Umberto Martins*
17/6/1989
17/6/1989
Um dos exercícios hoje muito em voga
entre os ideólogos burgueses e pequeno burgueses consiste em encobrir o real
significado histórico do revisionismo, apresentando como representantes de um
mesmo interesse social e idêntico.
Assim, a luta de vida ou morte entre
marxismo e revisionismo parece incompreensível, enquanto neste momento, os
frutos históricos do revisionismo no poder, em especial na URSS, são
apresentados como resultados da aplicação do marxismo; os fracassos das idéias
revisionistas; ganham a aparência de fracassos do marxismo etc.
Sabe-se, entretanto, que o revisionismo
não é um fenômeno novo. Ele nasce na década de 90 do século passado, quando o
marxismo tinha se transformado em ideologia hegemônica do intento operário na
Europa, após triunfar, “incondicionalmente, sobre todas as ideologias do
movimento operário", conforme disse Lênin no artigo "Marxismo e
revisionismo", escrito em 1908.
“O socialismo pré-marxista foi
derrotado", comentava o líder da revolução soviética. Daí as tendências
que se expressavam através das doutrinas derrotadas anteriormente por Marx e
Engels, por exemplo, o proudhonismo e, depois, o bakuninismo – "começaram
a procurar outros caminhos. Modificaram-se as formas e os motivos da luta, mas
a luta continuou". Desde então o último refúgio da ideologia burguesa no
movimento operário tem sido o revisionismo, a revisão mais ou menos aberta dos
postulados cardeais do marxismo;que adquire particularidades e nuances diversas
ao longo da história.
Tudo que foi dito evidentemente não
constitui nada além do que o abecê do marxismo. Mas não se pode ignorar aqueles
que, teimosamente, insistem em apagar a fronteira, ou as diferenças, entre as
duas ideologias. A distinção entre marxismo e revisionismo é, antes de tudo,
questão de classes. “O caráter inevitável do revisionismo é determinado pelas
suas raízes de classe na sociedade atual", argumentava Lênin. Assim, a
luta entre essas correntes antagônicas não é outra coisa senão a expressão no
plano das idéias da moderna luta de classes entre burguesia e proletariado.
O revisionismo é um sistema de idéias
que reflete os interesses da burguesia e tem por base social a pequena
burguesia (inicialmente, enquanto social-democracia, foi a ideologia da
aristocracia operária). O marxismo enfrentou e derrotou as idéias oportunistas
de Bernstein e Karl Kautsky, a revolução proletária de 17 na Rússia apressou o
sepultamento da corrente que eles encarnavam. No entanto, o revisionismo
subsistiu.
Hoje, as diferenças entre marxismo e
revisionismo não se manifestam apenas no plano das idéias, mas sobretudo nas
realizações práticas, como se depreende da realidade soviética, onde a obra de
traição ao proletariado fala por si. Se fosse, como a burguesia procura fazer
crer, o resultado histórico, concreto, da aplicação do marxismo, este teria de
fato fracassado e seria preciso aposentá-lo como instrumento de libertação da
classe operária e, por extensão, de toda a humanidade. O que presenciamos,
porém, é o fracasso da ideologia revisionista, ideologia pequeno burguesa que,
hoje, no poder, ganhou novas particularidade. No entanto, mantém o mesmo
caráter de classe.
Já em 1908 Lênin indicava que a luta
contra o revisionismo não seria encerrada com a vitória da revolução proletária
em um ou outro país, devendo, ao contrário, tornar-se ainda mais encarniçada.
"O que hoje vivemos com frequência num plano puramente ideológico, isto é,
as disputas em torno das emendas teóricas a Marx; o que hoje só se manifesta na
prática a propósito de certos problemas parciais, isolados, do movimento
operário, como divergências táticas com os revisionistas e as cisões neste
terreno, tê-lo-á que viver inevitavelmente a classe operária, em proporções
incomparavelmente maiores, quando a revolução proletária agudizar todos os problemas
em litígio e concentrar todas as divergências nos pontos de importância mais
imediata para a determinação da conduta das massas, obrigando a que se separem,
no fragor da luta, os inimigos dos amigos e a que se rejeitem os maus aliados,
para assestar golpes decisivos no inimigo".
Logo nos primeiros anos que se seguiram
à instalação da ditadura do proletariado na Rússia a revolução enfrentou uma
batalha de vida ou morte contra as classes que haviam sido apeadas do poder.
