"Enquanto não tivermos força para
dissolver o parlamento burguês, devemos actuar contra ele de fora e de dentro.
Enquanto um número considerável de trabalhadores — não só os proletários, mas
também semiproletários e pequenos camponeses — tenham fé nos instrumentos
democrático-burgueses de que se serve a burguesia para enganar os operários,
devemos denunciar esse engano precisamente da tribuna que as camadas atrasadas
de operários e, em particular, das massas trabalhadoras não proletárias,
consideram como a tribuna mais importante e mais autorizada."
Da Obra: A Doença Infantil do Comunismo,
O "Esquerdismo"
V. I. Lenine
Abril/Maio de 1920
Deve-se participar nos parlamentos
burgueses?
Os comunistas «de esquerda» alemães, com
o maior desprezo — e a maior leviandade — respondem negativamente a esta
pergunta. Os seus argumentos? Na citação transcrita mais atrás lemos:
«... rechaçar do modo mais categórico
todo o retorno aos métodos parlamentares de luta, que já caducaram histórica e
politicamente ...»
Está dito num tom ridiculamente
presunçoso e é uma evidente falsidade. «Retorno» ao parlamentarismo! Já existe,
por acaso, uma república soviética na Alemanha? Parece que não. Então, como se
pode falar de «retorno»? Não é isto uma frase vazia!
O parlamentarismo «caducou
historicamente». Isto é certo do ponto de vista da propaganda. Mas ninguém
ignora que daí à sua superação prática há uma enorme distância. Há muitas
décadas já se podia dizer, com toda a razão, que o capitalismo havia «caducado
historicamente»; mas isto não impede, tão pouco, que precisemos de sustentar
uma luta muito prolongada e tenaz no terreno do capitalismo. O parlamentarismo
«caducou historicamente» do ponto de vista histórico-universal, isto é, a época
do parlamentarismo burguês terminou, a época da ditadura do proletariado
começou. Isto é indiscutível. Na história universal, porém, o tempo é contado
por décadas. Do ponto de vista dela, dez ou vinte anos a mais ou a menos não
têm importância, são uma ninharia impossível de ser apreciada, mesmo
aproximadamente. Eis porque apoiar-se no critério da história universal numa
questão de política prática constitui o mais gritante erro teórico.
«Caducou politicamente» o
parlamentarismo? Isto já é outra questão. Se fosse verdade, a posição dos
«esquerdistas» seria firme. Mas isso precisa de ser provado com uma análise
muito séria, análise que os «esquerdistas» nem sequer sabem como abordar. Não
vale um tostão, como veremos, a análise contida nas Teses Sobre o
Parlamentarismo, publicadas no número 1 do Boletim do Bureau Provisório de
Amsterdão da Internacional Comunista (Bulletin of the Provisional Bureau in
Amsterdam of the Communist International, February 1920), e que expressa
claramente as tendências «esquerdistas» dos holandeses ou as tendências
holandesas dos «esquerdistas».
Em primeiro lugar, os «esquerdistas»
alemães, como se sabe, já consideravam, em Janeiro de 1919, que o
parlamentarismo havia «caducado politicamente» malgrado a opinião de dirigentes
políticos tão destacados como Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. É sabido que
os «esquerdistas» se equivocaram. Este facto basta para destruir pronta e
inteiramente a tese de que o parlamentarismo «caducou politicamente». Os
«esquerdistas» têm a obrigação de demonstrar porque é que o seu erro
indiscutível de então deixou de o ser hoje. Contudo, eles não apresentam, nem
podem apresentar, a menor sombra de provas. A atitude de um partido político
perante os seus erros é um dos critérios mais importantes e seguros para se
julgar a seriedade desse partido e o cumprimento efectivo dos seus deveres para
com a sua classe e para com as massas trabalhadoras. Reconhecer abertamente os
erros, pôr a nu as suas causas, analisar a situação que os originou e discutir
atentamente os meios de corrigi-los: isso é o que caracteriza um partido sério;
nisso consiste o cumprimento dos seus deveres; isso é educar e instruir a
classe e depois as massas. Ao deixar de cumprir esse dever e de estudar com
toda a atenção, zelo e prudência necessários o seu erro evidente, os
«esquerdistas» da Alemanha (e da Holanda) mostram precisamente que não são o
partido da classe, mas um grupo de intelectuais e de um reduzido número de
operários que imitam os piores traços dos intelectuais.
