segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

EUA ameaçam guerra generalizada

Sara Flounders (*) 
Quinta-feira, 9 Janeiro, 2020

Esta nova década inicia-se com ameaças abertas de barbárie por parte dos EUA. Mas, ao mesmo tempo, os sinais que vêm do Médio Oriente (e de outras partes do mundo) dão conta de uma ampla resistência de milhões de pessoas, fartas de tiranias e de más condições de vida. Resistência essa que não parece já episódica e de propósitos limitados, mas que sugere o germinar de novas ondas de lutas de massas de maior alcance. Não sendo, na maioria, expressamente anti-imperialistas e anticapitalistas, têm contudo como alvo objectivo a dominação das grandes potências (nomeadamente os EUA) e o descalabro a que o capitalismo conduziu o mundo. São por isso potencialmente revolucionárias.

O texto que publicamos aborda o recente conflito entre EUA e Irão, na sequência do assassinato do general Soleimani. Os dados que fornece permitem compreender melhor o quadro dos acontecimentos. E, ao chamar a atenção para as fraquezas dos EUA, alerta precisamente para o facto de poder estar a gerar-se uma mudança histórica na resistência dos povos do Médio Oriente que ponha em causa a dominação imperialista norte-americana.

Alvejando o Iraque e o Irão, os EUA ameaçam guerra generalizada

Enormes manifestações no Irão, no Iraque e em toda a região expressam o ódio anti-imperialista e sinalizam um novo dia, um renascimento dos movimentos de massas que expulsarão os EUA da região.

Um acto criminoso dos EUA desencadeou a tempestade.

Em 2 de Janeiro, o imperialismo dos EUA elevou a sua guerra agressiva contra o Irão para um novo nível. Um drone norte-americano realizou um ataque furtivo que assassinou o principal general iraniano Qassem Soleimani, chefe do Corpo da Guarda Revolucionária Iraniana – Quds.

Soleimani estava em visita oficial ao Iraque, numa missão como negociador pela paz na zona. Foi recebido por Abu Mahdi al-Muhandis, líder das Forças de Mobilização Popular do Iraque (FMP), que também foi assassinado no ataque. As FMP fazem parte oficialmente das forças de segurança iraquianas.

O Departamento de Defesa dos EUA admitiu ter realizado o ataque seguindo as ordens do presidente Donald Trump.

Nos dias após essa provocação de guerra, ocorreu o seguinte:

No Iraque, dezenas de milhares de pessoas uniram-se na marcha fúnebre dos dois líderes militares assassinados pelo Pentágono. O Parlamento iraquiano votou a expulsão dos 5.000 militares dos EUA que estão estacionados no Iraque logo que os parlamentares souberam do assassinato político cometido pelos EUA violando a soberania do Iraque.

O primeiro-ministro iraquiano Adil Abdul-Mahdi disse ao parlamento que o governo dos EUA sabia que o general Soleimani estava em viagem no Iraque como emissário oficial de paz e que iria encontrar-se com ele para estabelecer negociações com a Arábia Saudita a fim de diminuir a tensão na região. O Iraque actuaria como mediador. Abdul-Mahdi disse que Trump também pediu ao Iraque para desempenhar um papel mediador com o Irão.

No Irão, os líderes do governo prometeram que vão responder militarmente aos EUA. Centenas de milhares, se não milhões, de pessoas marcharam pelas ruas em luto por Soleimani e pelo seu homólogo iraquiano. O grito dominante era “Morte à América!” – significando os Estados Unidos.

Dos EUA, Trump enviou um tweet ameaçando destruir 52 alvos iranianos, incluindo sítios culturais. Tal ataque seria um crime de guerra. Entretanto, Washington indicou aos cidadãos dos EUA que deixassem o Iraque.

Embora os acontecimentos tenham exposto algumas das fraquezas do imperialismo norte-americano no Iraque e na região, eles tornaram mais provável uma guerra agressiva por parte dos EUA.