Num primeiro momento, esta luta teve sua expressão mais alta em três anos de
guerra civil, que também se refletiu em profundas divergências no interior do
partido bolchevique, ao lado das que já eram naturais e mais abertas com os
mencheviques.
As diferenças de opinião relacionavam-se
basicamente sobre o caminho que devia ser seguido para que a revolução
prosseguisse em direção ao socialismo e de acordo com os interesses do
proletariado; concentravam-se, conforme predisse Lênin, "nos pontos de
importância mais imediata para a determinação da conduta das massas". E
representavam interesses de classes distintas.
É o período da "Oposição
Operária", das idéias antioperárias de Trotsky sobre os sindicatos e da
polêmica em torno das decisões sobre "comunismo de guerra" e
implantação de uma Nova Política Econômica (NEP). Como meio de enfrentar esta
luta e garantir a direção proletária sobre o Estado é que foram tomadas as
resoluções do 10° Congresso do Partido Comunista, em 1921, proibindo a
existência legal de partidos burgueses e as frações e grupos no interior do
próprio partido bolchevique.
Já neste período o revisionismo havia
assumido uma característica que o torna bem distinto das formas em que se
revestiu na sua fase inicial, de Bernstein e mesmo de Karl Kautsky. A batalha
entre marxismo e revisionismo, a partir daí, já não será mais travada
exclusivamente no campo ideológico. Ao mesmo tempo a luta ocorria em um terreno
virgem, em que se exigiam respostas a novas questões que os fundadores do
marxismo não haviam enfrentado ou para as quais deram apenas ligeiras
indicações.
Depois de eliminadas outras formas de
manifestação política da burguesia, em 1921, os interesses das classes
exploradoras (que continuaram subsistindo no país durante todo o período de
transição do capitalismo ao socialismo e, durante a NEP, chegaram a gozar
certos estímulos do Estado) só poderiam se expressar ideologicamente através de
revisões, ainda mais encobertas e subterrâneas, do marxismo.
Todo o período de transição foi
caracterizado por uma luta de vida ou morte entre o poder proletário e a
burguesia que sobrevivia no campo e nas cidades; as particularidades da União
Soviética (país capitalista relativamente atrasado e com um cruel legado da
guerra) tornaram a batalha entre o proletariado e as classes exploradoras, e
entre marxismo e revisionismo, especialmente agudas e violentas.
“Trotsky e Bukharin dão o tom do revisionismo durante o período de transição ao socialismo”.
Os exemplos mais importantes da
repercussão desta luta (que envolvia toda a sociedade) no interior do Partido
Comunista são os de Trotsky e Bukharin. Se as idéias de Trotsky (acerca da
impossibilidade de construção do socialismo em um só país, organização
partidária e relação dos sindicatos com o Estado, entre outras) tivessem sido
acatadas pelo partido e transformadas em orientação de Estado, naturalmente não
teria sido possível construir o socialismo na URSS.
Em Bukharin as relações entre as
representações da consciência, as idéias políticas e os interesses de classe
são mais evidentes. A defesa ardorosa que fez dos kulaks (burguesia rural) é
amplamente conhecida. Ele lutou desesperadamente contra a coletivização e a
favor da manutenção da propriedade privada no campo, sob o disfarce da tese de
integração pacífica dos kulaks no socialismo, e nunca conseguiu esconder seu
irresistível fascínio pelos nepmans.
A construção do socialismo na União
Soviética só podia ser vitoriosa com a derrota dessas e outras concepções pequeno-burguesas,
a eliminação das classes cujos interesses elas representavam objetivamente e a
imposição de novas relações de produção. E foi assim que, de fato, ocorreu a
transição do capitalismo ao socialismo.
Quando essa etapa da construção do
socialismo foi concluída na URSS, na segunda metade da década de 1930, as
classes exploradoras tinham sido liquidadas; a burguesia, assim como os
latifundiários, não mais existiam no país, como observou Stalin.
“A pequena-burguesia sobrevive e, com ela, idéias revisionistas e o perigo de retrocesso”.
Mesmo numa sociedade socialista,
contudo, o grau de desenvolvimento das forças produtivas e das relações que se
estabelecem entre os homens particularmente na economia, mas também em todas as
esferas sociais, não é elevado o suficiente para possibilitar a eliminação da
luta de classes, de forma que é inevitável o surgimento de idéias revisionistas
e a possibilidade de retrocesso histórico.
