sábado, 5 de maio de 2018

Sobre a Questão do Livre-Câmbio - Karl Marx

Sobre a Questão do Livre-Câmbio

Karl Marx


Discurso pronunciado na Associação Democrática de Bruxelas. Na reunião pública de 7 de janeiro de 1848

Senhores,


A abolição das leis sobre os cereais na Inglaterra é o maior triunfo que o livre-câmbio alcançou no século XIX. Em todos os países onde os fabricantes falam de livre-câmbio, eles têm principalmente em vista o livre-câmbio dos cereais e das matérias-primas em geral. Sujeitar a direitos protetores os cereais estrangeiros é infame, é especular sobre a fome das populações.


Pão a preços baixos, salários altos, cheap food, high wages, eis o objetivo com o qual os free-traders, na Inglaterra, despenderam milhões; e seu entusiasmo já se estendeu aos seus irmãos do continente. Em geral, se se deseja o livre-câmbio, é para aliviar a condição da classe laboriosa.


Mas, coisa espantosa! O povo, ao qual se quer a toda força proporcionar pão a preços baixos, é muito ingrato. O pão a preços baixos é tão desacreditado na Inglaterra como os governos frouxos o são na França. O povo vê nos homens devotados, num Bowring, num Bright e outros, seus maiores inimigos e os hipócritas mais descarados.


Toda gente sabe que a luta entre os liberais e os democratas é, na Inglaterra, a luta entre free-traders e os cartistas.


Vejamos agora como os free-traders ingleses provaram ao povo os bons sentimentos que os faziam agir.

Eis o que diziam aos operários das fábricas:


O direito cobrado sobre os cereais é um imposto sobre o salário, e este imposto vós o pagais aos senhores territoriais, a estes aristocratas da Idade Média; se vossa situação é de miséria, é por causa dos preços elevados dos gêneros de primeira necessidade.


Os operários perguntavam por sua vez aos fabricantes:

Como se explica que nestes trinta anos, nos quais a nossa indústria teve o seu maior desenvolvimento, nossos salários tenham baixados numa proporção bem maior do que aquela em que se verificou a alta dos preços dos cereais?


O imposto que pagamos aos proprietários territoriais, como pretendeis, representa para o operário apenas três pence (seis soldos) por semana. E entretanto o salário do tecelão manual desceu de 28 shillings por semana a 5 shillings, de 35 francos a 7,25 francos, entre 1815 e 1843; e o salário do tecelão, na oficina automática, foi reduzido de 20 shillings por semana a 8 shillings, de 25 francos a 10 francos, entre 1825 e 1843.


E durante todo esse tempo o imposto que em parte pagamos ao proprietário territorial nunca foi além de três pence. Além disso, em 1834, quando o pão estava muito em conta e o comércio ia muito bem, o que é que dizíeis? Se estais em má situação, é porque tendes muitos filhos, é porque vosso casamento é mais fecundo do que a nossa indústria!


Eis as palavras que nos dirigíeis então; e íeis elaborar as novas leis dos pobres e construir as work-houses, estas bastilhas dos proletários.


E a isso replicavam os fabricantes:


Tendes razão, senhores operários; não é somente o preço do trigo, mas também a concorrência entre os braços que se oferecem que determina o salário.


Pensai bem, entretanto, numa coisa: o nosso solo é constituído apenas de rochedos e de bancos de areia. Imaginais, por acaso, que se poderá produzir trigo num vaso de flores? Assim, se, em vez de prodigalizarmos nosso capital e nosso trabalho num solo completamente estéril, abandonássemos a agricultura para nos dedicar inteiramente à indústria, toda a Europa abandonaria as manufaturas, e a Inglaterra formaria uma só cidade manufatureira, que teria como campo o resto da Europa.


Ao falar deste modo aos seus próprios operários, o fabricante é interpelado pelo pequeno comerciante, que lhe diz:


Se abolirmos as leis sobre os cereais arruinaremos, é verdade, a agricultura, mas não forçaremos por isso os outros países a se abastecerem nas nossas fábricas e a abandonarem as suas.


Que resultará disso? Perderei os fregueses que tenho agora no campo, e o comércio interno perderá seus mercados.