EUA humilhados no Iraque

A mais recente escalada de Trump segue-se a uma experiência humilhante em Bagdade, no último dia de 2019. Um desfile fúnebre desarmado de milhares de pessoas passou sem oposição por postos de guarda, barreiras e postos de controle no complexo da embaixada dos EUA mais altamente seguro do mundo.

As forças de segurança do governo iraquiano não fizeram nada para impedir que membros da milícia e seus líderes entrassem na Zona Verde, onde a embaixada dos EUA está localizada.

Esta acção ousada ocorreu após um funeral em massa de membros de unidades da Milícia Popular mortos num atentado cometido pelos EUA. Isto expôs a vulnerabilidade dos ocupantes norte-americanos, e enviou uma mensagem clara: nenhuma base dos EUA no Iraque é segura.

As próprias forças iraquianas em que os EUA confiam, na embaixada mais fortemente fortificada do mundo, abriram as portas à multidão. Claramente, os EUA não têm aliados. Até as forças iraquianas que colaboraram com a ocupação alinharam agora contra os EUA.

Desde então, a escalada dos EUA incluiu a chegada bem divulgada de tropas americanas da 82.ª Divisão Aerotransportada no Kuwait, tropas frequentemente usadas para evacuar cidadãos americanos. Milhares de outras tropas estão a caminho, antecipando uma guerra mais ampla.

O papel do imperialismo dos EUA é destrutivo em todo o mundo. Em nenhum lugar ele foi mais destrutivo nas últimas décadas do que nos países da região do oeste da Ásia ao norte da África, designado como Oriente Médio.

No momento em que os EUA desencadeiam uma crise, é importante avaliar a sua posição, a sua força e as suas alianças, e avaliar o desenvolvimento da movimentação dos povos de toda a região pela soberania.

Zona Verde: uma coutada dos EUA

A Zona Verde é uma bolsa de segurança criada pelos EUA, uma colónia independente que ocupa 10 quilómetros quadrados do centro de Bagdad, cercada por muros de betão e por arame farpado, fortificada com sacos de areia, holofotes e postos de controle.

A embaixada dos EUA, na Zona Verde, ocupa mais de 40 hectares de propriedades imobiliárias de primeira linha. É do tamanho da Cidade do Vaticano. Seis vezes maior que a sede das Nações Unidas em Nova Iorque, é a maior embaixada do mundo.

O facto de as forças de segurança iraquianas mais altamente treinadas, supostamente confiáveis para proteger os interesses dos EUA, não terem feito nenhum esforço para travar os manifestantes quando eles marcharam para a Zona Verde, fortemente fortificada, é um desenvolvimento impressionante que envia uma mensagem sobre a segurança de todas as bases dos EUA no Iraque.

A ocupação da Zona Verde não foi um evento isolado ou excepcional. Pelo contrário, foi a terceira vez nos últimos meses de 2019 que o poder dos EUA foi desafiado com sucesso de maneiras inteiramente novas e criativas — e numa região que tem sido brutalmente dominada, ocupada e intencionalmente empobrecida pelas forças dos EUA durante décadas.

A escala destas humilhações pode ser mais bem apreciada quando comparada com as grandiosas promessas de cinco presidentes consecutivos dos EUA e cerca de 30 anos de sanções, bombardeios e ocupações fracassadas dos EUA que torturaram esta região de vasta riqueza.

Forças populares em movimento

O governo iraquiano está enfraquecido e dividido por meses de protestos populares que assolaram Bagdade e o sul do Iraque desde o início de Outubro.

A repressão das manifestações — que reclamam serviços básicos, oportunidades de emprego e o fim da corrupção — resultaram em pelo menos 470 mortos e mais de 20.000 feridos. Os protestos contínuos resultaram na exigência de uma revisão completa do sistema político corrupto e sectário estabelecido sob a ocupação dos EUA.

Nas últimas semanas, uma série de ataques com rockets atingiu instalações militares no Iraque, onde o pessoal dos EUA está estacionado. A ocupação popular da Praça Tahrir, também conhecida como Praça da Libertação, estava em curso durante o ataque à embaixada dos EUA.