Sobrevivem, embora restritamente, a
produção mercantil, a propriedade de grupos (nas cooperativas), a divisão
social do trabalho e disparidades salariais, as diferenças entre campo e cidade
e outros fenômenos que só deixarão de ocorrer no comunismo. Do ponto de vista
social, tudo isto tem por correspondência obrigatória uma camada relativamente
extensa de pequenos burgueses. E a pequena-burguesia, embora em novas formas,
não perde no socialismo sua essência de camada social intermediária entre a
burguesia e o proletariado, da qual deriva sua posição ideológica pusilânime.
É natural que essa pequena-burguesia
ocupe posições no interior do partido, do aparato estatal, gerências de
fábricas, cooperativas etc. E impregne o ambiente social com idéias às vezes
francamente hostis ao socialismo.
O fato é que para caminhar na direção do
socialismo torna-se indispensável revolucionar permanentemente as relações de
produção, em conformidade com o avanço das forças produtivas, de forma a
eliminar gradualmente a produção mercantil, a divisão social do trabalho, a
diferença entre cidade e campo e elevar o nível da propriedade cooperativa
"ao de propriedade de todo o povo", como preconizava Stalin.
Ora, este movimento tem por
contrapartida o deslocamento das posições e a redução gradual dos interesses da
pequena-burguesia até a pura e simples extinção desta camada social. É evidente
que ele encontra resistência, só se realiza por meio de uma luta ideológica
política mais ou menos aguda dentro do sistema político da ditadura do
proletariado. Essa contradição de interesses entre o proletariado e a
pequena-burguesia em geral define o conteúdo e as características (ou formas)
da luta de classes no socialismo.
A oposição mais ou menos clara, mais ou
menos consciente, da pequena-burguesia à passagem do socialismo ao comunismo
assume diversas formas e reflete-se inevitavelmente nas instituições e no
partido. Manifesta-se em divergências, pequenas ou grandes, no aparelho estatal
ou no interior das fileiras comunistas.
Um exemplo eloquente desta luta no
interior do socialismo neste novo período, de passagem ao comunismo, antes da
ascensão dos revisionistas ao poder, pode ser observado na polêmica travada
entre Stalin e alguns economistas soviéticos acerca dos problemas econômicos do
socialismo na URSS.
O debate gerou em torno da atuação da
lei do valor no socialismo, produção mercantil, contradição entre forças
produtivas e relações de produção, o caráter objetivo das leis econômicas e a
política econômica que o Estado soviético devia tomar naquela nova fase do
desenvolvimento da sociedade socialista caracterizada pela completa liquidação
das classes exploradoras e início da transição do socialismo ao comunismo.
É ilustrativa, para analisar os
interesses em choque naquelas idéias e o caráter de classe das divergências, a
controvérsia sobre as "medidas para elevar a propriedade kolkhosiana ao
nível da propriedade de todo o povo", relatada por Stalin no livro
Problemas econômicos do socialismo na URSS.
"Os camaradas Sánina e Vênzher
propõem, como medida fundamental para essa elevação do nível da propriedade
kolkhosiana, vender os instrumentos fundamentais de produção concentrados nas
Estações de Máquinas e Tratores (EMT), desobrigar desse modo o Estado das
inversões básicas na agricultura e fazer com que os próprios kolkhoses assumam
a manutenção e o desenvolvimento das EMT.
Depois de evidenciar que a medida seria
um desastre do ponto de vista econômico, inclusive porque fornecer ao campo
novas máquinas e tratores na proporção adequada à demanda e ao avanço das
forças produtivas implicava uma capacidade de inversão que as cooperativas não
possuíam, Stalin concluía: "ao propor a venda das EMT como propriedade aos
kolkhoses, os camaradas Sánina e Vênzher retrocedem e procuram fazer a roda da
história girar para trás".
"Disso resultaria, em primeiro
lugar", argumentava, "que os kolkhoses passariam a ser proprietários
dos instrumentos de produção fundamentais, isto é, encontrar-se-iam numa
situação excepcional, numa situação que nenhuma empresa ocupa em nosso país,
pois como se sabe nem mesmo as empresas nacionalizadas são, entre nós,
proprietárias dos instrumentos de produção...
"Disso resultaria, em segundo
lugar, o alargamento da esfera de ação da circulação mercantil, visto que em
sua órbita entraria uma enorme quantidade de instrumentos de produção agrícola.
