sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Angela Maestro - "O GOVERNO 'PROGRESSISTA' COLOCOU PROPRIEDADE PRIVADA SACROSANTA ANTES DA VIDA DAS PESSOAS"


Entrevista a CRISTÓBAL GARCIA VERA / CANARIAS-WEEKLY REDAÇÃO. ORG.-

– Ilhas Canárias-semanal: Em meio à incerteza gerada pela pandemia, a possibilidade de obter uma vacina efectiva tornou-se uma das maiores esperanças, mas também se observa que a corrida para obter essa vacina está sendo o base de uma luta geopolítica entre as grandes potências. Esta batalha está determinando as informações que recebemos?

– Ângela Maestro: Totalmente. As informações que nos vêm estão absolutamente envolvidas e distorcidas pelos interesses das empresas farmacêuticas multinacionais, por isso é impossível para nós saber qual é a verdade sobre o que está acontecendo com as vacinas.

E, como uma afirmação tão contundente, deve ser apoiada com dados, lembrarei do caso da Influenza A,em 2009, quando todos os cortes começaram após o início da crise capitalista. Na época, o governo espanhol de Rodríguez Zapatero comprou milhões de doses da vacina e milhões de doses de tamiflú. Posteriormente, a OMS reconheceu que seu Comité de Especialistas havia sido subornado pela indústria farmacêutica. Ou seja, que no estava demonstrada a eficácia das vacinas e dos medicamentos que supostamente diminuíam os dias de ingresso e a gravidade da enfermidade, ademais de que se haviam ocultado os efeitos secundários que tinham. Na Espanha, todos esses medicamentos que foram comprados, no valor de 400 milhões de euros, acabaram caindo nos armazéns pelo Ministério da Saúde.

Agora, a União Europeia decidiu dedicar nada mais e nada menos que 1,2 bilião de euros para garantir que a Astra-Zeneca,que é de capital anglo-americano, continue a pesquisa com esses fundos públicos. Os fundos de emergência europeus são entregues a multinacionais que declaram mais lucros do que os bancos. E neste caso, além disso, à empresa que está desenvolvendo uma vacina cuja pesquisa já teve que parar, como você sabe, por causa de um problema sério em uma das pessoas para as quais havia sido fornecida. Provavelmente saberemos o que aconteceu, mas tudo indica que a Astra-Zeneca comprou as instituições da UE.

– Ilhas Canárias-semanal: O que você acha que devemos reivindicar, a este respeito, dos governos europeus, e particularmente da Espanha?

– Angela Maestro: O que o Coordenador Anti-Saúde de Madri (CAS-Madrid) já está reivindicando. Em primeiro lugar, uma demanda deve ser levantada para a forma de um comité independente de especialistas para testar vacinas, que por sua vez é controlada para impedir que a indústria farmacêutica a compre.

Além disso, as vacinas desenvolvidas em laboratórios públicos devem ser necessárias para serem adquiridas, que é a garantia de comprar um medicamento cuja produção é o mais imune possível ao suborno por multinacionais farmacêuticas. E agora já existem países, como Cuba ou Rússia, com laboratórios públicos desenvolvendo vacinas muito avançadas. Também uma das três vacinas chinesas foi desenvolvida em um laboratório 100% público. Isso é fundamental, porque a distorção que o dinheiro introduz é enorme. Estamos falando de milhões de euros que podem ser usados para comprar políticos, a mídia ou especialistas, e aqui estamos diante de uma questão da qual a vida de milhões de pessoas também depende.

-Ilhas Canárias-semanal: O que você relata sobre como essas multinacionais subornam no mais alto nível gera uma desconfiança da população que é um terreno fértil para os movimentos de "antivaccinas".

– Ângela Maestro: Isso mesmo, mas sou especialista em saúde pública e posso garantir que qualquer colega da minha profissão que você consultar vai dizer que o maior avanço da história humana em saúde e doenças tem sido as vacinas.

A propósito, o primeiro país do mundo a vacinar a população maciçamente foi a União Soviética,porque embora as primeiras vacinas começassem a ser experimentadas a partir do final do século XVIII, até então elas só estavam disponíveis para as elites. O primeiro país a vacinar toda a sua população é a URSS, com um decreto assinado por Lênin em 1918.

Outra coisa é que o Capital distorce efectivamente tudo e causa, por exemplo, que existem vacinas que não são eficazes e que estão sendo colocadas, como a da gripe sazonal, de eficácia duvidosa em relação aos benefícios que tem e seus efeitos colaterais. Mas as vacinas têm sido críticas, e muitas têm mostrado uma tremenda eficácia, como varíola, tuberculose, tosse ou difteria, que foram capazes de erradicar essas doenças.

