quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Roubar um banco e fundar um banco

Roubar um banco e fundar um banco
Urbano de Campos — 11 Agosto 2020

Economia País Política

Quando o negócio prosperava

A longa questão do Banco Espírito Santo, que se arrasta vai para seis anos e se prolonga pelo seu sucedâneo Novo Banco, veio dar nova actualidade à afirmação de que roubar um banco não é nada comparado com fundar um banco (1). Aquilo que parecia ser uma falência entre outras (mesmo considerando o peso decisivo do BES na teia financeira portuguesa), acabou por ser uma verdadeira radiografia do mundo do capital — dos altos negócios, das grandes famílias do dinheiro, das ligações espúrias que mantém cá e lá fora, da corrupção que alimenta, dos governantes que compra, da rédea curta com que dirige o Estado.

A acusação a José Sócrates parecia ser, a princípio, apenas um caso de venalidade de um indivíduo ambicioso que aproveita a oportunidade que o poder lhe dá para subir na vida. Também terá sido isso. Mas o prolongar da investigação do caso Sócrates veio ligar fios de uma meada mais longa.

Sócrates, tal como o ex-ministro Manuel Pinho e o ex-gestor-de-sucesso Zeinal Bava (e certamente muitos outros) foram tentáculos de um polvo cuja cabeça, afinal, era o BES e a família Espírito Santo e, dentro desta, o capo Ricardo Salgado. Todos os meios foram postos a uso: subornos de milhões, ordenados extra pagos a ministros, multiplicação de empresas para escamotear movimentos de dinheiros, contas em paraísos fiscais.

Nada que o mundo do capital não tenha de há muito inventado e de que não faça pleno uso. Mas, à escala de um país como o nosso, a burla ganhou proporções de cataclismo: houve quem calculasse as fraudes do BES em perto de 6% do PIB português (quase 12 mil milhões de euros sobre 212 mil milhões). Cinco a seis vezes mais que a média do volume da corrupção na UE! (2)

O golpe, porém, não parou por aqui. As sumidades que decidiram criar o Novo Banco para acolher a “parte boa” do BES fizeram-no com o cuidado de não estragar o negócio sobre o que ainda era rentável. Sabe-se como o Estado ficou de cobrir generosamente, com um chamado fundo de resolução, as perdas que o NB pudesse (remotamente, dizia-se) vir a ter.

Na realidade, foi criado um mecanismo que convida os donos do NB a fazerem todos os negócios de favor que entenderem porque as perdas serão cobertas pelo Estado. Já lá vão, desta maneira, mais cerca de 3 mil milhões do erário público. Ricardo Salgado deve rir-se a bom rir por ver como a sua ciência continua a ter seguidores, mesmo com ele fora de jogo. Para que serve afinal o Estado senão para apoiar os homens de negócios, os empreendedores, a iniciativa privada, os que “correm riscos”? Sobretudo quando os riscos se consumam, obviamente!

Tudo fruto da cabeça retorcida de Ricardo Salgado e da ambição desmedida de uma família? Já se viu que não, pelo descaminho que foi dado ao NB. Mas há mais. Tem de se reconhecer um certo pioneirismo no exemplo do BPN.

Neste caso, a “família” era outra: proliferou à sombra de Cavaco e do cavaquismo. Lembremos: dois ex-ministros do impoluto homem de Boliqueime montaram o esquema — Oliveira e Costa (ministro das Finanças) e Dias Loureiro (ministro da Administração Interna). O resultado das inúmeras fraudes cometidas ao longo de uma dezena de anos, neste caso, cifrou-se em perto de 7 mil milhões de euros, pagos pelo Estado.

Juntem-se mais uns casos “menores” — BPP, Banif, BIC… — para completar o retrato. Não, não se trata de maçãs podres num cesto cheio de virtudes. Trata-se da própria natureza dos negócios. E não se trata apenas dos vícios da “finança”, porque todo o grande capital e boa parte do restante, de toda a espécie, participou do regabofe enquanto ele pôde durar.

E é por isto que não se podem levar a sério as enérgicas reclamações de “mais fiscalização”, as impetuosas recriminações dirigidas aos “reguladores” e à sua “falta de vigilância”. Por uma razão: esses reguladores fazem parte do enredo, cumprem a sua missão por … omissão. De outro modo, seriam acusados de estragar negócios quando eles vão de vento em popa.

O BE e o PCP ao insistirem nesta tecla da “regulação” e ao deixarem de fora a denúncia de todo o sistema circulatório que alimenta negócios, fraudes e corrupção (em muitos casos impossíveis de separar) acabam por isentar o mundo do capital, em si mesmo, desta colossal usurpação de riqueza — seja a que é despendida para pagar os custos das falências quando o negócio se afunda, seja a que vai para os bolsos privados quando o negócio progride.

É fácil apontar a corrupção, a fraude e a má gestão como causas da falência BES. Agora. Mas quem se atreveria a colocar as mesmas causas na base do êxito do BES? É aqui que a denúncia de Mac the knife ganha pleno sentido — os Espírito Santo, os Oliveiras e Costa, os Dias Loureiro, os Rendeiro e os mentores que os protegem preferem, compreensivelmente, fundar bancos.

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“O que é roubar um banco quando comparado com fundar um banco?”, frase de Macheath (Mac the knife), personagem da Ópera de Três Vinténs, de Bertold Brecht.
Susana Peralta, economista, Público 17 Julho 2020
 
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