Em segundo lugar, no mesmo folheto do
grupo «de esquerda» de Francfort, do qual fizemos transcrições detalhadas mais
atrás, lemos:
«... os milhões de operários que ainda
seguem a política do centro (do partido católico do "centro") são
contra-revolucionários. Os proletários do campo formam as legiões dos exércitos
contra-revolucionários.» (Pág. 3 do folheto citado).
Como se vê, a afirmação é feita com
ênfase e exagero excessivos. Mas o facto fundamental aqui exposto é
indiscutível, e o seu reconhecimento pelos «esquerdistas» atesta o seu erro com
particular evidência. Com efeito, como se pode dizer que o «parlamentarismo
caducou politicamente», se «milhões» e «legiões» de proletários ainda são, não
só partidários do parlamentarismo em geral, como, inclusive, francamente
«contra-revolucionários»!? É evidente que o parlamentarismo na Alemanha ainda
não caducou politicamente. É evidente que os «esquerdistas» da Alemanha tomaram
o seu desejo, as suas concepções político-ideológicas, por uma realidade
objectiva. Este é o mais perigoso dos erros para os revolucionários. Na Rússia,
onde o jugo sumamente selvagem e feroz do czarismo engendrou, durante um
período prolongado em extremo e sob formas particularmente variadas,
revolucionários de todos os matizes, revolucionários de uma abnegação,
entusiasmo, heroísmo e força de vontade assombrosos, pude observar muito de
perto, estudar com particular atenção e conhecer em detalhe este erro dos
revolucionários, razão por que o vemos com especial clareza nos outros. Como é
natural, para os comunistas da Alemanha o parlamentarismo «caducou
politicamente»; mas trata-se precisamente de não julgar que o caduco para nós
tenha caducado para a classe, para a massa. Mais uma vez vemos que os
«esquerdistas» não sabem raciocinar, não sabem conduzir-se como o partido da
classe, como o partido das massas. O vosso dever consiste em não descer ao
nível das massas, ao nível dos sectores atrasados da classe. Isto é
indiscutível. Tendes a obrigação de dizer-lhes a amarga verdade; de dizer-lhes
que os seus preconceitos democrático-burgueses e parlamentares não passam
disso; preconceitos. Ao mesmo tempo, porém, deveis observar com serenidade o
estado real de consciência e de preparação precisamente de toda a classe (e não
apenas da sua vanguarda comunista), de toda a massa trabalhadora (e não apenas
dos seus elementos avançados).
Mesmo que não fossem «milhões» e
«legiões», mas uma simples minoria bastante considerável de operários
industriais que seguissem os padres e de operários agrícolas que seguissem os
latifundiários e camponeses ricos (Grossbauern), poderíamos assegurar sem vacilar
que o parlamentarismo na Alemanha ainda não caducou politicamente, que a
participação nas eleições parlamentares e na luta através da tribuna
parlamentar é obrigatória para o partido do proletariado, precisamente para
educar os sectores atrasados da sua classe, precisamente para despertar e
educar a massa aldeã inculta, oprimida e ignorante. Enquanto não tiverdes força
para dissolver o parlamento burguês, ou qualquer outra instituição
reaccionária, estais obrigados a actuar no seio dessas instituições,
precisamente porque ainda há nelas operários embrutecidos pelo clero e pela
vida nos rincões mais distantes do campo. De contrário, correis o risco de vos
converterdes em simples charlatães.
