ricos,
seja a melhor forma de auferir a “vontade da maioria”.
Se não houvesse segundo turno, a maior
minoria elegeria sua candidatura, e essa teria de governar sem o respaldo
formal da maioria. Existindo o segundo turno, a segunda maior minoria pode
atrair o apoio de outras e vencer a maior minoria; ou a maior minoria pode
englobar outras menores, e manter-se relativamente maior. Em todo caso, essa
minoria se elege para governar sob o respaldo formal da maioria,
mesmo que esta candidatura sabidamente não seja a mais precisa representação de
sua vontade. É certo que há diferenças entre um sistema e o outro (eleições com
ou sem segundo turno, como na Segunda República no Brasil). Mas, em nenhum
caso, a diferença é realmente a garantia da “vontade da maioria” – apenas sua
aparência, sua forma; e as consequências disto para a legitimidade da
candidatura eleita.
Nesse sentido, o segundo turno tem um efeito relativamente estabilizador
sobre a ordem política. Sem o segundo turno, toda a futura oposição ao governo
eleito estaria ideologicamente facilitada, e a legitimidade deste relativizada.
Mas o objetivo do presente texto não é, como pode parecer até aqui, defender o
fim do segundo turno. Esse tipo de subterfúgio formal não poderia transformar a
essência da democracia eleitoral burguesa, nem mesmo a essência do poder
governamental sob o capitalismo, com todos seus laços de dependência que o atam
à Bolsa, aos bancos e aos grandes proprietários rurais, industriais e
comerciais. Em eleições mais ou menos sabotadas, mais ou menos fraudulentas, a
perspectiva dos revolucionários comunistas segue a mesma: participar nas
eleições apenas de modo a ampliar sua organização e influência, com vistas à
derrubada revolucionária do Estado capitalista e a constituição do Poder
Popular, rumo ao socialismo.
Há dois anos, durante as eleições de 2016,
busquei sintetizar em um artigo os
traços mais gerais da tática comunista no que diz respeito à participação ou à
abstenção no processo eleitoral burguês. Partindo da questão do voto nulo,
busquei apresentar a essência da tática eleitoral comunista. E, no fundamental,
ainda sustento todos os pontos de vistas daquele texto – feita apenas uma
ressalva. E é precisamente por conta dessa ressalva que escrevo, agora, uma
análise mais minuciosa sobre a questão do segundo turno – uma questão que, no
artigo anterior, foi apresentada com uma rapidez que merece reparo, tanto mais
porque, em seu conteúdo, generaliza verdades que são apenas relativas, e cuja
relatividade deve ser concretamente avaliada agora.
Uma autocrítica
No texto “O ponto de vista comunista sobre o voto nulo”, abordei
a questão do segundo turno de um modo superficial e pouco cuidadoso. Mesmo
quanto a seus princípios metodológicos, o trecho em que abordo a questão destoa
do conteúdo geral do texto. Ao longo de todo artigo, busquei diferenciar a
tática comunista das táticas “de princípio” reformistas e esquerdistas: nem a
participação como princípio absoluto, nem a abstenção como princípio absoluto,
mas a avaliação da tática correta com base na situação concreta. Ao abordar o
tema do segundo turno (e, em relação a ele, ao tema do “mal menor”), contudo, a
abordagem apressada da questão me conduziu, como que por princípio, para a
pregação da abstenção.
Eu reconhecia que “na ausência de uma
candidatura própria do proletariado”, este “não simplesmente deixará de votar,
em sua maioria – mas votará em alternativas burguesas”. Contudo, eu não
estabelecia qualquer diferenciação entre as candidaturas burguesas possíveis (a
concretude na análise é o erro fundamental que me levou à generalização
principista). Por isso mesmo, me punha do ponto de vista de que “o apoio, em
segundo turno, a uma candidatura que não represente o ponto de vista do
socialismo revolucionário apenas[aqui reside
uma generalização imperdoável] contribuiria para disseminar confusões”, e
significaria que nos deixamos “subornar pela fraseologia dos democratas” sobre
o perigo do “mal maior”.
Em vez de citar o trecho em extenso,
prefiro submeter à crítica seus equívocos mais evidentes. Mas, prontamente, é
preciso afirmar: se no primeiro turno a abstenção ou a participação só pode ser
avaliada com base na situação concreta da luta de classes; também no segundo turno
a escolha entre a abstenção e o apoio ao “mal menor” só pode ser tomada com
base na análise concreta da situação! Apenas esta pode ser a apreciação correta
da questão – apreciação delicada, é evidente, e que coloquei em segundo plano
em nome do combate ideológico ao oportunismo, caracterizado por sua
defesa de princípio do apoio ao “mal menor”. No contexto
eleitoral de 2014 e mesmo de 2016, tal erro poderia passar desapercebido.
Mantê-lo no contexto eleitoral de 2018, por outro lado, seria um erro crasso.
Para analisar estes equívocos, seria
pertinente investigar, antes, a posição clássica dos revolucionários comunistas
no que diz respeito à questão do segundo turno e do “mal menor”. Assim como no
artigo anterior, esse recurso pode ser bastante instrutivo, se buscarmos nessas
“consultas” aos
clássicos compreender o modo materialista dialético de raciocinar sobre a
questão, mais do que a mera “aplicação” mecânica de prescrições.
Engels sobre o segundo turno
Na Alemanha, sistema eleitoral escolhido para a composição do Reichstag foi
um sistema distrital. No Brasil, os assentos do parlamento são divididos
proporcionalmente entre as coligações partidárias, conforme sua votação. No caso
alemão, cada distrito eleitoral tinha o direito de enviar um representante ao
parlamento, elegendo este pelo sistema de voto majoritário. Nesse sistema
surgiu pela primeira vez a eleição em segundo turno – não para a presidência ou
os governos (cuja nomeação era privilégio do Imperador), mas para o próprio
parlamento!
O Partido Social-Democrata Alemão, no qual
Marx e Engels atuavam, tomou parte nestas eleições desde o princípio. O
marxismo foi a primeira tendência revolucionária proletária a defender, na
teoria e na prática, a participação dos socialistas nos parlamentos burgueses.
Combatendo todas tendências abstencionistas, a política comunista compreendia a
participação dos partidos proletários na vida política nacional como parte
indispensável do processo de organização e constituição da consciência
revolucionária da classe trabalhadora. Em discurso realizado
no ano de 1871, pouco após a insurreição em Paris, Engels afirmava:
“A abstenção absoluta em matéria política
é impossível; por isso, todos os jornais abstencionistas fazem política.
Trata-se apenas de como se a faz e de qual. Quanto ao resto, para nós, a
abstenção é impossível. O partido operário existe já como partido político na
maior parte dos países. Não nos compete arruiná-lo, pregando a abstenção. A
experiência da vida atual, a opressão política que lhes é imposta pelos
governos existentes para fins quer políticos quer sociais; força os operários a
ocuparem-se de política, quer eles queiram quer não. Pregar-lhes a abstenção seria empurrá-los para os braços da
política burguesa.”
Assim sendo, diversos dos escritos de Marx e Engels (em especial as suas
cartas) abordam questões de tática política e eleitoral. Alguns escritos de
Engels, nos seus últimos anos de vida, são especialmente ilustrativos a esse
respeito, em especial sobre nosso tema principal.
Em uma carta a
Paul Lafargue, em 25 de fevereiro de 1893, Engels comentava sobre a tática
comunista correta a ser adotada frente as eleições parlamentares francesas:
“[…] Quanto aos Socialistas Radicias a la
Millerand & Cia, [Millerand foi, em 1880, um radical
pequeno-burguês; justando-se aos socialistas nos anos 90 e tornando-se líder da
tendência oportunista do movimento francês; aderindo finalmente aos quadros do
governo burguês reacionários de 1899. N.T.] é absolutamente essencial que a aliança com eles deva estar baseada
no fato de que nosso partido é um partido separado, e que eles reconhecem isto.