Em suma, a importância das vacinas não pode ser negada, embora também deva ser acrescentado que a saúde pública não se resume à vacinação ou à disponibilização de determinados medicamentos. Tem a ver com uma abordagem holística relacionada a todas as condições de vida da população. Isso pode ser entendido perfeitamente por um exemplo. A mortalidade por tuberculose, conhecida como doença da miséria,começou a diminuir na Grã-Bretanha muito antes das vacinas ou antibióticos estarem disponíveis, quando o movimento trabalhista se tornou forte o suficiente para alcançar conquistas que, entre outras coisas, permitiam que os trabalhadores tivessem uma melhor moradia. Em outras palavras, essa luta do proletariado é o elemento mais importante que tem tido para melhorar a saúde.

-Ilhas Canárias-semanal: Suponho que também devemos culpar os interesses daqueles que você tem falado que todas as informações da mídia se concentram na vacina de Oxford- AstraZeneca, ou a vacina americana em Moderna, e não dizer nada, ou depreciar, as vacinas que estão sendo desenvolvidas na Rússia, Cuba ou China.

– Ângela Maestro: É claro que, embora a realidade seja que tanto a vacina russa quanto a vacina cubana são feitas em laboratórios públicos de muita tradição e de grande nível científico. No caso da Rússia, foi desenvolvido em um dos laboratórios mais comuns durante a União Soviética na produção de vacinas contra poliomielite ou tuberculose. Quanto a Cuba, o que não se conta é que, apesar de ser um pequeno país bloqueado, é também uma potência em biotecnologia, em tudo relacionado ao desenvolvimento de vacinas. E não deve ser estranho para um país socialista investir principalmente em medicamentos que podem salvar a vida de milhões de pessoas.

Na China, como mencionei, uma das três vacinas mais desenvolvidas é desenvolvida em laboratório público e as outras duas em laboratórios privados. Todos estão muito avançados, na fase três e até agora nem estes, nem os cubanos, nem os russos causaram efeitos colaterais.

– Ilhas Canárias-semanal: Falando já da pandemia em geral, nines, e desde que o assunto da China veio a ser questionado, como pode ser explicado que naquele país, onde o novo coronavírus apareceu, conseguiu eliminar o vírus, enquanto na Europa e na América a pandemia é cada vez mais difundida?

– Ângela Maestro: A primeira coisa que as pessoas devem saber é que a desculpa que nos foi dada sobre a forma como a pandemia "nos pegou desprevenida" é simplesmente inadmissível. Como especialista em saúde pública, posso dizer que a história humana está cheia de epidemias e que é bem conhecido como agir nesses casos.

O mais importante é a detecção precoce de casos e o isolamento de positivos e nada disso foi feito no estado espanhol. As medidas higiénicas e preventivas a serem tomadas não foram tomadas e as pessoas continuaram a chegar aos nossos aeroportos sem qualquer controle. Sem ir mais longe, da Itália,o país europeu mais afectado e onde muitas pessoas já estavam morrendo. É claro que, em outros países, incluindo a China,foi estabelecido esse controle básico dos viajantes.

Uma coisa que se sabe, mas que mal se fala,é que nos aeroportos os seguranças estavam tomando medidas higiénicas para não serem infectados pelo coronavírus desde janeiro. No entanto, até pouco antes do confinamento a população continuava a ser informada de que nada estava acontecendo aqui.

Então há coisas muito básicas, como o tema das máscaras. Fernando Simón estava nos dizendo que máscaras não deveriam ser usadas, que não eram importantes, quando na China toda a população as carregava desde o início da pandemia.

Para compreender o desastre da gestão pandemica, deve-se também levar em conta que a privatização da saúde que sofremos implica uma filosofia da individualização dos doentes e da doença, que nega a abordagem da saúde integral por meio de aspectos preventivos e colectivos relacionados à saúde ocupacional, boa alimentação, qualidade da moradia, etc. É por isso que a privatização avançada da Saúde nos deixou sem ferramentas de intervenção colectiva, que são precisamente o que é preciso para enfrentar uma pandemia.

Agora, por exemplo, ainda não temos os rastreadores, que deveriam ter chegado há seis meses, assim como teria sido necessário ter lugares onde seria possível isolar as pessoas infectadas.

Ilhas Canárias-semanal: Na China, o confinamento das regiões afectadas foi total, a ponto de as pessoas serem levadas para casa com alimentos e outros produtos básicos para seu sustento. Na Espanha, por outro lado, mesmo durante o confinamento, os trabalhadores das grandes empresas tiveram que continuar suas actividades de trabalho o tempo todo.