O fabricante, voltando as costas para o operário, responde ao merceeiro:


Quanto a isto, deixai por nossa conta. Uma vez abolido o imposto sobre o trigo, teremos por preços mais baixos trigo do estrangeiro. Em seguida baixaremos os salários, que se, elevarão ao mesmo tempo nos outros países, de onde recebemos os cereais.


Assim, além das vantagens que já temos, teremos ainda a de um salário menor, e, com todas estas vantagens, poderemos muito bem forçar o continente a se abastecer em nosso país.

Entretanto, eis que o rendeiro e o operário agrícola entram na discussão.

E, quanto a nós, qual será a nossa situação? perguntam eles.


Poderíamos aceitar uma sentença de morte contra a agricultura que nos faz viver? Deveríamos consentir em que nos tirem o solo de sob os pés?


Como única resposta, a Anti-corn-law League contentou-se em conferir prêmios aos três melhores trabalhos publicados sobre a influência salutar da abolição das leis dos cereais sobre a indústria inglesa.


Estes prêmios foram conquistados pelos srs. Hope, Morse e Gregg, e seus livros foram divulgados no campo aos milhares de exemplares.


Um dos laureados esforça-se por provar que não é nem o rendeiro nem o assalariado agrícola que perderão com a importação livre dos cereais estrangeiros, mas somente o proprietário territorial.


O rendeiro inglês, exclama ele, não deve temer a abolição das leis sobre os cereais, porque nenhum país poderia, produzir trigo a preços tão baixos e de tão boa qualidade como a Inglaterra.


Assim, mesmo no caso de cair o preço do trigo, isto não vos poderia prejudicar, porque esta baixa atingiria unicamente a renda, que diminuiria, e de nenhum modo o lucro industrial e o salário, que permaneceriam os mesmos.


O segundo laureado, sr. Morse, sustenta, ao contrário, que o preço do trigo subirá em seguida à abolição das leis sobre os cereais. E se dá a um trabalho infinito para demonstrar que os direitos de proteção jamais puderam assegurar ao trigo um preço remunerador.


Em apoio de sua asserção, cita o fato de que todas as vezes que se importou trigo estrangeiro, o preço do trigo subiu consideravelmente na Inglaterra; e quando se importava pouco, ele descia extremamente. O laureado se esquece de que a importação não era a causa do preço elevado, mas que o preço elevado era a causa da importação.


E, em completa oposição ao seu co-laureado, afirma que toda alta nos preços dos cereais redunda em benefício do rendeiro e do operário, e não em benefício do proprietário.


O terceiro laureado, sr. Gregg, que é um grande fabricante e cujo livro se dirige à classe dos grandes rendeiros, não podia argumentar com tais ninharias. Sua linguagem é mais científica.


Convém que as leis sobre os cereais não façam subir a renda senão fazendo subir o preço do trigo e que elas não façam subir o preço do trigo senão impondo ao capital a obrigação de se aplicar a terras de qualidade inferior, sendo óbvia a explicação de tal coisa.


À medida que a população aumenta, e não podendo o trigo estrangeiro entrar no país, é forçoso recorrer-se a terras menos férteis, cuja cultura exige mais despesas, e cujo produto é, em consequência, mais caro.


Sendo o trigo de venda forçada, o preço será regulado necessariamente pelo preço dos produtos das terras mais onerosas. A diferença existente entre estes preços e o custo de produção das melhores terras constitui a renda.


Assim, se, em seguida à abolição das leis sobre os cereais, o preço do trigo e, em consequência, a renda caem, é porque as terras pouco produtivas deixarão de ser cultivadas. Logo, a redução da renda acarretará infalivelmente a ruína de uma parte dos rendeiros.


Estas observações eram necessárias para fazer compreender a linguagem do sr. Gregg.


Os pequenos rendeiros, diz ele, que não conseguirem manter-se na agricultura terão um recurso na indústria. Quanto aos grandes rendeiros, eles devem lucrar com isso, pois ou os proprietários serão forçados a vender-lhes por preços baixos suas terras ou os contratos de arrendamento que farão com eles serão de prazos muito prolongados. E isso lhes permitirá empregar grandes capitais na terra, utilizar máquinas numa escala maior, e assim fazer economia no que diz respeito ao trabalho manual que, aliás, se tornará mais barato com a baixa geral dos salários, consequência imediata das leis sobre os cereais.