Que de forma alguma desconsidera a ação conjunta nas próximas eleições, desde
que a distribuição dos assentos a serem disputados conjuntamente seja feita de
acordo com o estado atual das respectivas forças; esses senhores têm o hábito
de reivindicar um quinhão leonino. [A expressão “o quinhão do leão”
faz uma referência a uma fábula, segundo a qual o leão, ao dividir sua caça,
sempre se reserva todas as melhores partes, e mesmo a pior das partes lhe serve
para distribuir a título de isca para sua próxima presa. N.T.]
Não deixe que o desencoraje o fato de que seus discursos não criam tanta
agitação quanto antes. Olhe para o nosso pessoal na Alemanha: eles foram
vaiados por anos a fio, e agora os 36 dominam o Reichstag. Bebel escreve
dizendo: se tivéssemos 80 ou cem (de 400 membros), o Reichstag se tornaria uma
impossibilidade. Não há debate, seja qual for o assunto, em que não
intervenhamos e sejamos ouvidos por todos os partidos. O debate sobre a
organização socialista do futuro durou cinco dias e o discurso de Bebel foi
desejado em três milhões e meio de exemplares. Agora eles estão publicando todo
o debate em panfletos ao preço de 5 sous, e o efeito, já tremendo, será em
dobro!
Você tem toda a razão em fazer preparações
para as eleições. Nós devemos capturar pelo menos 20 assentos. Você tem a
imensa vantagem de saber, pelas eleições municipais, a extensão mínima de suas
forças em cada localidade [Engels refere-se às eleições
municipais realizadas em 1 e 8 de maio de 1892, quando os socialistas receberam
160 000 votos e venceram em 27 municípios]; pois tenho certeza de
que, desde o último mês de maio, você as aumentou consideravelmente. Isso irá
ajudá-lo muito na repartição de candidaturas entre vocês próprios e os
Socialistas Radicais. Mas possivelmente você
preferiria lançar seus candidatos naqueles lugares em vocês tenham alguma
chance, com a condição de retirá-los, se necessário, em favor dos Radicais,
para um segundo turno, no caso de este terem obtido mais votos.
O mais importante nestas eleições é estabelecer de uma vez por todas que é
o nosso partido que representa o socialismo na França, e que todas as outras
facções mais ou menos socialistas – broussistas, allemanistas e blanquistas
puros ou impuros – têm sido capazes de desempenhar um papel ao nosso lado em
virtude apenas de dissensões temporárias, incidentais à fase mais ou menos
infantil do movimento proletário; mas que agora o estágio dos distúrbios
infantis terminou, e o proletariado francês alcançou plena consciência de seu
papel histórico. Se ganharmos esses 20 assentos, todos os outros combinados não
terão tantos, uma vez que é mais provável que eles percam alguns do que ganhem
mais. Nesse caso, as coisas avançarão. Enquanto isso, cuide da sua reeleição: tenho
a sensação de que sua ausência na Câmara não contribuiu muito para
assegurá-la.”
Outro exemplo é a entrevista do
revolucionário comunista ao jornal “Daily Chronicle”, em junho de 1893:
“Encontrei Herr Engels
em sua casa na Regent’s Park Road, exultante, é claro, com o resultado das
eleições para o Reichstag alemão.
‘Nós ganhamos 10 assentos’, disse ele, em resposta às minhas perguntas. ‘No
primeiro turno obtivemos 24 assentos, e dos nossos 85 candidatos levados a
segundo turno, 20 foram reeleitos. Ganhamos 16 assentos e perdemos 6, ficando
com um ganho líquido de 10 assentos. Nós detemos 5 dos 6 assentos em Berlim’.
‘Qual foi sua votação?’
‘Isso nós não saberemos até que o
Reichstag se reúna, quando os resultados serão apresentados, mas você pode
imaginar algo acima de 2 milhões de votos. Em 1890, foram 1.427.000 votos. E
você deve lembrar que este é um voto puramente socialista. Todas os partidos se
uniram contra nós, com a exceção de uma pequena parcela do Partido Popular, que
é uma espécie de partido Republicano-Radical. Nós lançamos 391
candidatos, e nós nos recusamos a fazer acordos com
qualquer outro partido. Se tivéssemos feito tais acordos, poderíamos ter obtido
20 ou 30 assentos a mais, mas nós nos colocamos firmemente contra qualquer
compromisso, e é isso que torna nossa posição tão forte. Nenhum dos nossos se
comprometeu a apoiar qualquer partido ou qualquer medida, exceto o programa de
nosso próprio partido.’ […]
‘Agora, me diga: qual é o seu programa político?’
‘Nosso programa é quase idêntico ao da Federação Social-Democrata da
Inglaterra, embora nossa política seja muito diferente.’
‘Se aproximando mais da política da Sociedade Fabiana, suponho?’
‘Não, certamente não’, respondeu o Herr,
com grande animação. ‘A Sociedade Fabiana, eu considero ser nada além de um
ramo do Partido Liberal. Ela não procura salvação social exceto através dos
meios que este partido fornece. Somos contra todos os partidos políticos
existentes, e nós vamos combatê-los todos. A Federação Social-Democrata Inglesa
é, e atua, apenas como uma pequena seita. É um corpo exclusivo. Não entendeu
como tomar a frente do movimento da classe trabalhadora em geral, e dirigi-la
para o socialismo. Transformou o marxismo em uma ortodoxia. Por conseguinte,
insistiu para que John Burns desenrolasse a bandeira vermelha durante a greve
dos portos, onde tal ato teria arruinado todo o movimento e, em vez de ganhar o
apoio dos estivadores, os teria levado direto para os braços dos capitalistas.
Nós não fazemos isso. Ademais, o nosso programa é de natureza puramente
socialista. A nossa primeira proposta é a socialização de todos os meios e
instrumentos de produção. Ainda assim, nós aceitamos tudo o que qualquer
governo possa nos dar, mas apenas como um pagamento por conta, e pelo qual não
oferecemos qualquer agradecimento. Nós sempre votamos contra o
Orçamento, e contra qualquer votação por mais dinheiro ou homens para o
Exército. Nos distritos eleitorais onde não tivemos nenhum candidato no qual
votar no segundo turno, nossos partidários foram instruídos a votar apenas nos
candidatos que se comprometeram a votar contra a Lei do Exército, qualquer
aumento nos impostos e qualquer restrição aos direitos populares’.
‘E qual será o efeito da eleição na política alemã?’
‘O projeto da Lei do Exército será levado a cabo. Há um colapso completo da
Oposição. Na verdade, somos agora a única Oposição real e compacta. Os Nacional-Liberais
aderiram aos Conservadores. O Partido Livre-Pensador se dividiu em dois, e a
eleição quase o aniquilou. Os Católicos e as pequenas seções não ousam arriscar
outra dissolução, e vão ceder, antes deenfrentá-la’.
Por fim, vejamos a instrutiva carta de
Engels a Sorge, datada de 12 de maio de 1894, sobre a situação na Inglaterra:
“Aqui as coisas continuam como antes.