Em terceiro lugar, os comunistas «de
esquerda» cobrem-nos de elogios, a nós bolcheviques. Às vezes dá-nos vontade de
dizer-lhes: louvai-nos menos, compreendei melhor a táctica dos bolcheviques,
familiarizai-vos mais com ela! Participámos nas eleições ao parlamento burguês
da Rússia, à Assembleia Constituinte, em Setembro-Novembro de 1917. Era
acertada ou não a nossa táctica? Se não era, é preciso dizê-lo claramente e
demonstrá-lo: isso é indispensável para que o comunismo internacional elabore a
táctica justa. Se o era, é preciso tirar disso as conclusões que se impõem.
Naturalmente, não se trata em absoluto de equiparar as condições da Rússia às
da Europa ocidental. Mas, quando se trata em particular do significado que tem
a ideia de que «o parlamentarismo caducou politicamente», é obrigatório levar
em conta, com exactidão, a nossa experiência, pois sem tomar em consideração
uma experiência concreta, tais ideias convertem-se com excessiva facilidade em
frases vazias. Nós, bolcheviques russos, não tínhamos, porventura, em
Setembro-Novembro, de 1917, mais direito do que todos os comunistas do Ocidente
de considerar que o parlamentarismo havia sido superado politicamente na
Rússia? Tínhamos, sem dúvida, pois a questão não se baseia em se os parlamentos
burgueses existem há muito ou há pouco tempo, mas sim em que medida as grandes
massas trabalhadoras estão preparadas (ideológica, política e praticamente)
para adoptar o regime soviético e dissolver (ou permitir- a dissolução) do
parlamento democrático-burguês. Que a classe operária das cidades, os soldados
e os camponeses da Rússia estavam, em Setembro-Novembro de 1917, em virtude de
uma série de condições particulares, excepcionalmente preparados para adoptar o
regime soviético, é um facto histórico absolutamente indiscutível e plenamente
demonstrado. Não obstante, os bolcheviques não boicotaram a Assembleia
Constituinte mas até participaram nas eleições, tanto antes como depois da
conquista do poder político pelo proletariado. Que essas eleições deram
resultados políticos de extraordinário valor (e de grande utilidade para o
proletariado) é um facto que acredito haver demonstrado no artigo mencionado
páginas atrás, no qual analiso detalhadamente os resultados das eleições para a
Assembleia Constituinte da Rússia.
A conclusão que se tira desse facto é
absolutamente indiscutível: está provado que, mesmo algumas semanas antes da
vitória da República Soviética, mesmo depois dessa vitória, a participação num
parlamento democrático-burguês, longe de prejudicar o proletariado
revolucionário, permite-lhe demonstrar mais facilmente às massas atrasadas
porque semelhantes parlamentos devem ser dissolvidos, facilita o êxito da sua
dissolução, facilita a «supressão política» do parlamentarismo burguês. Não
levar em consideração essa experiência e pretender, ao mesmo tempo, pertencer à
Internacional Comunista, que deve elaborar internacionalmente a sua táctica
(não uma táctica estreita ou de carácter estritamente nacional, mas exactamente
uma táctica internacional), significa incorrer no mais profundo dos erros e
afastar-se precisamente, de facto, do internacionalismo, ainda que seja
proclamado em palavras.
Consideremos agora os argumentos dos
«esquerdistas holandeses» em favor da não participação nos parlamentos. Eis
aqui a tese 4, a mais importante das teses «holandesas» citadas mais acima,
traduzida do inglês:
«Quando o sistema capitalista de
produção é destruído e a sociedade atravessa um período revolucionário, a acção
parlamentar perde gradualmente o seu valor em comparação com a acção das
próprias massas. Quando, nestas condições, o parlamento se converte em centro e
órgão da contra-revolução e, por outro lado, a classe operária cria os
instrumentos do seu poder, sob a forma de sovietes, pode tornar-se inclusive
necessário renunciar a toda a participação na acção parlamentar.»
