Sara Flounders (*)
Quinta-feira, 9 Janeiro, 2020
Quinta-feira, 9 Janeiro, 2020
Esta nova década inicia-se com ameaças
abertas de barbárie por parte dos EUA. Mas, ao mesmo tempo, os sinais que vêm
do Médio Oriente (e de outras partes do mundo) dão conta de uma ampla
resistência de milhões de pessoas, fartas de tiranias e de más condições de
vida. Resistência essa que não parece já episódica e de propósitos limitados,
mas que sugere o germinar de novas ondas de lutas de massas de maior alcance.
Não sendo, na maioria, expressamente anti-imperialistas e anticapitalistas, têm
contudo como alvo objectivo a dominação das grandes potências (nomeadamente os
EUA) e o descalabro a que o capitalismo conduziu o mundo. São por isso
potencialmente revolucionárias.
O texto que publicamos aborda o recente
conflito entre EUA e Irão, na sequência do assassinato do general Soleimani. Os
dados que fornece permitem compreender melhor o quadro dos acontecimentos. E,
ao chamar a atenção para as fraquezas dos EUA, alerta precisamente para o facto
de poder estar a gerar-se uma mudança histórica na resistência dos povos do
Médio Oriente que ponha em causa a dominação imperialista norte-americana.
Alvejando o Iraque e o Irão, os EUA ameaçam guerra generalizada
Enormes manifestações no Irão, no Iraque
e em toda a região expressam o ódio anti-imperialista e sinalizam um novo dia,
um renascimento dos movimentos de massas que expulsarão os EUA da região.
Um acto criminoso dos EUA desencadeou a tempestade.
Em 2 de Janeiro, o imperialismo dos EUA
elevou a sua guerra agressiva contra o Irão para um novo nível. Um drone
norte-americano realizou um ataque furtivo que assassinou o principal general
iraniano Qassem Soleimani, chefe do Corpo da Guarda Revolucionária Iraniana –
Quds.
Soleimani estava em visita oficial ao
Iraque, numa missão como negociador pela paz na zona. Foi recebido por Abu
Mahdi al-Muhandis, líder das Forças de Mobilização Popular do Iraque (FMP), que
também foi assassinado no ataque. As FMP fazem parte oficialmente das forças de
segurança iraquianas.
O Departamento de Defesa dos EUA admitiu
ter realizado o ataque seguindo as ordens do presidente Donald Trump.
Nos dias após essa provocação de guerra, ocorreu o seguinte:
No Iraque, dezenas de milhares de
pessoas uniram-se na marcha fúnebre dos dois líderes militares assassinados
pelo Pentágono. O Parlamento iraquiano votou a expulsão dos 5.000 militares dos
EUA que estão estacionados no Iraque logo que os parlamentares souberam do
assassinato político cometido pelos EUA violando a soberania do Iraque.
O primeiro-ministro iraquiano Adil
Abdul-Mahdi disse ao parlamento que o governo dos EUA sabia que o general
Soleimani estava em viagem no Iraque como emissário oficial de paz e que iria
encontrar-se com ele para estabelecer negociações com a Arábia Saudita a fim de
diminuir a tensão na região. O Iraque actuaria como mediador. Abdul-Mahdi disse
que Trump também pediu ao Iraque para desempenhar um papel mediador com o Irão.
No Irão, os líderes do governo
prometeram que vão responder militarmente aos EUA. Centenas de milhares, se não
milhões, de pessoas marcharam pelas ruas em luto por Soleimani e pelo seu
homólogo iraquiano. O grito dominante era “Morte à América!” – significando os
Estados Unidos.
Dos EUA, Trump enviou um tweet ameaçando
destruir 52 alvos iranianos, incluindo sítios culturais. Tal ataque seria um
crime de guerra. Entretanto, Washington indicou aos cidadãos dos EUA que
deixassem o Iraque.
Embora os acontecimentos tenham exposto
algumas das fraquezas do imperialismo norte-americano no Iraque e na região,
eles tornaram mais provável uma guerra agressiva por parte dos EUA.