Nenhuma possibilidade de trazer à tona qualquer tipo de unidade entre as
lideranças dos trabalhadores. No entanto, as massas estão avançando –
lentamente, é verdade, e em primeiro lugar lutando em direção à consciência,
mas inconfundivelmente, o mesmo vai acontecer aqui conforme está acontecendo na
França e mais cedo na Alemanha: a unidade vai ser ganha por
compulsão assim que uma quantidade de trabalhadores independentes (em
particular aqueles não eleitos com o apoio dos Liberais) obtiver assento no
Parlamento. Os liberais estão fazendo seu máximo para evitar isso. Em
primeiro lugar, eles sequer estendem o sufrágio àqueles que já têm direito a
ele no papel; em segundo lugar, eles estão tornando o registro eleitoral ainda
mais caro para os candidatos do que eram antes, porque eles têm de ser renovados
duas vezes por ano e o custo de um registro adequado devem ser arcados pelo
candidato ou pelo representante do partido político respectivo, e não pelo
Estado; em terceiro lugar, recusam expressamente que o Estado ou a comunidade
assumam os custos da eleição; em quarto lugar, a questão dos salários e, em quinto lugar, o segundo turno. A preservação de
todos esses abusos antigos equivale a uma negação direta da elegibilidade de
candidatos da classe trabalhadora em 3/4 ou mais dos distritos eleitorais. O
parlamento deve permanecer um clube dos ricos. E isso numa época em que os
ricos, porque satisfeitos com o status quo, se
tornam Conservadores e o Partido Liberal está morrendo e ficando cada vez mais
dependente do voto do trabalhador. Mas os Liberais insistem que os
trabalhadores deveriam eleger apenas burgueses, não trabalhadores, e certamente
não trabalhadores independentes.
É isso que está matando os liberais. Sua falta de coragem estrangula o voto
dos trabalhadores no país, reduz sua pequena maioria no Parlamento a nada, e se
não derem alguns passos bastante ousados no último minuto, eles estão
provavelmente condenados. Então os Tories virão à tona e alcançarão aquilo que
os Liberais realmente pretendiam levar a cabo, e não apenas promessas. E então
um partido independente dos trabalhadores será bastante certo.
A Federação Social-Democrata compartilha aqui com os seus Socialistas
Germano-Americanos a distinção de serem os únicos partidos que têm logrado
reduzir a teoria marxista do desenvolvimento em uma ortodoxia rígida. Essa
teoria deve ser forçada garganta abaixo nos trabalhadores de uma vez e sem
qualquer desenvolvimento, como artigos de fé, em vez de fazer com que os
trabalhadores levantem por si próprios ao seu nível por força de seus próprios
instintos de classe. É por isso que ambos permanecem meras seitas e, como Hegel
dizia, vêm do nada através do nada ao nada.”
Tais escritos são mais do que interessantes registros históricos. É
bastante instrutivo analisar como Engels aborda questões semelhantes de modo
distinto, a depender do estágio concreto do desenvolvimento do movimento
proletário em cada um dos países comentados: respectivamente, França, Alemanha
e Inglaterra.
Na França, onde um partido proletário
ainda não se firmara em bases independentes, Engels recomenda a aliança com os
reformistas pequeno-burgueses. A condição dessa aliança é reveladora: o reconhecimento da separação entre esses dois partidos!
Engels compreende que “a experiência da vida atual” “força os operários a
ocuparem-se da política, quer eles queiram quer não”. Não existindo um partido
proletário, a tendência seria a divisão dos votos proletários entre as
candidaturas burguesas e pequeno-burguesas. Nesse contexto, as forças que
buscam impulsionar um partido proletário deveriam apoiar a ala mais radical da
sociedade civil, a pequena burguesia ‘socialista’; mas fazendo desse apoio uma
condição da própria consolidação do proletariado como partido independente,
exigindo seu reconhecimento oficial por parte do partido da pequena-burguesia
radical. É nesse contexto que Engels recomenda a Lafargue que lance
candidaturas proletárias onde elas tiverem viabilidade, “com a condição de
retirá-las, se necessário, em favor dos Radicais, para um segundo turno”.
No caso da Alemanha, onde o partido proletário
aumentava em apoio ano após ano, as recomendações de Engels são bastante
distintas: a recusa aos acordos com qualquer outro partido; a defesa integral
do programa social-democrata revolucionário. Contudo, mesmo nesse contexto de
ausência de qualquer acordo com outros partidos, Engels não recomendava a
abstenção em segundo turno. Sem estabelecer acordos, coligações, ou listas
eleitorais conjuntas, a Social-Democracia instruía seus partidários
a votar “apenas nos candidatos que se comprometeram a votar contra a Lei do
Exército, qualquer aumento nos impostos e qualquer restrição aos direitos
populares” – ou seja, precisamente aquelas que eram as principais bandeiras dos
social-democratas no parlamento, seu programa mínimo!
Quanto ao caso da Inglaterra, a análise de Engels contém menos
recomendações que apreciações. Por um lado, Engels nota a dificuldade na
constituição de um partido independente do proletariado naquele país. Por outro
lado, mostra que os Liberais atuam deliberadamente no sentido de dificultar
esta realização, de manter o proletariado sob sua representação. Contudo,
Engels constata que todas as manobras dos Liberais buscando minar o peso do
proletariado nas eleições produziram o efeito oposto, debilitando os próprios
Liberais, extremamente dependentes do voto proletário. Nesse contexto, Engels
aponta como prioridade a luta pela eleição de candidaturas independentes do
proletariado, inclusive insistindo na identidade programática entre Liberais e
Conservadores: são diferentes não em seus objetivos, em sua qualidade; mas em
sua capacidade de levar até o fim estes objetivos, em intensidade, quantidade.
A esse respeito, não seria mera coincidência qualquer semelhança com a
diferença existente entre o hesitante contrarreformismo do segundo governo
Dilma e a Agenda Brasil de Temer: diferem em quantidade, não tanto em qualidade
(ainda que todo aumento em quantidade permita, a partir de um determinado
estágio, um desenvolvimento qualitativo). Não deixa de ser interessante,
contudo, o comentário de Engels sobre o segundo turno, visto como uma forma
adotada pelos Liberais para minar as candidaturas proletárias, forçando o apoio
do proletariado a este partido burguês em um segundo turno, contra os
Conservadores. Sobre essa “vantagem” do segundo turno comentei, em termos mais
gerais, no início do presente artigo.
Os comentários de Engels são suficientes para lançar luz a diversas
debilidades em meu modo de abordar a questão do segundo turno anteriormente.
Em primeiro lugar, de fato, a razão para
os comunistas participarem nas eleições, a despeito de não nutrirem quaisquer
ilusões na democracia burguês, está em
“manterem a sua democracia, para manterem a sua autonomia, contarem as suas
forças, trazerem a público a sua posição revolucionária e os pontos de vista do
partido”; como dizia Marx. Em todos os três exemplos que Engels aborda, são
esses mesmos os objetivos perseguidos, partindo-se da consideração concreta da
situação das forças desta “democracia e autonomia” revolucionária do partido
proletário. Os exemplos históricos demonstram meu equívoco em afirmar, em
caráter universal, que em qualquer circunstância o
apoio dos comunistas ao reformismo em segundo turno representaria uma “perda de
autonomia”; que apenas “contribuiria para disseminar confusões e para rebaixar
o partido”. Em algumas circunstâncias, esse apoio pode significar precisamente
o contrário: um passo em frente na autonomia, uma redução das confusões através
da consolidação formal da independência entre
os partidos, mediante justamente os termos de seu apoio.
Neste aspecto, minha generalização é reprovável, e conduzirá a outros
equívocos, como demonstrarei mais adiante.
Em segundo lugar, fica mais nítido o modo pelo qual todo o trecho de meu
antigo texto é atravessado por uma contradição. Por um lado, ao longo de todo o
texto, condenei a agitação abstencionista por princípio, justamente porque a
palavra da ordem do boicote deve ser levada a sério, deve ser historicamente
viável. Aqui, afirmo: “sem as devidas condições objetivas, essa defesa do voto
nulo jamais poderá evoluir rumo a um boicote de massas”. Reconheço que “na
ausência de uma candidatura própria do proletariado e de um contexto de levante
das massas, o proletariado não simplesmente deixará de votar, em sua maioria –
mas votará em alternativas burguesas. É isso que, via de regra, ocorre nos
segundos turnos.” Contudo, querendo facilitar o expediente da defesa do voto
nulo em segundo turno, eu postulo que basta afirmar tudo isso com bastante
franqueza: “É possível seguir, pela defesa do voto nulo, fazendo a propaganda
de nossas posições – sem contudo acreditar que a mera necessidade de nos
abstermos coloque na ordem do dia a agitação pelo boicote pelas massas. Sabendo
que, inevitavelmente, faremos nossa propaganda em meio ao pragmatismo
oportunista generalizado e a desesperada procura pelas massas de um
“mal-menor”. É indigno de um partido revolucionário fazer qualquer coisa que
não apontar, em meio a essa procura, os verdadeiros males em jogo, com suas
possíveis nuances ou não”.