A primeira frase é, evidentemente,
falsa, pois a acção das massas — uma grande greve por exemplo — é sempre mais
importante que a acção parlamentar, e não apenas durante a revolução ou numa
situação revolucionária. Esse argumento, de inegável inconsistência e falso
histórica e politicamente, só serve para mostrar com particular evidência que
os seus autores subestimam completamente a experiência ... de toda a Europa (da
França nas vésperas das revoluções de 1848 e 1870, da Alemanha entre 1878 e
1890, etc.) e da Rússia (ver acima) sobre a importância da combinação da luta
legal com a ilegal. Essa questão tem a maior importância, tanto no geral como
no particular, porque em todos os países civilizados e avançados se aproxima a
grandes passos a época em que tal combinação será — e já o é em parte — cada
vez mais obrigatória para o partido do proletariado revolucionário, em
consequência do amadurecimento e da aproximação da guerra civil do proletariado
contra a burguesia, em consequência das ferozes perseguições feitas aos
comunistas pelos governos republicanos e, de modo geral, burgueses, que violam
por todos os meios a legalidade (como exemplo disso basta citar os Estados
Unidos), etc. Essa questão essencial não é, absolutamente nada, compreendida
pelos holandeses e pelos «esquerdistas» em geral.
A segunda frase é, em primeiro lugar,
falsa historicamente. Nós, bolcheviques, actuámos nos parlamentos mais
contra-revolucionários e a experiência demonstrou que semelhante participação
foi não só útil como necessária para o partido do proletariado revolucionário,
precisamente depois da primeira revolução burguesa da Rússia (1905), a fim de
preparar a segunda revolução burguesa (Fevereiro de 1917) e, logo depois, a
revolução socialista (Outubro de 1917). Em segundo lugar, essa frase é de um
ilogismo surpreendente. Da transformação do parlamento em órgão e «centro»
(diga-se, de passagem, que nunca foi nem pôde ser realmente o «centro») da
contra-revolução e da criação pelos operários dos instrumentos do seu poder,
sob a forma de sovietes, conclui-se que os trabalhadores devem preparar-se
ideológica, política e tecnicamente para a luta dos sovietes contra o
parlamento, para a dissolução do parlamento pelos sovietes. Disso, porém, não
se deduz de modo algum que semelhante dissolução seja dificultada, ou não seja
facilitada, pela presença de uma oposição soviética dentro de um parlamento
contra-revolucionário. Nunca dissemos, durante a nossa luta vitoriosa contra
Denikine e Koltchak, que a existência de uma posição proletária, soviética, na
zona ocupada por eles tenha sido indiferente para os nossos triunfos. Sabemos
muito bem que a dissolução da Constituinte, por nós efectuada a 5 de Janeiro de
1918, longe de ser dificultada, foi facilitada pela presença na Constituinte
contra-revolucionária que dissolvíamos de uma oposição soviética inconsequente,
a dos esserristas de esquerda. Os autores da tese enredam-se por completo e
esqueceram a experiência de uma série de revoluções, se não de todas,
experiência que confirma a singular utilidade que representa, em tempos de
revolução, combinar a acção de massas fora do parlamento reaccionário com uma
oposição simpatizante da revolução (ou melhor ainda, que a apoia abertamente)
dentro desse parlamento. Os holandeses e os «esquerdistas» em geral raciocinam,
neste caso, como doutrinadores da revolução que nunca participaram numa
revolução verdadeira, ou que nunca meditaram sobre a história das revoluções,
ou que ingenuamente tomam «a negação» subjectiva de certa instituição
reaccionária pela sua efectiva destruição mediante o conjunto de forças de uma
série de factos objectivos. O meio mais seguro de desacreditar uma nova ideia
