A semelhança com a realidade portuguesa não é mera coincidência, mas o resultado das mesmas politicas reacionárias pró-imperialistas impostas pela UE/BCE/FMI com o acordo dos vários governos capitalistas de ambos os países. A Chispa!
por Ángeles Maestro [*]
– O que se pode esperar do novo governo
espanhol e como actuar em consequência
Após o recente
espectáculo do debate da posse, na qual as três extrema direitas capitaneadas
pela VOX acenaram com o espantalho mais rançoso do franquismo, a reacção
esperada de boa parte do público foi a de suspiro de alívio diante do risco de
ser governada por tais energúmenos.
Provavelmente essa será a melhor prenda
que a VOX fez ao novo governo: uma espécie de 23F preventivo. Um calafrio
carregado de recordações sinistras que tinha a virtude – para os novos
coligados – de paralisar qualquer pensamento crítico.
Uma vez apagados os focos e calados os
gritos, a realidade obcecada torna a impor-se na vida quotidiana dos milhões de
pessoas que nunca saíram da crise.
Os dados mais recentes do Indicador
Europeu de Pobreza e Exclusão Social (2019) mostram que a miséria extrema se
estende no Estado espanhol, que é a maior nos últimos três anos e que afecta 12
milhões de pessoas, a quarta parte da população [1] . Além disso, mais da
metade da população não chega ao fim do mês, não compra regularmente carne ou
peixe ou não pode ligar a calefacção. Esta situação não é exclusiva das pessoas
desempregadas, mas abrange aqueles que trabalham em condições de precariedade
(que são a imensa maioria) ou recebem pensões míseras (nove milhões de
pessoas).
Se a isto acrescentarmos a situação das
listas de espera na saúde pública, que levam milhares de pessoas a uma morte
perfeitamente evitável, a degradação permanente do ensino, a exclusão de filhas
e filhos da classe operária do ensino superior ou a clamorosa insuficiência dos
serviços sociais, teremos um panorama que se pode qualificar de emergência
social, em sentido estrito.
O recrudescimento da luta de classes
pode ser apreciado em toda a sua dimensão quando se relacionam estes dados:
A criação de riqueza pela classe
operária cresceu de forma importante: 200 mil milhões de euros entre 2014 e
2019 [2] .
Os lucros empresariais, segundo dados do
Banco de Espanha para 2018, revelam um aumento de 60% [3] e que isto vem
acontecendo de forma constante nos últimos seis anos.
Neste mesmo período os salários
aumentaram nominalmente uns míseros 1,5%, que em termos reais implicou uma
perda da capacidade aquisitiva de 133 euros por ano [4] .
E esta situação de emergência social, de
sobre-exploração escandalosa e de aumento desmesurado das desigualdades
sociais, como o governo pretende coibi-la? Não há qualquer proposta minimamente
séria; alguns panos quentes e muito pequenos.
Suas palavras não deixam dúvidas. O
pacto PSOE—Podemos está assente estritamente sobre os limites impostos pela UE
sobre redução do défice e da dívida, tal como assinalou Pedro Sánchez após o
abraço que abriu as portas ao governo de coligação. As ameaças da Comissão
Europeia continuam a ressoar com força e a alertar sobre os reiterados
incumprimentos em matéria de redução do défice e da dívida e sobre a
necessidade de adoptar "nova medidas compensatórias" para assegurar a
sustentabilidade das pensões [5] .
No dia 1 de Janeiro de 2020 entraram em
vigor os artigos 11 e 13 da Lei 2/2012 de Estabilidade Orçamental [6] que
obrigam todas as administrações públicas a tornar efectiva a redução da dívida
para 60% do PIB – no caso do Estado espanhol atinge 500 mil milhões de euros –
e a reduzir o desequilíbrio orçamental em mais de 25 mil milhões de euros.
O artigo 11.2 estabelece taxativamente:
"Nenhuma Administração Púlica poderá incorrer em défice estrutural" e
entende como administrações públicas o Estado, as Comunidades Autónomas, as
municipalidades e a Segurança Social.
A Lei, que desenvolve tanto o Tratado de
Estabilidade da Zona Euro (2013) como a reforma do artigo 135 de Constituição,
proposta pelo governo Zapatero e aprovada em Agosto de 2011 pelo PSOE, PP e UN,
obriga a tornar efectiva a prioridade absoluta ao pagamento dos vencimentos de
capital mais juros. A cada ano dedica-se para tal efeito quase a metade dos
orçamentos gerais do Estado, mais do triplo do gasto de toda a saúde pública. E
este escandaloso montante é pago aos grandes bancos, em virtude de uma dívida
contraída mediante a cessão maciça de dinheiro público precisamente a esses
mesmos bancos que, como se recorda, recusaram-se a devolvê-lo, sem que o
governo actual ou os anteriores tenham movido um dedo para impedi-lo.