E aqui, também, generalizei de modo absolutamente equivocado aquilo que
apenas pode ser verdade em algumas circunstâncias. “É indigno de um partido
revolucionário fazer qualquer coisa que não apontar, em meio a essa procura, os
verdadeiros males em jogo, com suas possíveis nuances ou não”. Isso é verdade a
todo tempo. Mas em algumas circunstâncias, essa tarefa de apontar os
verdadeiros males em jogo, com suas possíveis nuances ou não, pode desembocar
em uma ou outra recomendação – o voto nulo ou o apoio e alguma candidatura
específica! Em algumas circunstâncias, “é possível seguir, pela defesa do voto
nulo, fazendo a propaganda de nossas posições – sem contudo acreditar que a
mera necessidade de nos abstermos coloque na ordem do dia a agitação pelo
boicote pelas massas”. Em outras, não. Em outras ocasiões, as nuances concretas
dos “males” em jogo permitem, com efeito, uma indicação de voto crítico.
É muito correto que a política revolucionária busque evitar sua
desmoralização em direção ao reformismo. Se a cada vez que os reformistas
gritassem “lobo!” os revolucionários corressem em seu apoio, apenas para depois
verem seu apoio utilizado em favor de ataques à classe trabalhadora, certamente
estaríamos naquela posição de quem apenas “difunde ilusões”. Por outro lado, se
o lobo realmente vem, e os revolucionários não o repelem a tempo apenas porque
se acostumaram a ignorar os gritos dos oportunistas, decerto tal situação seria
igualmente desmoralizadora.
Não podemos descartar qualquer possibilidade de apoio a um “mal menor”,
apenas em nome de vermo-nos livres de todo aquele oportunismo que defende por princípio o “mal menor”. Todo principismo
abstrato em matéria de tática é inadmissível para o marxismo, e dá má
compreensão entorno deste princípio da
tática comunista decorrem boa parte dos desvios oportunistas e esquerdistas: a
tática deve ser a mediação concreta entre os princípios gerais (estratégicos e
programáticos) e a situação concreta.
Os exemplos de Engels são didáticos. Mesmo
na Alemanha, onde o partido recusava qualquer acordo com
partidos burgueses ou pequeno-burgueses, a recomendação em segundo turno se
amarrava a um programa concreto: contra a Lei do Exército, contra o aumento dos
impostos e contra a restrição de direitos. Onde não havia candidaturas
proletárias, se promovia não uma agitação pelo boicote, mas a propaganda do
programa social-democrata, autorizando o apoio a qualquer candidatura que
erguesse o programa mínimo da fração social-democrata no parlamento. Posta
nesses termos, a política que Engels defende para esses casos de segundo turno
não tem nada a temer quanto à “perda de independência” ou à “difusão de
ilusões”: em cada pleito, é preciso avaliar o compromisso efetivo de cada
candidatura com esse programa mínimo, e então “instruir a votar apenas” nas
candidaturas comprometidas com esse programa. Não se trata, certamente, de se
deixar “subornar pelas frases dos democratas”, que ameaçam os revolucionários
“irresponsáveis” de abrirem caminho ao “mal maior” com sua abstenção. É
possível que, com efeito, entre todas as candidaturas postas politicamente na
oposição, nenhuma delas possa se comprometer com essa
programa mínimo – e então, certamente, não se poderia instruir
a votar em tais candidaturas, não importa o quão eloquente seja sua fraseologia
popular.
Um bom exemplo, a esse respeito, é o caso do provável segundo turno nas
eleições para o governo do estado de São Paulo. É bem provável que, no segundo
turno contra o PSDB de João Dória, uma série de oportunistas “de esquerda”
recomendem o apoio ao burocrata demagogo Márcio França. Seria um “mal menor”
minar a longa dominação do PSDB em São Paulo, afirmarão. Dória leva mais longe
sua fraseologia privatista, então seria um “mal maior”. Todo esse raciocínio,
isto sim, seria indigno em uma política revolucionário: de fato, nenhuma destas
candidaturas pode oferecer qualquer compromisso sério e consistente com a
agenda mínima da classe trabalhadora e do povo trabalhador contra a retirada de
direitos, a austeridade, a repressão crescente, etc.
Outro bom exemplo é o caso da recomendação de voto
nulo, feita pelo Partido Comunista Brasileiro em 2014. Naquela
época, essa recomendação foi criticada por muitos reformistas como um
monstruoso ato de esquerdismo, de abstencionismo por princípio, etc. Ora, como
pregar a abstenção, se Dilma agitava uma retórica anti-banqueiros, e Aécio
Neves defendia austeridade, reformas, privatizações, etc? Não tardou para que a
posição dos comunistas se justificasse: eleita, Dilma rompeu com toda sua
fraseologia, passando a concordar com a necessidade de austeridade, reformas e
privatizações; nomeou o representante dos bancos, Joaquim Levy, para o
Ministério da Fazenda e a adversária dos movimentos dos trabalhadores rurais
pobres, Kátia Abreu, para o Ministério da Agricultura. A apreciação do PCB
mostrou-se correta: a candidatura de Dilma tinha contradições que a tornavam
incapaz de se comprometer com o programa mínimo da classe trabalhadora.
Buscando apresentar a correção da tática
do voto nulo em segundo turno nestes casos, acabei generalizando afirmações que
apenas são válidas para determinadas situações: aquelas em que, com base na
análise concreta da situação concreta, seja possível sustentar que inexistem candidaturas capazes de se comprometer com o programa
mínimo da classe trabalhadora. Longe de demonstrar que o voto nulo
em segundo turno é, em todo caso, um “infantilismo de esquerda”, o que os
exemplos históricos de Engels permitem compreender é a complexidade do tema. O
único caminho para a verdadeira ciência está em escalar veredas escarpadas, sem
recear a fadiga: não se pode descartar, em todo o caso, a possibilidade de
apoio a um “mal menor”, apenas em nome de ver-se livre de todo o oportunismo
que defende por princípio o “mal menor”.
A respeito dessa questão do “mal menor” e também sobre a tática no segundo
turno das eleições, é bastante proveitoso consultar as apreciações do camarada
Vladimir Ilitch Ulianov, o Lenin.
Lenin e o segundo turno
No texto sobre o voto nulo, expus o desenvolvimento histórico da tática
bolchevique nas eleições para a Duma: o acertado boicote de 1905; o
questionável boicote de 1906 (que Lenin defendeu e, mais tarde, considerou um
equívoco parcial); o equivocado boicote de 1907 à II Duma. Ficou demonstrado de
que modo a tática nas eleições deve se relacionar com o estágio concreto da
luta de classes: conforme reflui a revolução de 1905, os bolcheviques
gradativamente passam do boicote ativo combinado à agitação insurrecional para
uma tática de luta parlamentar associada às lutas de massas. Do mesmo modo, é
bastante instrutivo observar como essa progressiva desaceleração e reacomodação
da luta de classes modifica a própria tática proposta por Lenin em cada pleito,
em especial no que diz respeito aos acordos com os outros partidos e quanto à
questão do “risco do fortalecimento da extrema-direita”.