política (e não só política) e prejudicá-la consiste em levá-la ao absurdo, a
pretexto de defendê-la, pois toda a verdade, se a tornamos «exorbitante» (como
dizia Dietzgen, pai), se a exageramos e a estendemos além dos limites em que
ela é realmente!icável, pode ser levada ao absurdo e, nessas condições, ela
própria se converte, infalivelmente, num absurdo. Eis o prejuízo que os
esquerdistas da Holanda e da Alemanha causam à nova verdade da superioridade do
Poder soviético sobre os parlamentos democrático-burgueses. Naturalmente,
estaria errado quem continuasse a sustentar, de modo geral, a velha afirmação
de que abster-se de participar nos parlamentos burgueses é inadmissível em
todas as circunstâncias. Não posso tentar formular aqui as condições em que é
útil o boicote, já que o objectivo deste folheto é muito mais modesto: analisar
a experiência russa em relação a algumas questões actuais da táctica comunista
internacional. A experiência russa dá-nos uma aplicação feliz e acertada (1905)
e outra errónea (1906) do boicote por parte dos bolcheviques(1). Analisando o
primeiro caso, concluímos: os bolcheviques conseguiram impedir a convocação do
parlamento reaccionário, num momento em que a acção revolucionária
extraparlamentar das massas (em particular as greves) crescia com rapidez
excepcional, em que não havia um só sector do proletariado e do campesinato que
pudesse apoiar de algum modo o poder reaccionário, em que a influência do
proletariado revolucionário sobre grandes massas atrasadas estava assegurada
pela luta grevista e pelo movimento camponês. É totalmente evidente que esta
experiência é inaplicável às actuais condições europeias. E é também evidente
—em virtude dos argumentos acima expostos— que a defesa, mesmo condicional, da
renúncia à participação nos parlamentos, feita pelos holandeses e pelos
«esquerdistas», é radicalmente falsa e nociva à causa do proletariado
revolucionário.
Na Europa ocidental e nos Estados
Unidos, o parlamento tornou-se extremamente odioso para a vanguarda
revolucionária da classe operária. É um facto indiscutível. E é facilmente
compreensível, pois é difícil imaginar maior vileza, abjecção e felonia, que a
conduta da imensa maioria dos deputados socialistas e sociais-democratas no
parlamento, durante e depois da guerra. Contudo, seria não só insensato, como
até mesmo criminoso, deixar-se levar por esses sentimentos ao decidir a questão
de como se deve lutar contra o mal universalmente reconhecido. Pode-se dizer
que, em muitos países da Europa ocidental, o estado de espírito revolucionário
ainda é uma «novidade» ou uma «raridade» esperada durante muito tempo, em vão e
impacientemente, razão por que, provavelmente, predomina com tanta facilidade.
É claro que sem um estado de espírito revolucionário das massas e sem condições
que favoreçam o desenvolvimento desse sentimento, a táctica revolucionária não
se transformará em acção; na Rússia, porém, uma experiência demasiado
prolongada, dura e sangrenta convenceu-nos de que é impossível basear-se
exclusivamente no estado de espírito revolucionário para criar uma táctica
revolucionária. A táctica deve ser elaborada levando-se em conta serenamente,
com estrita objectividade, todas as forças de classe do Estado em questão ( e
dos Estados que o rodeiam, assim como de todos os Estados à escala mundial), e
também a experiência dos movimentos revolucionários. Manifestar o
«revolucionarismo» só através de invectivas contra o oportunismo parlamentar,
condenando apenas a participação nos parlamentos, é muito fácil; mas,
precisamente porque é demasiado fácil, não é a solução para um problema
difícil, dificílimo. Nos parlamentos europeus é muito mais difícil que na
Rússia criar uma fracção parlamentar realmente revolucionária. Sem dúvida.