Estratégia dos EUA: manter a região dividida

O ódio popular explodiu depois de as as tropas norte-americanas terem bombardeado as Forças de Mobilização Popular, que são oficialmente parte das Forças de Segurança do Iraque. O ataque dos EUA em 29 de Dezembro matou 32 e feriu 55 pessoas que foram homenageadas como combatentes da linha da frente contra o grupo Estado Islâmico (EI).

Os EUA disseram que lançaram esta ofensiva em represália a um ataque de rockets ocorrido em 27 de Dezembro perto de Kirkuk, que matou um “contratado” dos EUA (na verdade, um mercenário). Mas o alvo escolhido pelos militares dos EUA para a represália situa-se a centenas de quilómetros do local onde o mercenário dos EUA morreu.

A área bombardeada foi a única passagem de fronteira controlada pelas forças iraquianas e sírias, não pelos EUA. Essa passagem tinha sido aberta com grande comemoração depois de estar nas mãos do EI durante cinco anos. Em Setembro passado, Israel bombardeou as forças sírias que tentavam abrir essa passagem de estradas crucial.

A abertura deste posto na fronteira Síria-Iraque significou que, pela primeira vez em 30 anos, o comércio, as viagens e as trocas entre Afeganistão, Irão, Iraque, Síria e Líbano puderam decorrer sem estar sob controlo dos EUA.

A estratégia dos EUA durante décadas concentrou-se na procura de manter toda esta região dividida, dependente e em guerra. Síria, Iraque e Irão eram postos uns contra os outros, pois a política dos EUA inflamava diferenças sectárias, étnicas e religiosas.

Todos esses países estão sujeitos a fortes sanções dos EUA, portanto, abrir a sua capacidade de negociar uns com os outros é um grande passo em frente para salvar vidas. Restabelecer novamente ligações nesta região destruída é um objectivo daqueles que se opõem aos esforços dos EUA para recolonizar a zona. Ao bombardear essa passagem de fronteira, os EUA confirmaram que a sua estratégia é dividir a região pela força.

Estratégia dos EUA contra Irão, Iraque, Síria e Afeganistão

Desde a revolução iraniana de 1979, os EUA tentam esmagar o Irão com sanções. Também apertou as sanções contra o Iraque em Agosto de 1990, seguidas, um ano depois, por uma campanha maciça de bombardeios, e mais sanções que levaram à morte de meio milhão de crianças iraquianas.

Em 2003, os EUA invadiram e ocuparam o Iraque, destruindo seu tecido social e cultural. Mais de um milhão de tropas norte-americanas passaram pelo Iraque — mas não conseguiram subjugar a resistência.

As sanções dos EUA contra a Síria começaram na mesma altura em que os EUA invadiram o Iraque em 2003. Tornaram-se muito mais severas em 2011, num esforço máximo para derrubar o governo sírio. Washington e os seus aliados armaram e forneceram dezenas de milhares de forças mercenárias estrangeiras e, em seguida, forneceram apoio indirecto aos terroristas do EI criados pela Arábia Saudita. O EI tornou-se o novo pretexto para os militares dos EUA bombardearem a Síria e enviarem tropas para o Iraque como “instrutores”.

No Afeganistão, 18 anos de ocupação pelos EUA trouxeram apenas ruínas e divisão sectária.

Quase todas as correntes políticas no Iraque, Síria e Afeganistão, mesmo aquelas que colaboraram com Washington, acabaram por odiar a duplicidade e a arrogância racista do domínio dos EUA.

A única resposta do Pentágono para a crescente resistência em todas as frentes é mais guerra e sanções ainda mais severas.

De acordo com o Washington Post de 4 de Janeiro, os EUA têm cerca de 6.000 soldados no Iraque, e uma brigada de 3.500 soldados aerotransportados está a caminho. Existem mais de 14.000 soldados dos EUA / NATO no Afeganistão. No sudoeste da Ásia, do Afeganistão ao Mediterrâneo, há um total de 70.000 militares dos EUA. Existem também dezenas de milhares de contratados e mercenários no Iraque e no Afeganistão.