Defendendo a participação socialista
nestas eleições para a II Duma, realizadas de janeiro a março de 1907, Lenin ao
mesmo tempo criticou severamente a tática eleitoral dos mencheviques. Na
opinião de Ilitch, as alianças eleitorais entre a Social-Democracia e o partido
Democrata Constitucionalista (Kadetes) burguês eram equivocadas. Enquanto os
bolcheviques aceitavam acordos apenas com partidos que reconhecessem a
necessidade da insurreição armada em favor da república (como os SR e os
Trudoviques); os mencheviques permitiam acordos com qualquer “partido
democrático de oposição”, mesmo os liberais mais hesitantes (os Kadetes defendiam
posições atrasadas em relação a temas como a restrição do direito de voto, a
existência de uma Câmara Alta, defendiam leis repressivas, vacilavam a questão
da reforma agrária, etc). No contexto dessa polêmica, Lenin comenta uma
das justificativas dos mencheviques para tal aliança: a “ameaça reacionária”
nas eleições:
“Os bolcheviques permitem acordos com republicanos burgueses apenas como
uma ‘exceção’. Os mencheviques não demandam que blocos com os Kadetes devam ser
apenas uma exceção. […]
Os bolcheviques proíbem absolutamente
acordos nas circunscrições eleitorais operárias(‘com qualquer outro
partido’). […]
O principal argumento dos mencheviques é o
perigo das Centúrias Negras [partido reacionário paramilitar]. A primeira e
fundamental falha neste argumento é que o perigo das Centúrias Negras
não pode ser combatido por táticas de Kadete e por uma política
de Kadete. A essência dessa política está na reconciliação com
o czarismo, isto é, com o perigo das Centúrias Negras. A primeira Duma
demonstrou suficientemente que os Kadetes não combatem o perigo das Centúrias
Negras, mas fazem discursos incrivelmente desprezíveis sobre a inocência e a
irrepreensibilidade do monarca, o conhecido líder das Centúrias Negras. […]
A segunda falha neste argumento está no fato de que ele significa que a
Social-Democracia tacitamente renuncia à hegemonia na luta democrática em favor
dos Kadetes. No caso de uma votação dividia que assegure a vitória para as
Centúrias Negras, porque nós deveríamos ser culpados por não votar nos Kadetes,
em não os cadetes por não terem votado em nós?
‘Nós estamos em minoria’, respondem os mencheviques, em um espírito de
humildade cristão. ‘Os Kadetes não mais numerosos. Você não pode esperar dos
Kadetes que eles se declarem revolucionários’.
Sim! Mas essa não é uma razão para que os Social-Democratas devam
declarar-se eles próprios Kadetes. Os Social-Democratas não obtiveram, e não
poderiam obter uma maioria sobre os democratas burgueses em nenhum lugar do
mundo em que o desfecho da revolução burguesa fosse indecisivo. Mas, em todos
lugares, em todos os países, a primeira entrada independente da
Social-Democracia em uma campanha eleitoral foi recebida pelos uivos e latidos
dos liberais, acusando os socialistas de quererem dar a vitória às Centúrias
Negras.
Nós estamos, então, bastante
despreocupados com o lamento usual dos mencheviques sobre os bolcheviques
estarem deixando as Centúrias Negras vencer. Todos os liberais gritaram isso
para todos socialistas. Ao recursar-se a lutar contra os Kadetes, você está
deixando sob sua influência ideológica as massas de proletários e
semi-proletários que seriam capazes de seguir a liderança dos
Social-Democratas. Agora ou depois, a menos que vocês deixem de ser
socialistas, vocês terão que lutar de modo independente, a despeito do perigo
das Centúrias Negras. […] Mas o verdadeiro perigo das
Centúrias Negras, repetimos, reside não em
as Centúrias Negras obterem assentos na Duma, mas nos pogroms e tribunais militares; e
vocês estão tornando mais difícil para o povo combater esse perigo real ao
colocarem viseiras Kadetes em seus olhos.”
Ainda no curso da agitação para as
eleições da II Duma, quando os mencheviques romperam suas tratativas de acordo
com os Kadetes por conta do número de assentos disponíveis (os mencheviques
exigiam três, um para eles, um para os SR e um para os Trudoviques, enquanto os
Kadetes ofereciam apenas dois assentos para esta “ala esquerda” da coligação),
Lenin assinalou com
dureza:
“Seu primeiro argumento é de que, tendo negado que exista um perigo das
Centúrias em São Petesburgo, os bolcheviques não tem nenhum direito a se
declararem a favor de um acordo com os Socialistas-Revolucionários e com os
Trudoviques, uma vez que isso vai contra a decisão da Conferência de Toda a
Rússia, que demanda uma ação independente por parte dos Social-Democratas na
ausência de um perigo das Centúrias Negras. […]
Quando um socialista realmente acredita em
um perigo das Centúrias Negras e está sinceramente combatendo-o – ele vota
pelos liberais sem qualquer barganha, e não interromper as negociações se dois
assentos em vez de três lhe forem oferecidos. Por exemplo, pode acontecer que
num segundo turno, na Europa, surja um risco de vitória das Centúrias Negras
quando os liberais obtiverem, digamos, 8.000 votos, o representante ou
reacionário das Centúrias Negras, 10.000, e os socialistas 3.000. Se um
socialista acredita que o perigo das Centúrias Negras é um perigo real para a
classe trabalhadora, ele votará pelo liberal. Nós não temos segundo turno na
Rússia, mas podemos chegar a uma situação análoga ao segundo turno na nossa
‘segunda rodada” eleitoral. Se de 174 eleitores, digamos, 86 são Centúrias
Negras, 84 Kadetes e 4 Socialistas, os socialistas devem depositar seus votos
no candidato Kadete, e até aqui nenhum único membro do Partido Operário
Social-Democrata da Rússia questionou isso. […]
Fica cada dia mais claro que os
Mencheviques tomaram o rumo político errado quando se levantam lamentações
sobre o perigo das Centúrias Negras. Está ficando claro que os delegados e
eleitores estão mais à esquerda este ano do que no ano passado. Em vez de agir
como cúmplices ridículos e vergonhosos dos latifundiários liberais (o que não
pode ser justificado pelo apelo de um perigo das Centúrias Negras, pois nenhum
existe), um papel útil e responsável nos espera; exercer a hegemonia do proletariado sobre a pequena burguesia
democrática em luta para impedir a subordinação das massas não
esclarecidas à liderança dos liberais.”
Nessas eleições para a II Duma o prognóstico de Lenin se concretizou.
Enquanto na I Duma as Centúrias Negras ocuparam 8 de 566 cadeiras (menos de
1,5%), na II Duma sua participação passou a pouco mais de 2% (10 de 453
cadeiras). Mesmo a Direita mais moderada, uma tendência
monarquista-constitucional chamada Outubrista, oscilou apenas de 17 para 42. Em
conjunto, os Social-Democratas, Trudoviques e SR (que participaram apenas no
segundo pleito) passaram de 154 para 188 assentos.
Mas, para além disso, Lenin oferece uma
exposição bastante complexa sobre a tática eleitoral comunista. Apresentando
candidaturas independentes, a esquerda revolucionária busca contribuir para
realizar a hegemonia do proletariado; exercer
uma influência que não empurre a classe trabalhadora “para os braços da
política burguesa”, como dizia Engels, mas a organize sob o programa mais
avançado. Tudo aquilo que já vimos em outra oportunidade: “para manter sua
democracia, para manter sua autonomia, para contarem suas forças, trazerem a
público a sua posição revolucionária e os pontos de vista do partido”; para
“educarem o setor atrasado da classe”; em suma: para construir a independência
ideológica do proletariado, condição de sua hegemonia no movimento
revolucionário. Lenin repete aqui o mesmo raciocínio de Marx: “mesmo
onde não existe esperança de sucesso, devem os operários apresentar os seus
próprios candidatos”, sem “deixar-se subornar pelas frases dos democratas, como
por exemplo que assim se divide o partido democrático e se dá à reação a
possibilidade da vitória. Com todas essas frases, o que se visa é que o proletariado
seja mistificado. Os progressos que o partido proletário tem de fazer, surgindo
assim como força independente, são infinitamente mais importantes do que o
prejuízo que poderia trazer a presença de alguns reacionários na
Representação.”