Isto, porém, não é senão uma expressão parcial da verdade geral de que, na
situação concreta de 1917, extraordinariamente original do ponto de vista
histórico, à Rússia foi fácil começar a revolução socialista, mas continuá-la e
levá-la ao fim ser-lhe-á mais difícil do que aos países europeus. Já em começos
de 1918 tive de assinalar essa circunstância, e a experiência de dois anos
decorridos desde então veio confirmar inteiramente a justeza dessa
consideração. Condições específicas como:
a possibilidade de conjugar a revolução
soviética com o fim, graças a ela, da guerra imperialista, que havia extenuado
indiscritivelmente os operários e camponeses;
a possibilidade de tirar proveito,
durante certo tempo, da luta de morte em que estavam empenhados os dois grupos
mais poderosos de tubarões imperialistas do mundo, grupos que não podiam
coligar-se contra o inimigo soviético;
a possibilidade de suportar uma guerra
civil relativamente prolongada, em parte pela gigantesca extensão do país e
pela deficiência das suas comunicações;
a existência entre os camponeses de um
movimento revolucionário democrático-burguês tão profundo que o partido do
proletariado tornou suas as reivindicações revolucionárias do partido dos
camponeses (do partido esserrista, profundamente hostil, na sua maioria, ao
bolchevismo) e as realizou imediatamente graças à conquista do poder político
pelo proletariado(2);
Tais condições específicas não existem
hoje na Europa ocidental, e a repetição dessas condições ou de outras análogas
não é nada fácil. Por isso, entre outras razões, é mais difícil para a Europa
ocidental do que para nós começar a revolução socialista. Tratar de «evitar»
essa dificuldade «saltando» por cima do árduo problema de utilizar os
parlamentos reaccionários para fins revolucionários, é pura infantilidade.
Quereis criar uma sociedade nova e temeis a dificuldade de criar uma boa
fracção parlamentar de comunistas convictos, abnegados e heroicos num
parlamento reaccionário! Não é isso, por acaso, uma infantilidade? Se Karl
Liebknecht na Alemanha e Z. Höglund na Suécia souberam, mesmo sem o apoio das
massas na base, dar um exemplo da utilização realmente revolucionária dos
parlamentos reaccionários, como é possível que um partido revolucionário de
massas, que cresce rapidamente, não possa, no meio das desilusões e da ira das
massas do após-guerra, forjar uma fracção comunista nos piores parlamentos?!
Precisamente porque as massas atrasadas de operários e — mais ainda — de
pequenos camponeses estão muito mais imbuídas, na Europa ocidental do que na
Rússia, de preconceitos democrático-burgueses e parlamentaristas, precisamente
por isso, só no seio de instituições como os parlamentos burgueses os comunistas
podem (e devem) travar uma luta prolongada e tenaz, sem retroceder perante
nenhuma dificuldade, para denunciar, desvanecer e superar tais preconceitos.
Os «esquerdistas» alemães queixam-se dos
maus «chefes» do seu partido e caem no desespero, chegando ao ridículo de
«negar» os «chefes». Mas, em circunstâncias que obrigam com frequência a
mantê-los na clandestinidade, a formação de «chefes» bons, seguros, provados e
prestigiosos torna-se particularmente difícil e é impossível vencer com êxito
semelhantes dificuldades sem a combinação do trabalho legal com o ilegal, sem
fazer passar os «chefes», entre outras provas, também pela do parlamento. A
crítica — a mais violenta, implacável e intransigente — deve dirigir-se não
contra o parlamentarismo ou a acção parlamentar, mas sim contra os chefes que
não sabem — e mais ainda contra os que não querem — utilizar as eleições e a
tribuna parlamentares de modo revolucionário, comunista. Só esta crítica —
ligada, naturalmente, à expulsão dos chefes incapazes e à sua substituição por
outros mais capazes— constituirá um trabalho proveitoso e fecundo, que educará
simultaneamente os «chefes», para que sejam dignos da classe operária e das
massas trabalhadoras, e as massas, para que aprendam a orientar-se como é
necessário na situação política e a compreender as tarefas, com frequência
extremamente complexas e complicadas, que se originam de semelhante
situação(3).