O doutor Bowring deu a todos estes argumentos uma consagração religiosa, ao exclamar, numa reunião pública:


Jesus Cristo é o free-trade; o free-trade é Jesus Cristo.
Compreende-se que toda esta hipocrisia não era adequada a fazer com que os operários fossem tentados pelo pão a preços baixos.

Como, aliás, poderiam os operários compreender a filantropia subitânea dos fabricantes, desta gente que ainda estava ocupada no combate ao projeto de lei das dez horas, com o qual se queria reduzir o dia de trabalho dos operários das fábricas de doze para dez horas?


Para vos dar uma ideia da filantropia dos, fabricantes, lembrar-vos-ei, senhores, os regulamentos adotados em todas as fábricas.


Cada fabricante tem para seu uso particular um verdadeiro código com multas estipuladas para todas as faltas voluntárias ou involuntárias. Por exemplo, o operário pagará tanto, se tiver a infelicidade de se sentar numa cadeira, de cochichar, conversar, ou rir, se chegar alguns minutos atrasado, se acontecer partir-se uma peça da máquina, se não entregar os objetos na quantidade desejada, etc., etc. As multas são sempre mais elevadas do que os danos verdadeiramente ocasionados pelo operário. E para que o operário possa mais facilmente incorrer nas penalidades, adianta-se o relógio da fábrica, fornecem-se matérias-primas de má qualidade para que se façam com elas boas peças. O contramestre que não se mostrar capaz de multiplicar os casos de contravenção é destituído de suas funções.


Como vedes, senhores, esta legislação interna é feita para produzir contravenções, e procura-se fazer com que aumente o número de contravenções para que aumente o dinheiro arrecadado. Assim, o fabricante emprega todos os meios para reduzir o salário nominal e para explorar até os acidentes pelos os quais o operário não pode ser responsabilizado.


Estes fabricantes são os mesmos filantropos que quiseram fazer com que os operários acreditassem que eram capazes de fazer despesas enormes, unicamente para melhorar a sua sorte.


Assim, de um lado, eles reduzem da maneira mais mesquinha o salário do operário através dos regulamentos de fábrica, e, de outro, lhe impõem os maiores sacrifícios para fazê-lo subir por meio da Anti-corn-law League.


Eles constroem, com grandes despesas, palácios onde a League estabelecia, de certo modo, sua sede oficial; põem em movimento um exército de missionários que se dirigem para todos os pontos da Inglaterra, a fim de pregarem a religião do livre-câmbio; mandam imprimir e distribuir gratuitamente milhares de brochuras para esclarecerem o operário acerca de seus próprios interesses; despendem somas enormes para tornar a imprensa favorável à sua causa; organizam uma vasta administração para dirigir os movimentos livre-cambistas; e empregam todos os recursos de sua eloquência nos comícios públicos. Foi num desses comícios que um operário exclamou:


"Se os proprietários territoriais vendessem nossos ossos, vós, fabricantes, serieis os primeiros a comprá-los, para atirá-los num moinho a vapor e transformá-los em farinha".
Os operários ingleses compreenderam muito bem a significação da luta entre os proprietários territoriais e os capitalistas industriais. Eles sabem muito bem que se queria rebaixar o preço do pão para rebaixar o salário e que o lucro industrial aumentaria na proporção em que a renda diminuísse.


Ricardo, o apóstolo dos free-traders ingleses, o mais notável dos economistas do nosso século, está, a este respeito, de perfeito acordo com os operários.

Ele escreveu na sua célebre obra sobre economia política:


"Se, em vez de cultivar trigo em nosso país, descobríssemos um novo mercado onde pudéssemos encontrar esse produto por preços mais em conta, os salários deveriam, nesse caso, baixar e os lucros aumentar. A baixa do preço dos produtos da agricultura reduz os salários não somente dos operários agrícolas, mas também de todos os que trabalham nas manufaturas ou estão empregados no comércio."
E não acrediteis, senhores, que se trate de coisa inteiramente indiferente para o operário não receber mais de quatro francos, estando o trigo mais barato, no lugar dos cinco francos que recebia anteriormente.