Ao mesmo tempo, Lenin é categórico: “Em um
segundo turno”, “se um socialista acredita que o perigo das Centúrias Negras é
um perigo real para a classe trabalhadora, ele votará pelo liberal”. Nas
eleições para a II Duma, Lenin notava que esse cenário era uma possibilidade
remota nas circunscrições eleitorais operárias, de modo que qualquer acordo com
um partido burguês ou pequeno-burguês estava vedado. Nas gubernias (unidades administrativas) rurais que
cobriam a Rússia, por outro lado, Lenin admitia como permissível o apoio aos liberais contra a reação (sem qualquer
barganha, sem qualquer acordo). Mas
considerava possíveis acordos, contra os liberais, com os Trudoviques e SR,
essa ala esquerda da pequena-burguesia democrática – lançando listas conjuntas
para a votação, por exemplo.
Não obstante, Lenin alerta sobre como “o
verdadeiro perigo das Centúrias Negras” “reside não em as Centúrias Negras
obterem assentos na Duma, mas no pogroms e
tribunais militares”. Esse perigo não podia “ser combatido por táticas de”
“reconciliação com o czarismo”, como pregavam os Kadetes. A política dos
mencheviques dificultava o combate a este perigo real, essa violência
reacionária que se alastrava; um perigo que mesmo a eleição de um liberal,
derrotando um reacionário, não poderia fazer cessar de aumentar.
A II Duma se instalou em março, durando até junho de 1907, por 103 dias. Em
1 de junho de 1907, o primeiro-ministro Pyotr Stolypin acusou os
Social-Democratas de prepararem um levante armado, exigindo que a Duma
excluísse 55 Social-Democratas das sessões da Duma e privando 16 deles da
imunidade parlamentar. Quando esse ultimato foi rejeitado pela Duma, esta foi
dissolvida em 3 de junho por um decreto do czar. Foi o golpe definitivo da
reação contra a Revolução Russa de 1905. Em outubro do mesmo ano se organizaram
as eleições para a III Duma, que duraria até 1912, sendo um parlamento dos
grandes proprietários, diante das modificações censitárias restritivas
realizadas previamente sobre a legislação eleitoral. Mesmo sendo mais um
“parlamento reacionário”, como descrevia Lenin, o bolchevique defendeu
vigorosamente a participação em tais eleições – conseguindo, desta vez,
reverter a atitude boicotista da ala revolucionária da Social-Democracia. Os
Social-Democratas elegeram apenas 18 deputados de 465 (a maioria bolchevique),
e os Trudoviques elegeram apenas outros 13. Os Outubristas foram os grandes
vencedores, com 154, e as Centúrias Negras saltaram para uma cifra de 147!
“Existem duas linhas de política da classe
trabalhadora: a linha liberal – o medo acima de tudo da
eleição de um reacionário, e portanto a rendição da liderança aos
liberais sem luta. A linha marxista – não se
permitir desencorajar pelos lamentos liberais sobre o perigo da
vitória de um [candidato da] Centúria Negra, mas audaciosamente lançar-se em
uma luta de “três cantos” (para usar a expressão
inglesa)”.
Nesse período, após cinco anos de domínio
absoluto da reação, a classe operária russa volta a se movimentar. Digna de
nota é a greve nas minas de ouro em Lena, no começo de 1912, massacrada pelas
tropas czaristas. Por isso, a despeito da força eleitoral dos reacionários,
Vladimir Ilitch continua divergindo profundamente do reboquismo menchevique.
Lenin explicaque a
esquerda oportunista russa cometia um erro não só tático, mas inclusive
técnico, reduzindo as possibilidades táticas da classe operária por não
compreender as grandes diferenças entre o segundo turno alemão (um segundo
turno efetivamente, como no Brasil) e o russo (na verdade, uma segunda eleição,
que não oferecia apenas as duas alternativas mais votadas, permitindo aos
partidos tanto reapresentar seus candidatos como compor novas alianças).
“O segundo turno é, na Alemanha, uma escolha entre apenas dois candidatos,
aqueles que receberam o maior número de votos na primeira votação. No caso dos
alemães, o segundo turno decide apenas qual dos dois candidatos que receberam o
maior número de votos deve ser eleito. […]
Na Alemanha, há apenas uma questão de
escolher o mal menor: aqueles que foram derrotados no primeiro turno (e todos
eles são excluídos do segundo turno) não podem ter outro objetivo. […]
Na Alemanha, por um lado, o candidato de
classe trabalhadora não pode obter qualquer benefício para si próprio, ou seja,
qualquer benefício direto, da luta entre os partidos de Direita [reação] e os partidos de oposição burgueses. Ele pode
apoiar a oposição liberal contra a Direita se ambos forem de força praticamente
igual; mas ele não pode tirar proveito de um empate entre seu oponente liberal
e reacionário para si obter a vitória. […]
[Na Rússia], quando quer que os liberais, na primeira eleição, se provem mais
fortes que os reacionários, e os candidatos da classe trabalhadora mais fracos
que os liberais, é o dever dos trabalhadores, tanto to ponte vista
da tarefa política de organizar as forças da democracia em geral, quanto do
ponto de vista da eleição de candidatos da classe trabalhadora para a Duma
[mediante ‘coligações’], fazer causa comum com a
democracia burguesa (Narodniks, Trudoviques, etc) contra os liberais.
É provável que tais casos ocorram frequentemente?
Não muito frequentemente nas assembleias
eleitorais das gubernias; aqui, na maioria dos
casos, os liberais serão mais fracos que os reacionários, e será, portanto,
necessário formar um bloco de todas as forças de oposição no sentido de
derrotar os reacionários. […]
Em casos de um segundo turno, principalmente na segunda circunscrição
urbana, será mais frequente fazer causa comum com os democratas contra os
liberais e contra a Direita; e apenas subsequentemente talvez seja necessário,
no segundo turno, aderir ao bloco geral de oposição contra os reacionários.”
“Não obstante, nós repetimos mesmo em 1912
que tanto em um segundo turno quanto em uma segunda rodada das eleições é
permissível entrar em acordo com os
liberais contra a Direita. Porque, a despeito de sua
ambiguidade, o liberalismo-monarquista burguês não é em absoluto a mesma coisa
que a reação feudal. Seria uma péssima política da classe trabalhadora não
tirar proveito desta diferença.”
Neste contexto, Lenin admite uma margem maior para a possibilidade de
acordo com os liberais (inclusive lançando na segunda rodada eleitorais listas
de candidatos conjuntas). Ainda assim, demonstra como as particularidades do
sistema russo permitiam, em muitos casos, sustentar as candidaturas
socialistas, buscando aproveitar-se da divisão dos votos entre os Liberais e a
Direita para obter a vitória para o proletariado. Mas quando o primeiro turno
já permitia prever uma maioria avassaladora da reação sobre os liberais, nestes
casos era preciso, sim, “escolher o mal menor”, já que mesmo o mais débil liberalismo
burguês ainda “não é em absoluto a mesma coisa que a reação feudal”. Porque, a
despeito de sua debilidade, esse liberalismo representava ao menos um
compromisso com o programa mínimo da revolução democrática, defendida naquela
época pela Social-Democracia revolucionária, em oposição ao programa feudal e
reacionário dos partidos abertamente pró-czarismo.