Notas de rodapé:
(1) Com respeito à I Duma de Estado,
convocada em Abril de 11906, os bolcheviques também seguiram a táctica do
boicote. Lenine reconheceu mais tarde que em 1906 não se devia ter boicotado a
Duma de Estado, porque a situação era diferente da de 1905 e a revolução estava
em descenso. «O boicote bolchevique do 'parlamento' em 1905 — escrevia Lenine —
dotou o proletariado revolucionário de uma experiência política
extraordinariamente valiosa, mostrando-se que, mediante a combinação das formas
de luta legais e clandestinas, parlamentares e extra-parlamentares, às vezes é
útil e até obrigatório saber renunciar às formas parlamentares. Mas a
transposição cega, por simples imitação, sem um sentido crítico, desta
experiência a outras condições e a outra situação é o maior dos erros. Um erro,
ainda que pequeno e facilmente corrigível, foi o boicote da 'Duma' de 1906
pelos bolcheviques». Mais adiante Lenine indica que teria sido «um erro
gravíssimo e dificilmente reparável» o boicote à Duma em 1907, em 1908 e anos
posteriores proposto pelos «boicotistas» e «otzovistas» e repelido pelo Partido
bolchevique. (retornar ao texto)
(2) No II Congresso dos Sovietes de Toda
a Rússia, a 26 de Outubro (8 de Novembro) de 1917 foi aprovado o decreto da
terra, que liquidou a propriedade latifundiária na Rússia e entregou a terra
aos camponeses. No decreto foi incluído o Mandato Camponês Sobre a Terra, que
se baseava em 242 mandatos camponeses locais e acolhia a palavra de ordem
esserrista do usufruto igualitário da terra segundo o número de braços.
Explicando a razão pela qual os bolcheviques, que se tinham oposto antes a esta
palavra de ordem, consideravam possível aceitá-la, Lenine dizia: «Como governo
democrático, não podemos fugir à decisão das massas populares, ainda que estejamos
em desacordo com ela. No cadinho da vida, na sua aplicação prática, pondo-a em
execução no plano local, verão os próprios camponeses onde está a verdade».
(retornar ao texto)
(3) Foram muito poucas as possibilidades
que tive para conhecer o comunismo «de esquerda» da Itália, é indiscutível que
o camarada Bordiga e a sua fracção de «comunistas boicotadores» (comunistas
abstencionistas) estão errados ao defender a não participação no parlamento.
Mas há um ponto no qual, a meu ver, têm razão, pelo que posso concluir
atendo-me a dois números do seu jornal, II Soviet (n.°s 3 e 4, de 18 de Janeiro
e de 1 de Fevereiro de 1920), a quatro números da excelente revista do camarada
Serrati, Comunismo (n.os 1 a 4, de 1 de Outubro a 30 de Novembro de 1919) e a
números avulsos de jornais burgueses que pude ler. O camarada Bordiga e a sua
fracção têm razão precisamente quando atacam Turati e os seus partidários, que,
estando num partido que reconhece o poder dos sovietes e a ditadura do
proletariado, continuam a ser membros do parlamento e prosseguem na sua velha e
nociva política oportunista é natural que, ao tolerar isso, o camarada Serrati
e todo o Partido Socialista Italiano incorram num erro tão cheio de grandes
prejuízos e perigos como o havido na Hungria, onde os senhores Turati locais
sabotaram internamente o Partido e o poder dos sovietes. Essa atitude errónea,
inconsequente ou sem carácter em relação aos parlamentares oportunistas, gera,
por um lado, o comunismo «de esquerda» e, por outro, justifica até certo ponto
a sua existência, é evidente que o camarada Serrati não tem razão ao acusar de
«inconsequência» o deputado Turati (Comunismo, n.° 3), pois inconsequente é,
precisamente, o Partido Socialista Italiano, que tolera no seu seio
oportunistas parlamentares como Turati e companhia. (retornar ao texto)
Fonte: Os Comunistas e as Eleições,
Edições Maria da Fonte, 1975. Colecção «LUTA OPERÁRIA» Dirigida por: Manuel
Queirós. Editor: Maria Isabel Pinto Ventura Tradutor: José Olivares Capa: Maria
José Sacadura.
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