EUA humilhados no Iraque
A mais recente escalada de Trump
segue-se a uma experiência humilhante em Bagdade, no último dia de 2019. Um
desfile fúnebre desarmado de milhares de pessoas passou sem oposição por postos
de guarda, barreiras e postos de controle no complexo da embaixada dos EUA mais
altamente seguro do mundo.
As forças de segurança do governo
iraquiano não fizeram nada para impedir que membros da milícia e seus líderes
entrassem na Zona Verde, onde a embaixada dos EUA está localizada.
Esta acção ousada ocorreu após um
funeral em massa de membros de unidades da Milícia Popular mortos num atentado
cometido pelos EUA. Isto expôs a vulnerabilidade dos ocupantes
norte-americanos, e enviou uma mensagem clara: nenhuma base dos EUA no Iraque é
segura.
As próprias forças iraquianas em que os
EUA confiam, na embaixada mais fortemente fortificada do mundo, abriram as
portas à multidão. Claramente, os EUA não têm aliados. Até as forças iraquianas
que colaboraram com a ocupação alinharam agora contra os EUA.
Desde então, a escalada dos EUA incluiu
a chegada bem divulgada de tropas americanas da 82.ª Divisão Aerotransportada
no Kuwait, tropas frequentemente usadas para evacuar cidadãos americanos.
Milhares de outras tropas estão a caminho, antecipando uma guerra mais ampla.
O papel do imperialismo dos EUA é
destrutivo em todo o mundo. Em nenhum lugar ele foi mais destrutivo nas últimas
décadas do que nos países da região do oeste da Ásia ao norte da África,
designado como Oriente Médio.
No momento em que os EUA desencadeiam
uma crise, é importante avaliar a sua posição, a sua força e as suas alianças,
e avaliar o desenvolvimento da movimentação dos povos de toda a região pela
soberania.
Zona Verde: uma coutada dos EUA
A Zona Verde é uma bolsa de segurança
criada pelos EUA, uma colónia independente que ocupa 10 quilómetros quadrados
do centro de Bagdad, cercada por muros de betão e por arame farpado,
fortificada com sacos de areia, holofotes e postos de controle.
A embaixada dos EUA, na Zona Verde,
ocupa mais de 40 hectares de propriedades imobiliárias de primeira linha. É do
tamanho da Cidade do Vaticano. Seis vezes maior que a sede das Nações Unidas em
Nova Iorque, é a maior embaixada do mundo.
O facto de as forças de segurança
iraquianas mais altamente treinadas, supostamente confiáveis para proteger os
interesses dos EUA, não terem feito nenhum esforço para travar os manifestantes
quando eles marcharam para a Zona Verde, fortemente fortificada, é um
desenvolvimento impressionante que envia uma mensagem sobre a segurança de
todas as bases dos EUA no Iraque.
A ocupação da Zona Verde não foi um
evento isolado ou excepcional. Pelo contrário, foi a terceira vez nos últimos
meses de 2019 que o poder dos EUA foi desafiado com sucesso de maneiras
inteiramente novas e criativas — e numa região que tem sido brutalmente dominada,
ocupada e intencionalmente empobrecida pelas forças dos EUA durante décadas.
A escala destas humilhações pode ser
mais bem apreciada quando comparada com as grandiosas promessas de cinco
presidentes consecutivos dos EUA e cerca de 30 anos de sanções, bombardeios e
ocupações fracassadas dos EUA que torturaram esta região de vasta riqueza.
Forças populares em movimento
O governo iraquiano está enfraquecido e
dividido por meses de protestos populares que assolaram Bagdade e o sul do
Iraque desde o início de Outubro.
A repressão das manifestações — que
reclamam serviços básicos, oportunidades de emprego e o fim da corrupção —
resultaram em pelo menos 470 mortos e mais de 20.000 feridos. Os protestos
contínuos resultaram na exigência de uma revisão completa do sistema político
corrupto e sectário estabelecido sob a ocupação dos EUA.
Nas últimas semanas, uma série de
ataques com rockets atingiu instalações militares no Iraque, onde o pessoal dos
EUA está estacionado. A ocupação popular da Praça Tahrir, também conhecida como
Praça da Libertação, estava em curso durante o ataque à embaixada dos EUA.