Que pensam a respeito os camaradas Sánina e Vênzher? O alargamento da esfera da
circulação mercantil poderia contribuir para o nosso avanço no sentido do
comunismo? Não seria mais exato dizer que de fato frearia nosso avanço no
sentido do comunismo?
"O erro fundamental dos camaradas
Sánina e Vênzher consiste em que não compreendem o papel e o significado da
circulação mercantil no socialismo; não compreendem que a circulação mercantil
é incompatível com a perspectiva da passagem do socialismo ao comunismo.
Pensam, pelo que se vê, que a circulação mercantil não constitui um obstáculo
para a passagem do socialismo ao comunismo, que a circulação mercantil não pode
impedir essa transição. Isto é um grande erro, causado por não compreenderam o
marxismo".
Embora não se apresentassem na forma de
uma plataforma clara, nítida, consciente – e nem tinham espaço político para
tanto – as divergências entre essas opiniões refletiam distintos interesses de
classes, simbolizavam a oposição da pequena-burguesia, sua resistência ao
avanço do socialismo na direção do comunismo, eram o reflexo desta luta na
consciência dos economistas, combatidos por Stalin. A polêmica, como se vê,
concentrava-se em torno dos pontos cardeais do período – dos métodos e da
política correspondentes à passagem do socialismo ao comunismo.
As idéias dos economistas combatidos por
Stalin representavam, consequentemente, uma forma específica pela qual
manifestaram-se idéias revisionistas ou mais precisamente o reflexo de
interesses pequeno-burgueses na consciência de alguns indivíduos durante a nova
fase histórica e têm a virtude de resumir questões centrais que estavam em jogo
na ocasião e que constituíam o pano-de-fundo da luta de classes que se travava
no interior da sociedade soviética.
“Kruschev representou, e bem, os interesses de camadas contrariadas com a nova sociedade”.
A ascensão de Kruschev ao poder dá-se
ainda no calor do debate travado por Stalin sobre os problemas econômicos da
construção do socialismo na URSS. E é do solo pisado pela pequena-burguesia que
brota a raiz do pensamento do cidadão que se torna o novo líder da URSS após a
morte de Stalin, em 1953. As idéias revisionistas da pequena-burguesia
manifestavam-se, então, de forma tímida, mas possuíam uma expressiva base no
interior da sociedade soviética, o que lhes garantiu o predomínio sobre o
aparelho estatal após a ascensão de Kruschev ao poder.
Não é difícil observar que Kruschev representou, precisamente, os interesses da pequena-burguesia contrariada com os rumos do socialismo, a marcha na direção do comunismo, e acabou levando a efeito na União Soviética uma contra-revolução pacífica, orientada, antes de tudo, no sentido de preservar as posições e os interesses desta camada social – que teriam inapelavelmente de ceder no processo de transição do socialismo ao comunismo. Ao mesmo tempo, as reformas por ele promovidas garantiram também a ampliação dos interesses e dos direitos, e a alteração da posição da pequena burguesia na sociedade soviética.
Todas as idéias e os atos do líder
revisionista foram determinados por este propósito. Sua obra – e, em certa
medida, a de seus sucessores – orientaram-se para este caminho pequeno-
burguês. E a mudança da posição da pequena-burguesia nas relações de produção
culminou por mudar o caráter dessas relações que. aos poucos. deixaram de ser
socialistas.
Para iniciar a realização da obra
pequeno-burguesa, Kruschev teve de apelar, em primeiro lugar, ao ataque
grosseiro a Stalin. Era indispensável derrubar a autoridade de Stalin no
partido e na sociedade, e reabilitar seus desafetos, para promover uma
orientação (na política, na economia e em toda a sociedade) de essência
pequeno-burguesa.
Ele começa pela reabilitação prática das
idéias dos economistas combatidos anteriormente por Stalin, promovendo o
abrandamento da centralização e do planejamento econômico (extinguindo os
ministérios de planejamento central), transferindo o controle das Estações de
Máquinas e Tratores para as cooperativas (coisa que concluiu em 1959) e
privilegiando os interesses da pequena-burguesia que exercia cargos de chefia
nas empresas e no Estado.