Como tem alertado a Red Roja [7] desde
que foram aprovadas estas normas, este quadro legislativo anula a soberania
efectiva de qualquer governo estatal, autonómico ou municipal que não se atreva
a enfrentá-lo. E não são palavras. A Lei 2/2012 estabelece graves e
progressivas sanções pelos incumprimentos nas reduções de défice e dívida. O
artigo 26.1, "Medidas de cumprimento forçoso" [8] , estabelece que em
caso de incumprimentos reiterados da parte de governos autonómicos será
aplicada ao infractor o famoso artigo 155 da Constituição. Às corporações
locais rebeldes será aplicado artigo 61 da Lei de Regime Local que prevê a
dissolução dos seus órgãos de governo... "por grave incumprimento das suas
obrigações constitucionais", ou seja, do artigo 135 da Constituição.
Alguém ouviu falar de tudo isto nos
programas eleitorais ou no debate da posse? Aqueles que falam dos famosos 100
dias de graça do novo governo por acaso perguntam como se compatibilizarão os
aumentos prometidos da despesa social com estas medidas férreas que foram
propostas e aprovadas pelo PSOE e que estão em vigor desde 1 de Janeiro?
Aqueles que nas bancadas do Podemos e da Izquierda Unida, ou na porta do
Congresso, gritavam em lágrimas: "Si, se puede", a que é que se
referiam? Sim, se pode, mas o que?
Aqueles que ganharam pastas ministeriais
ou altos cargos estão perfeitamente conscientes de que seu "relato" é
mero ilusionismo e, portanto, a negação em essência de qualquer
"transparência". Quando os enviados da famosa Troika (UE, BCE e FMI),
os "homens de negro", encarregados de controlar as contas de todas as
administrações públicas exibirem seu poder – ameaças, chantagens ou subornos –
e mostrem o que vale a suposta "soberania popular" será mudada
rapidamente a ilusão do "Sim, se pode" pelo "Não se podia fazer
outra coisa".
É indispensável não esquecer que os
ventos da recessão galopam e que sempre, desde os Pactos de Moncloa, as crises
são o argumento reiterado para retrocessos sem fim em direitos e liberdades,
que sistematicamente não se recuperam.
E essa é a grande vigarice, a do Syriza
na Grécia ou a que aqui se prepara.
Mas se já sabemos o que nos espera, o
que sim se pode e é urgente é preparar as lutas operárias e populares para
enfrentar os mandatos da Troika e impor um objectivo tão humano e tão de bom
senso como o de que as necessidades vitais das pessoas são – essas sim –
prioridade absoluta, frente ao pagamento à grande banca, outra vez, do que já
nos roubaram.
Esta é a nossa tarefa. Aqueles que
ocupam cargos no governo e vão comprovar a margem estreitíssima que lhes
concedem os poderes reais têm a possibilidade de abandonar miragens e ocupar o
seu lugar na dura batalha que se vislumbra. O que não se pode tolerar é que, no
altar da governabilidade, utilizem o pequeno poder que alcançaram, que não lhes
serve para enfrentar os poderes reais, mas que podem utilizar para tentar
debilitar, confundir e dividir o movimento popular. E essas manobras já
emergiram no movimento de pensionistas, quando os novos altos cargos ainda não
tiveram tempo de aquecer a poltrona, com o objectivo de abortar o apoio em
todos os territórios do Estado à Greve Geral convocada para 30 de Janeiro no
País Vasco, em defesa das pensões públicas.
Estas artimanhas repetem-se a cada
governo "progressista" desde a Transição [do franquismo]. O bom de
haver assistido a tantas "ilusões" é que sabemos o enredo do filme e
não vamos aguardar impassíveis que os grandes poderes cumpram seus objectivos
em duplicado: porque suas medidas contra a classe operária se fazem efectivas e
porque destroçam as organizações populares.
18/Janeiro/2020
[1] www.eapn.es/estadodepobreza/
[2] datosmacro.expansion.com/pib/espana
[3] www.rtve.es/...
[4] www.lavanguardia.com/...
[5]
elpais.com/economia/2019/11/19/actualidad/1574199971_155779.html
[6} www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-2012-5730&tn=1&p=20150613
[7] Um relatório pormenorizado sobre
este quadro legislativo e em especial sobre a Lei Orgânica 2/2012 pode ser
consultado em redroja.net/...
[8] Ibid.
www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-2012-5730&tn=1&p=20150613
[*] Médica, dirigente da Red Roja.
O original encontra-se em
diario-octubre.com/2020/01/18/angeles-maestro-si-se-puede-que/
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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