Estratégia dos EUA: manter a região dividida
O ódio popular explodiu depois de as as
tropas norte-americanas terem bombardeado as Forças de Mobilização Popular, que
são oficialmente parte das Forças de Segurança do Iraque. O ataque dos EUA em
29 de Dezembro matou 32 e feriu 55 pessoas que foram homenageadas como
combatentes da linha da frente contra o grupo Estado Islâmico (EI).
Os EUA disseram que lançaram esta
ofensiva em represália a um ataque de rockets ocorrido em 27 de Dezembro perto
de Kirkuk, que matou um “contratado” dos EUA (na verdade, um mercenário). Mas o
alvo escolhido pelos militares dos EUA para a represália situa-se a centenas de
quilómetros do local onde o mercenário dos EUA morreu.
A área bombardeada foi a única passagem
de fronteira controlada pelas forças iraquianas e sírias, não pelos EUA. Essa
passagem tinha sido aberta com grande comemoração depois de estar nas mãos do
EI durante cinco anos. Em Setembro passado, Israel bombardeou as forças sírias
que tentavam abrir essa passagem de estradas crucial.
A abertura deste posto na fronteira
Síria-Iraque significou que, pela primeira vez em 30 anos, o comércio, as
viagens e as trocas entre Afeganistão, Irão, Iraque, Síria e Líbano puderam
decorrer sem estar sob controlo dos EUA.
A estratégia dos EUA durante décadas
concentrou-se na procura de manter toda esta região dividida, dependente e em
guerra. Síria, Iraque e Irão eram postos uns contra os outros, pois a política
dos EUA inflamava diferenças sectárias, étnicas e religiosas.
Todos esses países estão sujeitos a
fortes sanções dos EUA, portanto, abrir a sua capacidade de negociar uns com os
outros é um grande passo em frente para salvar vidas. Restabelecer novamente
ligações nesta região destruída é um objectivo daqueles que se opõem aos
esforços dos EUA para recolonizar a zona. Ao bombardear essa passagem de
fronteira, os EUA confirmaram que a sua estratégia é dividir a região pela
força.
Estratégia dos EUA contra Irão, Iraque, Síria e Afeganistão
Desde a revolução iraniana de 1979, os
EUA tentam esmagar o Irão com sanções. Também apertou as sanções contra o
Iraque em Agosto de 1990, seguidas, um ano depois, por uma campanha maciça de
bombardeios, e mais sanções que levaram à morte de meio milhão de crianças iraquianas.
Em 2003, os EUA invadiram e ocuparam o
Iraque, destruindo seu tecido social e cultural. Mais de um milhão de tropas
norte-americanas passaram pelo Iraque — mas não conseguiram subjugar a
resistência.
As sanções dos EUA contra a Síria
começaram na mesma altura em que os EUA invadiram o Iraque em 2003. Tornaram-se
muito mais severas em 2011, num esforço máximo para derrubar o governo sírio.
Washington e os seus aliados armaram e forneceram dezenas de milhares de forças
mercenárias estrangeiras e, em seguida, forneceram apoio indirecto aos
terroristas do EI criados pela Arábia Saudita. O EI tornou-se o novo pretexto
para os militares dos EUA bombardearem a Síria e enviarem tropas para o Iraque
como “instrutores”.
No Afeganistão, 18 anos de ocupação pelos EUA trouxeram apenas ruínas e divisão sectária.
Quase todas as correntes políticas no
Iraque, Síria e Afeganistão, mesmo aquelas que colaboraram com Washington,
acabaram por odiar a duplicidade e a arrogância racista do domínio dos EUA.
A única resposta do Pentágono para a
crescente resistência em todas as frentes é mais guerra e sanções ainda mais
severas.
De acordo com o Washington Post de 4 de
Janeiro, os EUA têm cerca de 6.000 soldados no Iraque, e uma brigada de 3.500
soldados aerotransportados está a caminho. Existem mais de 14.000 soldados dos
EUA / NATO no Afeganistão. No sudoeste da Ásia, do Afeganistão ao Mediterrâneo,
há um total de 70.000 militares dos EUA. Existem também dezenas de milhares de
contratados e mercenários no Iraque e no Afeganistão.