A política colocada desde então em
prática contradiz frontalmente as orientações de Stalin e do XIX Congresso do
PCUS. Alarga a área de influência da produção mercantil sobre a economia
soviética e leva a um progressivo enriquecimento da pequena-burguesia, assim
como à alteração da posição desta camada nas relações de produção – de modo a
transformar o próprio caráter dessas relações.
A produção mercantil, como lembrava
Stalin, não conduz por si mesmo ao capitalismo, leva neste sentido "apenas
se existir propriedade privada sobre os meios de produção (...) A produção
capitalista começa onde os meios de produção estão em mãos de particulares, e
os operários, privados dos meios de produção, são obrigados a vender sua força
de trabalho como mercadoria. Sem isto, não há produção capitalista”. Ao mesmo
tempo, ele enfatiza que o alargamento da produção mercantil é incompatível com
a perspectiva de passagem do socialismo ao comunismo e conduz inapelavelmente
ao retrocesso.
A obra de restauração do capitalismo na
URSS, iniciada por Kruschev, evidentemente não foi concluída de pronto. E teve
continuidade, embora de maneira contraditória e às vezes envergonhada, em
Brejnev, seu sucessor, que em 1965 introduz no país as famosas "reformas
de Kossiguin", que fazem do lucro o motor da produção nas empresas, copiam
do modelo revisionista iugoslavo, a chamada autogestão, e ampliam ainda mais os
poderes de administradores e diretores das estatais.
Medida de grande significado
implementada em todo o período de restauração foi a importação de relações
capitalistas de produção, através da abertura da economia soviética aos
investimentos diretos das empresas estrangeiras e da tomada de empréstimos pelo
país junto à comunidade financeira internacional. O peso específico do capital
estrangeiro na URSS torna-se a partir daí a cada ano maior, determinando a
reincorporação do país no mercado capitalista mundial (veja artigo a respeito
nesta revista, pág. 45).
Com Kruschev e seus sucessores o
revisionismo assume características que o tornam ainda mais distinto das outras
formas em que esta ideologia pequeno-burguesa tinha se revestido no passado,
ainda que mantendo com essas a identidade básica de deformar e aburguesar o
marxismo. E o revisionismo de um partido no poder em um país que já havia
percorrido a fase de transição do capitalismo ao socialismo.
“Os atuais economistas soviéticos invertem os termos do conflito que ocorre na produção”.
Em função desta particularidade, ele não
se limita a incorporar e fazer rejuvenescer as velhas e desmoralizadas idéias
revisionistas sobre a luta de classes, o desenvolvimento do capitalismo, a
missão histórica do proletariado, a concepção de partido etc. A batalha travada
pelo revisionismo soviético contra o marxismo ocorre em uma nova época, quando
este já havia atingido um novo patamar histórico, um novo status: não apenas
era hegemônico no seio da classe operária como havia alcançado o poder,
consolidava a construção da sociedade socialista e desenvolvia a teoria
adequada à luta de classe nessas novas condições históricas.
Em outras palavras, o marxismo já tinha
se transformado em socialismo – na prática – e é nesse nível que terá de ser
combatido pelos revisionistas. A missão dos dirigentes soviéticos que assumem o
poder após a morte de Stalin é, por consequência, proceder à revisão burguesa
do marxismo deste período, teoria que, em sua generalidade, tinha sido
elaborada por Marx e Engels, foi abordada com mais detalhe por Lênin e estava
em pleno desenvolvimento na época de Stalin.
A revisão se traduz sobretudo em uma
política que impõe o retrocesso das relações de produção. A tese de Stalin e do
XIX Congresso do PCUS de que se devia andar para frente, elevando o nível
dessas relações de forma a possibilitar a transição do socialismo ao comunismo,
é revisada na prática pelas reformas de Kruschev e seus seguidores, que não
apenas deixam de caminhar para frente como restabelecem relações de tipo
capitalista que haviam há muito sido superadas.
É sintomático que este movimento de
involução das relações de produção no país se reflita na consciência de
economistas soviéticos na forma de uma verdadeira inversão do real caráter da
contradição entre forças produtivas e relações de produção observada por Marx.
Para justificar o procedimento revisionista, eles alegam, com sutilidade, que o
nível de desenvolvimento das forças produtivas na URSS de hoje é relativamente
baixo e, em função disto, só é possível estabelecer a correspondências adequada
e a harmonia com as relações de produção se essas forem do tipo capitalista.