Seu salário não diminuiu, de qualquer modo, em relação ao lucro? E não é claro que sua posição social piorou em face do capitalismo? Além disso, ele perde ainda concretamente.


Enquanto o preço do trigo estava a preços mais altos, sendo o salário também mais elevado, uma pequena economia feita no consumo do pão bastava para proporcionar ao operário outros proveitos, mas desde o momento que o pão e, em consequência, o salário, baixam, ele não poderá economizar quase nada sobre o pão para a aquisição de outros objetos.


Os operários ingleses fizeram sentir aos free-traders que eles não se deixavam enganar pelas suas ilusões e suas mentiras, e se, apesar disso, se associaram a eles contra os proprietários territoriais, foi para destruir os últimos restos da feudalidade e para ter pela frente um único inimigo. Os operários não se enganaram em seus cálculos, pois os proprietários territoriais, para se vingar dos fabricantes, fizeram causa comum com os operários na aprovação da lei das dez horas, que estes últimos pleiteavam em vão fazia trinta anos, e que foi adotada imediatamente depois da abolição dos direitos sobre os cereais.


Se, no congresso dos economistas, o doutor Bowring tirou de seu bolso uma longa lista para mostrar todas as partes do boi, o presunto, o toucinho, os frangos, etc., etc., que foram importados na Inglaterra, para serem consumidos, como disse, pelos operários, ele se esqueceu infortunadamente de vos dizer que no mesmo instante os trabalhadores de Manchester e de outras cidades manufatureiras, eram despedidos de seus empregos em consequência da crise que começava.


Em economia política, não se deve jamais, em princípio, agrupar os algarismos referentes a um único ano para deles deduzir leis gerais. Deve-se tomar sempre o termo médio de seis a sete anos — lapso de tempo durante o qual a indústria moderna passa por fases diferentes de prosperidade, superprodução, estagnação, crise e completa seu ciclo fatal.


Sem dúvida, se os preços de todas as mercadorias descerem, e essa é a consequência necessária do livre-câmbio, eu poderia obter com um franco muito mais coisas do que antes. E o franco do operário vale tanto quanto qualquer outro. Logo, o livre-câmbio será muito vantajoso para o operário. Existe somente um pequeno inconveniente: é que o operário, antes de trocar o seu franco por outras mercadorias, havia feito, primeiramente, a troca de seu trabalho por capital. Se nesta troca ele recebesse sempre pelo mesmo trabalho o franco em questão, e se os preços de todas as outras mercadorias descessem, ele ganharia sempre nessa transação. O ponto difícil não está em provar que baixando o preço de todas as mercadorias terei mais mercadorias pelo mesmo dinheiro.


Os economistas consideram sempre o preço do trabalho no momento em que ele é trocado por outras mercadorias. Mas deixam inteiramente de lado o momento em que é efetuada a troca do trabalho por capital.


Quando forem necessárias menos despesas para pôr em movimento a máquina que produz as mercadorias, as coisas indispensáveis para sustentar esta máquina que se chama trabalhador custarão igualmente menos. Se todas as mercadorias estiverem mais baratas, o trabalho, que é também uma mercadoria baixará também de preço, e, como veremos mais tarde, este trabalho — mercadoria baixará proporcionalmente muito mais do que as outras mercadorias. O trabalhador, depois de ter confiado na argumentação dos economistas, verificará que o franco se derreteu em seu bolso, e que não lhe restam senão cinco soldos.


Os economistas dirão então: pois bem, convimos em que a concorrência entre os operários, a qual certamente não terá diminuído sob o regime do livre-câmbio, não tardará a colocar os salários de acordo com o preço baixo das mercadorias. Mas de outro lado o preço baixo das mercadorias determinará o aumento do consumo; o consumo maior exigirá uma maior produção, a qual será seguida de uma maior procura de braços, e a esta maior procura de braços sucederá uma alta de salários.