O envio de milhares de tropas adicionais
não mudará a incapacidade dos EUA de ocupar e controlar um país, mas aumentará
tanto a destruição como a resistência.
Culpar o Irão pelos fracassos dos EUA
É política dos EUA culpar o Irão por
todos os fracassos e todas as formas de resistência que se levantam na região.
O Irão, embora severamente sancionado e cercado, é o único país que escapou à
ocupação directa dos EUA e à destruição maciça.
A decisão do governo Trump de cancelar
unilateralmente um acordo juridicamente vinculativo, assinado pelos cinco
membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas e pela Alemanha,
para pôr fim às sanções ao Irão, aumentou as tensões na região. Novas sanções
dos EUA impostas ao Irão são um esforço para desestabilizar o país com
hiperinflação e escassez de bens.
Irão, China e Rússia iniciam exercícios navais conjuntos
Mas o Irão enviou a sua própria mensagem
quando as ameaças dos EUA aumentarm com a crise no Iraque. Foi uma mensagem de
que o mundo inteiro tomou nota.
Um quinto do petróleo do mundo passa
pelo Estreito de Ormuz, que se faz ligação ao Golfo de Omã. Em 27 de Dezembro,
Irão, a China e a Rússia iniciaram quatro dias de exercícios navais conjuntos
no Oceano Índico e no Golfo de Omã.
Este treino naval conjunto mostrou a
determinação de oferecer alguma protecção a uma região que foi abertamente
saqueada pelos piratas imperialistas modernos. Novos acordos comerciais e
fundos para a reconstrução das economias alvo de sanções e devastadas pela
guerra estão nos planos do Irão, da China e da Rússia. Já não estamos num mundo
unipolar.
Armas americanas caras e de pouca utilidade
Em 14 de Setembro de 2019, os ataques à
gigante de energia Aramco, na Arábia Saudita, na sua principal instalação de
refinação de petróleo e de processamento de gás — em Abqaiq, perto do campo de
petróleo de Khurais — reduziram temporariamente a metade a produção de petróleo
da Arábia Saudita. Os rebeldes Houthis do Iémen reclamaram a responsabilidade
pelo ataque. Mas Washington e a Arábia Saudita apontaram o dedo a Teerão — uma
acusação que o Irão negou veementemente.
As compras sauditas de mais de 67 mil
milhões de dólares em armas norte-americanas, incluindo os famosos mísseis
Patriot, falharam em alertar ou impedir o ataque. A Arábia Saudita tem o
terceiro maior gasto militar do mundo. A incapacidade de proteger as suas mais
importantes instalações de petróleo disparou alarmes. Os mísseis Patriot dos
EUA podem ser tigres de papel.
Armas de voo a baixa altitude e de baixo
custo são uma nova ameaça para as defesas sauditas, projectadas para mísseis de
alta altitude.
2020: uma nova década
A resistência inabalável e um ódio
permanente ao imperialismo dos EUA são uma força material agora profundamente
enraizada nos movimentos populares em toda a região. Estes movimentos estão a
encontrar maneiras criativas e de baixa tecnologia de resistir ao todo-poderoso
monólito americano. E também estão a desenvolver novas alianças que podem
permitir a reconstrução dos seus países.
Sim, a máquina militar e o poder
empresarial dos EUA continuam a ser ameaças maciças para muitos países e um
enorme desperdício de recursos. O perigo de uma guerra em larga escala dos EUA
contra o Irão e o Iraque — enquanto prosseguem as guerras na Síria, no
Afeganistão e no Iémen — é real. E isso implica o risco de uma guerra global
que coloca em perigo todos nós. Mas, ao mesmo tempo, os acontecimentos mostram
que a dominação dos EUA enfrenta um desafio fundamental em 2020.
Todas as vozes e a maior unidade são
necessárias para exigir a retirada dos EUA, o fim das guerras e o regresso a
casa de todas as tropas dos EUA!
———
(*) Artigo publicado em Workers World, 7
Janeiro 2020. Tradução Mudar de Vida
Sem comentários:
Enviar um comentário
Por favor nâo use mensagens ofensivas.