O segundo turno no Brasil
Todas essas colocações são bastante esclarecedoras do ponto de vista mais
geral, de princípios. Do ponto de vista técnico tanto quanto do político,
porém, as situações abordadas são bastante diferentes da situação brasileira.
Aqui, todo o debate se dá em torno de eleições para os governos executivos,
enquanto na Rússia se tratava de eleições parlamentares. Lá, uma tática equivocada
em segundo turno poderia implicar, no máximo, na vitória de um punhado de
reacionários a mais para a representação parlamentar. Aqui, contudo, trata-se
da disputa pela poderosa maquinaria coercitiva do poder executivo. Esse é o
aspecto “técnico” da diferença, que tem na verdade uma origem política.
Na Rússia do começo do século passado, o
poder de Estado era ainda um poder hereditário e sem limites constitucionais.
Nessa época do governo autocrático, subsistia não apenas a forma do antigo
poder, mas uma grande classe feudal de proprietários
de terras, diretamente associados à estrutura administrativa e
repressiva, e que obstruíam significativamente o desenvolvimento do capitalismo
no campo e, por consequência, de um mercado interno para a indústria russa. A
burguesia, que ainda não estabelecera seu domínio republicano, ainda tinha
nesta época alguns representantes na oposição política, defensores da liberdade
de expressão, de organização, do direito de voto, do “império da lei” sobre os
funcionários públicos, etc. A Social-Democracia, vanguarda da nascente classe
trabalhadora, considerava como seus maiores adversários a autocracia feudal e
seus partidários reacionários. Alertava a classe trabalhadora a manter sua
independência sem negligenciar que, em sua luta, contava com dois aliados mais
ou menos consequentes. Por um lado, podia marchar até mais longe ao lado
dos democratas, representantes das parcelas mais radicais
dos camponeses pobres e da intelectualidade urbana. Por outro lado, alerta às
vacilações desse setor, também deveria reconhecer na ainda mais vacilante
burguesia reconciliadora, os liberais, um
potencial aliado em algumas batalhas
contra a reação, em especial essas eleitorais.
No Brasil, a situação é bastante diferente: já
há mais de um século a dominação burguesa se estabeleceu, sob a forma de um
estado de direito. Esse estado pode ser mais ou menos democrático, a depender
das pressões da massa proletária e das camadas médias oprimidas, e a depender
dos diferentes arranjos entre as várias frações burguesas: o agronegócio capitalista, os investidores, os
industriais, os grandes capitais comerciais, etc. Mas mesmo nas suas formas
mais despóticas, essa dominação permanece baseada sobre a igualdade jurídica
entre todos os proprietários, e não sobre a ordem dos privilégios feudais ou escravistas
dos grandes proprietários agrários. Aqui, via de regra, as forças da reação não
são as forças de uma restauração escravista ou feudal, nem são as forças
regularmente dominantes: são forças bonapartistas burguesas, fascistóides, que
apenas nos momentos da maior crise social podem se fortalecer e impôr, em
caráter de exceção. Mesmo que nos momentos de ascensão dessas forças
reacionárias algumas alas burguesas mais liberais possam vacilar, nenhuma delas
pode se colocar em qualquer oposição consequente à dominação vigente, ela
própria burguesa. Se no período de Lenin os Kadetes são apenas uma fração
burguesa da oposição parlamentar, uma ala esquerda da burguesia conciliadora
com a autocracia; em nosso período a política Kadete, a política liberal burguesa,
é a política dominante e, ainda mais, está dividida entre si em inúmeras
tendências mais ou menos centristas, mais ou menos social-liberais: se dividem
muito nitidamente numa ala mais à direita e outra mais à esquerda, mediados por
um gigantesco “centrão” burguês, mas em todo caso mantém seu caráter comumente
republicano burguês. Justamente por isso, ainda que possam ser aliados pontuais
em algum combate contra a reação, são aliados demasiadamente instáveis. Os
motivos para a desconfiança da classe trabalhadora revolucionária nestes
aliados é ainda mais justificada, e por isso mesmo deve-se refletir num apoio
crítico, reticente, independente. Um apoio que ponha em destaque as
insuficiências e riscos da tática de conciliação de classes.
É por isso mesmo que não se pode adotar
como regra a tática do “mal menor”. Nos segundos turnos, quando a esquerda
liberal enfrenta alguma direita qualquer, as forças revolucionárias são sempre
interpeladas publicamente pela forte maré do “pragmatismo”. O “mal menor” é a palavra de ordem permanente do oportunismo.
Acertadamente, em diversas ocasiões, os comunistas resistiram a esse assédio, e
sustentando a defesa do voto nulo, além de outras linhas de demarcação entre a
política revolucionária e a política de conciliação de classes.
Nas eleições em que os social-liberais se batem com os neo-liberais, a
bandeira do voto nulo realmente pode contribuir para a consolidação da esquerda
revolucionária como força independente. Se no segundo turno não há nenhuma
força reacionária, mas apenas alternativas democrático-burguesas (mais ou menos
sociais, mais ou menos liberais, distintas não tanto em qualidade, mas em
quantidade, “intensidade”, etc); nesse caso, o voto nulo é correto e educativo
do ponto de vista político. Nesses casos, é até mesmo impossível mesurar qual
dos evidentes males é, efetivamente, o menor (e, na verdade, poderíamos
argumentar infinitamente sobre os males maiores ou menores de uma ou de outra
candidatura, tanto em termos de suas propostas para cada tema, quanto do pondo
de vista dos efeitos de sua vitória para o combate independente da classe
trabalhadora e das camadas oprimidas).
Mas se o caso é de um perigo real; havendo
o risco verdadeiro de um fortalecimento das posições da
reação na luta de classes, como resultado de uma eleição; então
a defesa do voto nulo seria equivocada; a “indiferença eleitoral” seria um
abstencionismo vazio, que não expressaria realmente nenhuma combatividade consequente neste cenário.
Há, nesse caso, um mal realmente maior, que não diz respeito apenas à retórica
eleitoral, mas à dinâmica da luta de classes.
Passemos da formulação abstrata para as situações concretas. Quais são as
diferenças fundamentais entre as eleições de 2014 e as eleições de 2018, por
exemplo?
Em 2014, vivíamos os primeiros estágios da
crise do ciclo petista. Desde junho de 2013 as massas passavam a se movimentar
mais amplamente, com mais vigor, precipitando a crise das alternativas de
conciliação de classes – enquanto a burguesia manobrava e se reorganizava para
iniciar uma contraofensiva. Nesse contexto, Aécio e Dilma não representavam
terrenos tão diferentes, em termos objetivos,
para a luta social. Com suas diferenças subjetivas,
representavam do ponto de vista econômico diferenças de intensidade e ritmo,
não de qualidade (com sempre, o petismo sinalizava tranquilidade à burguesia,
por baixo de sua agitação “popular” de campanha – o curto segundo governo Dilma
comprovou esta tese). Do
ponto de vista político mais geral também não apresentavam distinções
objetivas: nenhuma candidatura ia além nem ia aquém da república democrática
burguesa, em um momento em que sua crise ainda começava a amadurecer. Dilma não
podia se comprometer, naquele estágio da luta, com o programa mínimo ofensivo da classe trabalhadora.