Toda esta argumentação se reduz ao seguinte: o livre-câmbio aumenta as forças produtivas. Se a indústria cresce, se a riqueza, a força de produção, se, numa palavra, o capital produtivo aumenta a procura de trabalho, o preço do trabalho e, como consequência, o salário, aumentam igualmente. A melhor condição para o operário é o crescimento do capital. E é preciso concordar com isso. Se o capital permanecer estacionário, a indústria não permanecerá somente estacionária, mas declinará, e neste caso, o operário será a primeira vítima. Ele perecerá antes do capitalista. E se o capital continuar a crescer nesse estado de coisas que apontamos, o melhor para o operário, qual será a sua sorte? Perecerá igualmente. O crescimento do capital produtivo implica a acumulação e a concentração dos capitais. A concentração dos capitais leva a uma maior divisão do trabalho e a um maior emprego de máquinas. A maior divisão do trabalho destrói a especialização do trabalho, destrói a especialização do trabalhador, e pondo no lugar desta especialização um trabalho que toda gente pode fazer, ele aumenta a concorrência entre os operários.


Esta concorrência torna-se ainda mais intensa, pois a divisão do trabalho permite ao operário fazer sozinho o trabalho de três pessoas.


As máquinas apresentam o mesmo resultado numa escala muito maior. O crescimento do capital produtivo, forçando os capitalistas industriais a trabalharem com meios sempre crescentes, arruína os pequenos industriais e os atira no proletariado. Em seguida, a taxa do juro diminuindo à medida que os capitais se acumulam, os pequenos rendeiros que não podem mais viver de suas rendas serão forçados a entrar na indústria, para aumentarem depois o número de proletários.


Enfim, quanto mais aumenta o capital produtivo, mais é ele forçado a produzir para um mercado de que não conhece as necessidades, quanto mais a produção precede ao consumo, mais a oferta procura forçar a procura, e, em consequência, as crises aumentam de intensidade e de rapidez. Mas toda crise, por sua vez, acelera a centralização dos capitais e torna maior o número de proletários.


Assim, à medida que o capital produtivo cresce, a concorrência entre os operários aumenta numa proporção muito mais intensa. A retribuição do trabalho diminui para todos, e o fardo do trabalho aumenta para alguns.


Em 1829, havia em Manchester 1.088 fiandeiros trabalhando em 36 fábricas. Em 1841 não havia senão 448, e estes movimentavam 53.353 fusos a mais do que os 1.088 operários de 1829. Se a relação do trabalho manual com o poder produtivo tivesse aumentado proporcionalmente, o número dos operários teria sido de 1848; assim os melhoramentos introduzidos na mecânica tiraram o trabalho a 1.100 operários.


Sabemos com antecedência a resposta dos economistas. Estes homens privados de trabalho, dizem eles, encontrarão outro emprego para seus braços. O senhor doutor Bowring não deixou de reproduzir este argumento no congresso dos economistas, mas também não deixou de refutar a si mesmo.


Em 1833, o doutor Bowring pronunciou um discurso na Câmara dos Comuns, a respeito dos 50.000 tecelões de Londres que fazia muito tempo morriam de inanição, sem conseguirem encontrar esta nova ocupação que os free-traders fazem entrever à distância.

Vamos citar as passagens mais importantes desse discurso do senhor doutor Bowring.