O envio de milhares de tropas adicionais não mudará a incapacidade dos EUA de ocupar e controlar um país, mas aumentará tanto a destruição como a resistência.

Culpar o Irão pelos fracassos dos EUA

É política dos EUA culpar o Irão por todos os fracassos e todas as formas de resistência que se levantam na região. O Irão, embora severamente sancionado e cercado, é o único país que escapou à ocupação directa dos EUA e à destruição maciça.

A decisão do governo Trump de cancelar unilateralmente um acordo juridicamente vinculativo, assinado pelos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas e pela Alemanha, para pôr fim às sanções ao Irão, aumentou as tensões na região. Novas sanções dos EUA impostas ao Irão são um esforço para desestabilizar o país com hiperinflação e escassez de bens.

Irão, China e Rússia iniciam exercícios navais conjuntos

Mas o Irão enviou a sua própria mensagem quando as ameaças dos EUA aumentarm com a crise no Iraque. Foi uma mensagem de que o mundo inteiro tomou nota.

Um quinto do petróleo do mundo passa pelo Estreito de Ormuz, que se faz ligação ao Golfo de Omã. Em 27 de Dezembro, Irão, a China e a Rússia iniciaram quatro dias de exercícios navais conjuntos no Oceano Índico e no Golfo de Omã.

Este treino naval conjunto mostrou a determinação de oferecer alguma protecção a uma região que foi abertamente saqueada pelos piratas imperialistas modernos. Novos acordos comerciais e fundos para a reconstrução das economias alvo de sanções e devastadas pela guerra estão nos planos do Irão, da China e da Rússia. Já não estamos num mundo unipolar.

Armas americanas caras e de pouca utilidade

Em 14 de Setembro de 2019, os ataques à gigante de energia Aramco, na Arábia Saudita, na sua principal instalação de refinação de petróleo e de processamento de gás — em Abqaiq, perto do campo de petróleo de Khurais — reduziram temporariamente a metade a produção de petróleo da Arábia Saudita. Os rebeldes Houthis do Iémen reclamaram a responsabilidade pelo ataque. Mas Washington e a Arábia Saudita apontaram o dedo a Teerão — uma acusação que o Irão negou veementemente.

As compras sauditas de mais de 67 mil milhões de dólares em armas norte-americanas, incluindo os famosos mísseis Patriot, falharam em alertar ou impedir o ataque. A Arábia Saudita tem o terceiro maior gasto militar do mundo. A incapacidade de proteger as suas mais importantes instalações de petróleo disparou alarmes. Os mísseis Patriot dos EUA podem ser tigres de papel.

Armas de voo a baixa altitude e de baixo custo são uma nova ameaça para as defesas sauditas, projectadas para mísseis de alta altitude.

2020: uma nova década

A resistência inabalável e um ódio permanente ao imperialismo dos EUA são uma força material agora profundamente enraizada nos movimentos populares em toda a região. Estes movimentos estão a encontrar maneiras criativas e de baixa tecnologia de resistir ao todo-poderoso monólito americano. E também estão a desenvolver novas alianças que podem permitir a reconstrução dos seus países.

Sim, a máquina militar e o poder empresarial dos EUA continuam a ser ameaças maciças para muitos países e um enorme desperdício de recursos. O perigo de uma guerra em larga escala dos EUA contra o Irão e o Iraque — enquanto prosseguem as guerras na Síria, no Afeganistão e no Iémen — é real. E isso implica o risco de uma guerra global que coloca em perigo todos nós. Mas, ao mesmo tempo, os acontecimentos mostram que a dominação dos EUA enfrenta um desafio fundamental em 2020.

Todas as vozes e a maior unidade são necessárias para exigir a retirada dos EUA, o fim das guerras e o regresso a casa de todas as tropas dos EUA!
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(*) Artigo publicado em Workers World, 7 Janeiro 2020. Tradução Mudar de Vida


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