Em 2018, a luta de classes se encontra em
um estágio distinto. O governo de conciliação de classes foi deposto por uma
ofensiva política burguesa. A classe trabalhadora passou à defensiva, sob ataques. De modo semelhante, do ponto de
vista econômico, Bolsonaro e Haddad também não representam diferenças de
qualidade, mas de quantidade (e talvez isso seja ainda mais nítido hoje do que em 2014, porque os
métodos liberais do petismo levam Haddad a sinalizar à burguesia com ainda mais
concessões, ainda mais cedo). Mas a eleição de um ou de outro implica,
politicamente, um terreno qualitativamente distinto para o desenvolvimento da
luta de classes do proletariado, no próximo período. Por um lado, num estágio
avançado da crise da república democrática burguesa, Haddad representa
(tragicomicamente) sua continuidade; enquanto Bolsonaro aponta para seu
progressivo solapamento em favor da maior repressão. A eleição de Bolsonaro não
implicaria apenas a intensificação da violência estatal contra as massas, mas a
intensificação de todo o tipo de violência reacionária. Todo o tipo de
miliciano reacionário, clubes de tiro, bandos armados dos latifundiários e
gangues urbanas de extrema-direita seriam estimulados e encorajados,
erguendo-se moralizados contra a classe trabalhadora organizada, o povo negro,
as mulheres, as LGBT, toda a massa precarizada de trabalhadores imigrantes,
etc. Hoje, o “risco do fascismo” ainda precisa amadurecer para poder se impôr
plenamente, ainda carece de tropas melhor centralizadas (ainda que seja, já no
atual momento, superior aos revolucionários em termos de organização da
coerção), etc. A eleição de Bolsonaro oferece as condições mais propícias para
esse amadurecimento. Por isso, em síntese, mesmo no caso de Haddad girar o mais
à direita que puder, no plano das concessões econômicas à burguesia; ou mesmo
no caso de Haddad ser deposto; nestes dois casos ainda sim estamos em um
terreno mais favorável para travarmos abertamente nossa luta do que sob o
porrete de Bolsonaro.
Justamente essa compreensão dialética da
questão tática (levando em conta que a verdade é sempre concreta)
permite aos comunistas distinguirem sua política ao mesmo tempo do esquerdismo
e do oportunismo; da conciliação desesperada e do vanguardismo inconsequente.
Os comunistas participam nas eleições para
manterem sua independência. Isso é um ponto de princípio. Mas é um grande
equívoco acreditar que em qualquer circunstância o
apoio dos comunistas ao reformismo, em segundo turno, representaria uma “perda
de autonomia”. Na verdade, quando o perigo reacionário se ergue e a parcela
mais ativa da classe trabalhadora, movida pelo seu mais imediato instinto de
classe, pende ao voto útil nos reformistas, nossa abstenção significaria
precisamente conceder nossa independência sem luta; permitir
que a agitação contra a reação seja conduzida pelas lideranças mais liberais e
vacilantes, sem nos lançarmos, com a devida força e prioridade, a uma
agitação independente e classista, que explique pacientemente a
questão dos “dois males”, e de que modo há, efetivamente, neste caso, um “mal
maior”. Em tal situação, com nossa abstenção, não estaríamos combatendo as
ilusões no reformismo. Estaríamos difundido ilusões de um outro tipo: ilusões
na possibilidade de um desenvolvimento pacífico da luta de classes; ilusões a
respeito da “equivalência” completa entre os reformistas burgueses e os
bonapartistas burgueses!
Muitos revolucionários manifestam preocupação (não despropositada) sobre o
efeito ideológico de uma vitória petista sobre a massa. É uma questão digna de
discussão, certamente. Mas se o que tememos é prolongar a hegemonia do
reformismo sobre o movimento operário, é preciso ter em mentes que essa
possibilidade está dada de modo igualmente intenso em ambos os cenários: tanto
no cenário em que Bolsonaro se eleja, e o PT assuma debilmente a posição de
força maior da oposição; quanto no cenário em que o PT seja eleito (talvez
aqui, na verdade, seja um terreno inclusive mais favorável aos revolucionários
nesse aspecto, com vistas a escancarar a debilidade dos métodos e concepções
petistas, etc). Do mesmo modo, a vitória de Haddad também não implica a derrota
completa do fascismo, mas apenas uma condição menos favorável para seu
amadurecimento acelerado (ainda que este siga se desenvolvendo por meio da
agitação de oposição ao governo petista, será mais facilmente minado e
subordinado pela oposição parlamentar burguesa a Haddad, etc).
Se considerarmos que ambas candidaturas
são males aproximados, e contra uma delas pesa o evidente mal maior do ponto de
vista das liberdades políticas e do desenvolvimento das forças da reação;
enquanto contra a outra pesa como evidente mal maior apenas as debilidades do
governo vindouro e as ilusões maiores ou menores que este possa difundir; nesse
caso é evidente que um potencial risco subjetivo não
pode ser posto em primeiro lugar em relação a um muito mais provável revés objetivo.
O essencial, nesse aspecto ideológico, é
derrotar Bolsonaro eleitoralmente sem, contudo, silenciar sobre a impotência da tática petista para oferecer combate à reação para
além das urnas. Sabemos que o perigo reacionários não
pode ser combatido por táticas de reconciliação com a ofensiva burguesa.
Uma coisa é dizer que há vantagens em prolongar o período de desenvolvimento
pacífico e democrático dessa ofensiva; outra coisa é acreditar que ela será
interrompida pelos métodos liberais-democráticos do petismo.
Por isso tudo, de um ponto de vista comunista revolucionário, a defesa de
uma oposição ferrenha a Bolsonaro, no segundo turno de 2018, é absolutamente
correta. Ao mesmo tempo, se apresentada de modo independente, essa bandeira
(#EleNão) carece de graves insuficiências. Não destaca o significado histórico
de Bolsonaro e da oposição das forças revolucionárias a ele. Não permite
destacar a relação entre Bolsonaro, Haddad e a ofensiva burguesa contra a
classe trabalhadora e o povo oprimido. Não serve de arma para combater, desde
já, as ilusões nos métodos reconciliadores de Haddad; nem para agitar, desde
já, a preparação para as lutas de classes no terreno de um novo governo
petista. Por isso mesmo, é necessária uma palavra de ordem delicadamente
equilibrada, que não engane a massa nem sobre as diferenças nem sobre as
semelhanças entre Haddad e Bolsonaro. É preciso afirmar com precisão que tipo
de tragédia significa, para nossa classe, a possível vitória de cada um destes
candidatos – o reacionário burguês e o democrata burguês. É preciso combater a vitória
eleitoral do reacionário, para enfrentar em um melhor terreno as vacilações do
democrata e a ofensiva da classe dominante.
A palavra de ordem “Derrotar Bolsonaro e construir a alternativa socialista”
responde de modo bastante adequado a estes requisitos, e sobre ela podemos
lastrear de modo bastante seguro nosso combate a Bolsonaro: abordando em nossa
propaganda cada um dos aspectos da atual situação do modo mais vasto possível,
sintetizando nossa compreensão sobre a agenda burguesa, sobre o risco do
fortalecimento dos reacionários e sobre as insuficiências dos métodos de
reconciliação petistas. Ao mesmo tempo, a agitação comunista não apenas convocará
as massas a intervir politicamente através do voto em Haddad contra Bolsonaro,
mas especialmente prosseguindo em formas de luta mais avançadas, organizando
novas manifestações de massas (como as do dia 29/09), e pacientemente
preparando as forças das camadas oprimidas para seguir em luta ao lado da
classe trabalhadora contra todas as manifestações da ofensiva burguesa.
Respeitamos e compreendemos toda a militância combativa de nossa classe que
optará, neste segundo turno, pela abstenção eleitoral. Mas é preciso afirmar
pacientemente que, neste caso, a abstenção seria apenas uma equivocada
repetição mecânica dos acertos passados da esquerda revolucionária. É preciso
explicar pacientemente a essas parcelas das forças revolucionárias que o
boicote ao segundo turno, por si só, é absolutamente incapaz de elevar o
movimento proletário e a luta revolucionário a uma fase superior – do combate à
reação burguesa para a ofensiva socialista. E que apenas lutando contra
Bolsonaro desde já, ao lado das camadas mais avançadas do povo explorado e
oprimido, será possível às forças revolucionárias manterem-se à frente do
movimento popular, lutando pela sua reorganização no bojo da própria luta
contra a reação, sob as bases de um programa classista, revolucionário e socialista!
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