"A miséria dos tecelões manuais, disse ele, é a sorte inevitável de toda espécie de trabalho que se prende facilmente e que é susceptível de ser a cada momento substituída por meios menos dispendiosos. Como, neste caso, a concorrência entre os operários é extremamente grande, a menor diminuição na procura produz uma crise. Os tecelões manuais encontram-se de algum modo colocados nos confins da existência humana. Um passo mais, e a sua existência se tornará impossível. O menor choque bastará para atirá-los ao caminho do aniquilamento. O progresso da mecânica, suprimindo cada vez mais o trabalho manual, ocasiona infalivelmente durante a época de transição muitos sofrimentos temporais. O bem-estar nacional não poderia ser obtido senão à custa de alguns males individuais. Não se avança na indústria senão com prejuízo dos retardatários; e de todas as descobertas, o tear a vapor é a que mais esmaga com seu peso os tecelões manuais. Já em muitos artigos que se faziam a mão, o tecelão foi posto fora de combate, mas ele será vencido em muitas outras coisas que ainda se fazem a mão.
Tenho nas mãos, diz ele mais adiante, uma correspondência do governador geral com a Companhia das Índias Orientais. Esta correspondência diz respeito aos tecelões do distrito de Dacca. O governador diz em suas cartas: há alguns anos a Companhia das Índias Orientais recebia de seis a oito milhões de peças de algodão, que eram fabricadas nos teares do país; a procura caiu gradualmente e foi reduzida a cerca de um milhão de peças.
Neste momento ela cessou quase completamente. Além disso, em 1800, a América do Norte adquirira nas Índias cerca de 800.000 peças de algodão. Em 1830 não adquiriu nem mesmo 4.000. Enfim, em 1800, foi embarcado, para ser transportado para Portugal, um milhão de peças de algodão. Em 1830, Portugal não recebia senão 20.000.
Os relatórios sobre a miséria dos tecelões indianos são terríveis. E qual foi a origem desta miséria?
A presença no mercado dos produtos ingleses; a produção do artigo por meio do tear a vapor. Um número muito grande de tecelões morreu de inanição; o restante passou para outras ocupações, sobretudo para os trabalhos agrícolas. Não saber mudar de ocupação equivalia a uma sentença de morte. Neste momento o distrito de Dacca está repleto de fios e de tecidos ingleses. A musselina de Dacca, famosa no mundo inteiro pela sua beleza e firmeza de sua textura, foi também eclipsada pela concorrência das máquinas inglesas. Em toda a história do comércio, seria talvez difícil encontrar sofrimentos semelhantes aos que tiveram de suportar classes inteiras nas Índias Orientais."


O discurso do senhor doutor Bowring é notável principalmente por serem exatos os fatos nele citados, e as frases com que tenta mitigá-los têm o caráter da hipocrisia comum a todos os sermões livre-cambistas. Ele apresenta os operários como meios de produção que precisam ser substituídos por outros meios de produção menos dispendiosos. Finge ver no trabalho de que fala um trabalho inteiramente excepcional, e na máquina que esmagou os tecelões uma máquina igualmente excepcional. Esquece-se de que não há trabalho manual que não seja susceptível de sofrer um dia a sorte da tecelagem.


"O objetivo constante e a tendência de todo aperfeiçoamento no mecanismo são, com efeito, dispensar inteiramente o homem ou diminuir o seu preço por meio da substituição da indústria do operário adulto pela das mulheres e das crianças, ou pelo trabalho do operário inábil o do artesão experimentado. Na maior parte das fiações de teares contínuos, em inglês throstle-mills, a fiação é inteiramente executada por mocinhas de dezesseis anos e de menos idade. A substituição da mull-jenny comum pela mull-jenny automática teve como efeito o desemprego da maior parte dos fiandeiros, sendo mantidos no trabalho as crianças e os adolescentes."

Estas palavras do mais apaixonado dos livre-cambistas, o senhor doutor Ure, servem para completar as confissões do sr. Bowring. O sr. Bowring fala de alguns males individuais, e diz, ao mesmo tempo, que estes males individuais fazem perecer classes inteiras; fala dos sofrimentos passageiros do período de transição, sem contudo procurar dissimular que estes sofrimentos passageiros consistiram para a maior parte dos trabalhadores na passagem da vida para a morte, e para a parte restante no movimento de transição para uma condição inferior àquela na qual se encontravam anteriormente. Se ele diz, mais adiante, que o infortúnio destes operários é inseparável do progresso da indústria e necessário ao bem-estar nacional, ele diz simplesmente que o bem-estar da classe burguesa tem como condição necessária a desgraça da classe laboriosa.


Toda a consolação que o sr. Bowring pródiga aos operários que perecem, e, em geral, toda a doutrina de compensação que os free-traders estabelecem, reduz-se ao seguinte:


Vós, milhares de operários que definhais, não vos desoleis. Podeis morrer com toda a tranquilidade. Vossa classe não perecerá. Ela será sempre bastante numerosa para que o capital a possa dizimar, sem que tenha de recear o seu extermínio. Aliás, como havíeis de querer que o capital encontrasse uma aplicação útil, se ele não tivesse o cuidado de se proporcionar sempre a matéria explorável, os operários, para os explorar de novo?