– Ângela Maestro: Claro, esta é a questão de fundo. Os interesses dos grandes capitais foram impostos, e não é coincidência que tenhamos taxas mais elevadas de contágio imortalidade nos bairros da classe trabalhadora. Os trabalhadores são forçados a usar os medidores ou ónibus lotados para ir ao intervalo e aqueles superlotados em locais de trabalho onde as condições sanitárias não são respeitadas, como estamos vendo em empresas de carne ou colheitas de frutas. Por razões puramente económicas, como não afectar o turismo, não foram tomadas medidas essenciais para cortar as cadeias de contágio, causando um desfecho catastrófico para a saúde.

– Ilhas Canárias-semanal: Priorizar interesses empresariais dessa forma em detrimento da saúde das pessoas, mesmo durante um Estado de Alarme que permite uma acção excepcional, implica uma importante responsabilidade política.

Ângela Maestro: Absolutamente. Mas há também uma questão específica relacionada a isso, que passou muito despercebida e nos permite falar sobre responsabilidades criminais do Governo. O primeiro decreto do Estado de Março incluiu um artigo, número 13, que deu ao Ministro da Saúde o poder de intervir em todos os tipos de empresas privadas para colocá-las na fabricação de todos os tipos de recursos necessários para a saúde da população. Vale lembrar que então os mortos se acumularam,que as pessoas estavam deitadas no chão dos serviços de emergência, os profissionais de saúde tiveram que trabalhar com sacos de lixo, começaram a negar assistência aos maiores de 70 anos e os idosos morreram abandonados nas residências.

Bem, todos nós sabemos que os medicamentos, materiais básicos de protecção e respiradores estavam claramente carentes, mas o governo, apesar de ter a cobertura legal para fazê-lo com o seu próprio decreto, não interveio em nenhuma empresa para colocá-los para fabricá-los como fez, por exemplo, um governo tão certo quanto o do sr. Boris Johnson na Grã-Bretanha, que colocou as empresas de metal para fabricar respiradores. A mesma coisa foi feita na Alemanha. E aqui não. Aqui, apesar de ter o apoio jurídico, o Executivo "progressista" do PSOE e da Unidas Podemos sempre manteve a propriedade privada sacrossanta à frente da vida das pessoas. E isso, insisto, implica responsabilidade criminal por omissão.

– Ilhas Canárias-semanal: Além do efeito dessas decisões políticas que você indicou, a imposição dos interesses do empregador ou as consequências da privatização da Saúde ao responder à pandemia, há aqueles que dizem que não há recursos económicos suficientes para lidar com ela.

Ângela Maestro: Isso é absolutamente falso. O que realmente tem sido, e ainda é, é um contínuo e indecente escorrer de dinheiro público para empresas privadas. Neste momento, estamos testemunhando o enésimo escândalo dessa transferência do sector público para o sector privado, com a fusão do Bankiacom o CaixaBank, que resultará na perda de 20 biliões de euros, que na verdade é de 60.000 se tudo isso foi injectado no Bankia desde o início do seu processo de privatização.

Para se ter uma ideia do que esse espólio implica, basta saber que com 10 mil desses milhões, 100 mil médicos e 100 mil outros profissionais de enfermagem poderiam ser contratados por um ano. E US$ 10 biliões também equivalem a metade dos gastos militares anuais do Estado espanhol.

Os recursos são sobrando, o que você precisa saber é o que eles estão fazendo.

– Ilhas Canárias-semanal: Qual é a resposta da maioria dos sindicatos a tudo isso que você denuncia, porque durante o confinamento da população, por exemplo, eles não fizeram nada para afirmar que os trabalhadores não foram enviados para arriscar suas vidas sem as medidas básicas de segurança?

Ângela Maestro: As Comissões dos Trabalhadores e a UGT não são e não são esperadas, porque a dura realidade é que eles fazem parte do aparato estatal. Não estou dizendo, é claro, que não há pessoas honestas afiliadas a essas duas organizações. Isso não é contestado, mas por muitos anos, desde a Mesma Transição, as Comissões dos Trabalhadores e a UGT são pilares fundamentais para a manutenção da estrutura de exploração  do capitalismo. A verdade é que são organizações dirigidas por pedreiros subornados pelo capital e com esses sindicatos somos vendidos.

– Ilhas Canárias semanalmente: E o que podemos fazer?

Ângela Maestro: A única opção para os trabalhadores é organizar e lutar. Temos que nos organizar afirmando nossa independência e sempre sabendo quem são nossos inimigos de classe e o poder político que a representa. E, claro, neste momento que nos tocou para viver o que não podemos permitir é que o medo nos atenua e nos faz auto-confinar. Mesmo que esteja tomando todas as medidas de segurança, não temos mais nada para organizar para o que virá, ir para as ruas, e estar preparados para responder a uma explosão social que é com toda a probabilidade de acontecer.

 

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