E também, por que apresentar como problema a ser resolvido a influência que a efetivação do livre-câmbio exercerá sobre a situação da classe operária? Todas as leis que os economistas expuseram, desde Quesnay até Ricardo, foram estabelecidas na suposição de que os entraves que ainda dificultam a liberdade comercial deixaram de existir. Estas leis se confirmam à medida que o livre-câmbio se torna uma realidade.


A primeira destas leis é que a concorrência reduz o preço de toda mercadoria ao mínimo de seu custo de produção. Assim, o mínimo de salário é o preço natural do trabalho. E que é o mínimo de salário? É precisamente o necessário para fazer produzir os objetos indispensáveis ao sustento do operário, para pô-lo em condições de se alimentar bem ou mal e de propagar por pouco que seja a sua raça.


Não suponhamos, contudo, que o operário não terá senão este mínimo de salário; não suponhamos, também, que ele terá sempre este mínimo de salário.


Não, segundo esta lei, a classe operária será às vezes mais feliz. Ela terá algumas vezes mais do que o mínimo; mas este excedente não será senão o suplemento daquilo que ela terá recebido abaixo do mínimo na época de estagnação industrial. Isso quer dizer que num certo lapso de tempo que é sempre periódico, neste círculo que a indústria faz, passando pelas vicissitudes de prosperidade, de superprodução, de estagnação e de crise — e considerando-se tudo o que os trabalhadores terão tido a mais ou a menos que o mínimo — isso tudo quer dizer que a classe operária não será conservada como classe senão depois de muitas desgraças e misérias e cadáveres deixados sobre o campo de batalha industrial. Mas que importa? A classe subsiste sempre, e, melhor ainda, ela terá aumentado.


Isso não é tudo. O progresso da indústria produz meios de existência menos custosos. É assim que a aguardente substituiu a cerveja, que o algodão substituiu a lã e o linho, e que a batata substituiu o pão.


Assim, como se encontra sempre meio de alimentar o trabalho com coisas menos caras e mais miseráveis, o mínimo de salário vai sempre diminuindo. Se este salário começou por fazer trabalhar o homem para viver, ele acabou fazendo o homem viver uma vida de máquina. Sua existência não tem outro valor senão o de uma simples força produtiva, e o capitalista o trata em consequência.


Esta lei do trabalho-mercadoria, do mínimo do salário, verificar-se-á à medida que a suposição dos economistas, o livre-câmbio, se torne uma realidade, uma atualidade. Assim, das duas cousas uma: ou é preciso renegar toda a economia política baseada sobre a suposição do livre-câmbio, ou então é preciso convir em que os operários serão atingidos por todo o rigor das leis econômicas neste regime de livre-câmbio.


Para resumir: no estado atual da sociedade, que é, pois, o livre-câmbio? É a liberdade do capital. Quando tiverdes feito cair os poucos entraves nacionais que ainda dificultam a marcha do capital, não tereis feito senão libertar inteiramente a sua ação. Enquanto se deixar subsistir a relação entre o trabalho assalariado e o capital, a troca das mercadorias entre elas em vão se fará nas condições mais favoráveis: haverá sempre uma classe que explorará e uma classe que será explorada. É verdadeiramente difícil compreender a pretensão dos livre-cambistas, que imaginam que o emprego mais vantajoso do capital fará desaparecer o antagonismo entre os capitalistas industriais e os trabalhadores assalariados. Pelo contrário, tudo o que resultará é que a oposição destas duas classes se acentuará ainda mais nitidamente.


Admiti por um instante que não haja mais leis sobre os cereais, nem alfândega, nem direitos de barreira, enfim, que todas as circunstâncias acidentais, às quais o operário pode ainda atribuir a culpa de sua situação de miséria, tenham desaparecido inteiramente, e tereis rasgado tantos outros véus que ocultam a seus olhos o seu verdadeiro inimigo.

Ele verá que o capital libertado não o escraviza menos que o capital molestado pelas aduanas.


Senhores, não vos deixeis iludir pela palavra abstrata de liberdade. Liberdade para quem? Esta não é a liberdade de um simples indivíduo em presença de outro indivíduo. É a liberdade que tem o capital de esmagar o trabalhador.


Como havíeis ainda de querer sancionar a livre concorrência com esta ideia de liberdade quando esta liberdade não é senão o produto de um estado de cousas baseado sobre a livre concorrência?


Já vimos o que é a fraternidade que o livre-câmbio faz nascer entre as diferentes classes de uma só e mesma nação. A fraternidade que o livre-câmbio viesse a estabelecer entre as diversas nações da terra não seria mais fraternal. Designar pelo nome de fraternidade universal a exploração em seu estado cosmopolita é uma ideia que não poderia ter origem senão no seio da burguesia. Todos os fenômenos destruidores que a livre concorrência faz nascer no interior de um país se reproduzem em proporções mais gigantescas no mercado mundial. Não temos necessidade de nos deter mais longamente nos sofismas que expendem sobre este assunto os livre-cambistas, e que valem bem os argumentos de nossos três laureados, srs. Hope, Morse e Gregg.

Alega-se, por exemplo, que o livre-câmbio faria nascer uma divisão internacional do trabalho, a qual atribuiria a cada país uma produção em harmonia com seus recursos naturais.

Pensais, talvez, senhores, que a produção de café e de açúcar é o destino natural das Índias Ocidentais.


Dois séculos antes, a natureza, que não se preocupa muito com comércio, não havia colocado naquela região nem cafeeiros nem cana de açúcar.

E não se passará talvez nem meio século, e não encontrareis mais ali nem café nem açúcar, pois as Índias Orientais, através de uma produção mais barata, já enfrentaram vitoriosamente este pretenso destino natural das Índias Ocidentais. E estas Índias Ocidentais com seus dons naturais já são para os ingleses um fardo tão pesado quanto os tecelões de Dacca, que, eles também, estavam destinados desde a origem dos tempos a tecer à mão.


Outra coisa que não se deve jamais perder de vista é que, do mesmo modo como tudo se tornou monopólio, há também em nossos dias alguns ramos industriais que dominam todos os outros e que asseguram aos povos que mais os exploram o império sobre o mercado mundial. É assim que no comércio internacional o algodão sozinho tem um maior valor comercial do que todas as matérias-primas empregadas para a fabricação de roupas, consideradas em conjunto. E é verdadeiramente risível ver os livre-cambistas fazer ressaltar umas poucas especialidades em cada ramo industrial para compará-las com os produtos de uso comum que se produzem a preços mais baixos nos países onde a indústria se encontra em grande desenvolvimento.


Não devemos nos admirar de que os livre-cambistas não consigam compreender como um país pode se enriquecer à custa de outros, pois estes mesmos senhores também não querem compreender como, no interior de um país, uma classe pode se enriquecer à custa de outra classe.


Não acrediteis, senhores, que fazendo a crítica da liberdade comercial temos a intenção de defender o sistema protecionista. Podeis vos declarar inimigos do regime constitucional, e nem por isso vos declarais amigos do antigo regime.


Aliás, o sistema protecionista não é senão um meio de se estabelecer numa nação a grande indústria, isto é, de fazê-la depender do mercado mundial, e desde que se dependa do mercado mundial já se depende mais ou menos do livre-câmbio. Além disso, o sistema protecionista contribui para desenvolver a livre concorrência no interior de um país. É por isso que vemos a burguesia fazer grandes esforços para ter direitos de proteção nos países onde ela começa a se fazer valer como classe, como, por exemplo, na Alemanha. Esses direitos são para ela armas contra a feudalidade e contra o governo absoluto, um meio de concentrar suas forças, de realizar o livre-câmbio no interior do seu próprio país.

Mas, em geral, nos nossos dias, o sistema do livre-câmbio é destruidor. Ele dissolve as antigas nacionalidades e leva ao extremo o antagonismo entre a burguesia e o proletariado. Numa palavra, o sistema da liberdade de comércio apressa a revolução social. É somente neste sentido revolucionário, senhores, que eu voto em favor do livre-câmbio.


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