"As contradições internas do setor
socialista”, argumenta o economista Vsevolod Kulikov no artigo "Etapas do
desenvolvimento do sistema econômico do socialismo" (publicado na
coletânea O socialismo: sistema econômico, da Academia das Ciências da URSS em
1987), "incluem, por exemplo, o conflito entre as novas relações de
produção e as forças de produção herdadas do regime anterior". Para
resolver o conflito é que as reformas se orientam no sentido de restabelecer
relações capitalistas, supostamente mais adequadas ao atual nível histórico de
desenvolvimento das forças produtivas. Ora, no século passado Marx e Engels
observavam que a contradição que dilacerava a sociedade capitalista e
manifestava-se em crises cíclicas de superprodução provinha precisamente do
atraso das relações de produção em relação às forças produtivas, sendo que
estas últimas constituem, como disse Stalin, o elemento mais dinâmico e
revolucionário da produção.
Inverter os termos do problema,
insinuando que as relações de produção estão artificialmente avançadas e
inadequadas ao nível de desenvolvimento das forças produtivas, sendo
necessário, portanto, rebaixá-las – referindo-se à União Soviética da década de
1980 – é uma grosseira deturpação da realidade e mais uma evidência da revisão
burguesa do marxismo.
Stalin ressaltava que a contradição
entre forças produtivas e relações de produção prevalecia no socialismo, com as
relações de produção atrasando-se em comparação ao nível de desenvolvimento das
forças produtivas, e não o contrário. A contradição só não resultaria em crise
se a correspondência entre esses dois aspectos da produção fosse restabelecida
por meio da elevação das relações de produção, o que transforma esta de fator
de entrave em motor do desenvolvimento econômico.
"Esta peculiaridade do
desenvolvimento das relações de produção que passam do papel de entrave das
forças produtivas ao papel de motor principal de seu avanço e do papel de motor
principal ao papel de entrave das forças produtivas, constitui um dos elementos
principais da dialética materialista marxista", argumentava.
No caso, porém, ele ia além dessas
considerações genéricas e indicava concretamente as contradições existentes e
as formas de superá-las dentro de uma perspectiva progressista, socialista,
como por exemplo em relação à necessidade de elevar a propriedade cooperativa
"ao nível de propriedade de todo o povo".
Os revisionistas que passaram a dominar
o Estado soviético a partir de 1953 levaram a efeito uma política
diametralmente oposta às indicações de Stalin, forçaram a involução das
relações de produção e o resultado mais global deste caminho, do ponto de vista
econômico, está patenteado na profunda crise em que o país foi mergulhado.
O domínio da pequena-burguesia sobre o
Estado soviético – que caracteriza todo o período de restauração do capitalismo
na União Soviética – redundou, de outro lado, no progressivo enriquecimento
desta camada social, bem como na ampliação de sua posição no processo de
produção, em tal medida que de fato criou, com o tempo, uma espécie de
"nova burguesia", constituída de gerentes de fábricas e cooperativas,
altos burocratas do Estado e do partido, oficiais e técnicos de elevada
graduação.
Embora não tenha o controle direto e
privado, sobre os meios de produção, na verdade esta camada beneficia-se do
poder que exerce sobre o Estado, arrancando por meio dele, e em proveito
próprio, uma parcela apreciável da riqueza produzida pelos operários, alterando
com isso o caráter do processo distributivo do sistema. A produção deixa de
servir a toda a sociedade para satisfazer, em especial, os interesses desta
"nova burguesia", fenômeno que se conjuga à extração direta de
mais-valia pelo capital estrangeiro.
Esta camada não constitui a burguesia em
sua forma social clássica nem dispõe, na União Soviética, dos mesmos direitos
formais desta. A rigor, ainda é a pequena-burguesia enriquecida, com novos
privilégios e posições na sociedade. Por isto, não deve ser tomada por forma
permanente e nem é o resultado último da obra de restauração do revisionismo.
Trata-se, na verdade, de uma categoria
social provisória, característica e própria de certa fase do período de
restauração.
Com Gorbachev o regime revisionista
soviético inicia uma nova fase de seu desenvolvimento histórico, caracterizado
no geral pela conclusão do período de restauração capitalista e o ressurgimento
da burguesia em sua forma clássica. O que domina a cena política, com efeito, é
a burguesia vestindo sua velha roupa.
“A perestroika inaugura uma nova fase do regime. E a burguesia veste sua velha roupa”.
As principais medidas adotadas por
Gorbachev refletem precisamente este movimento. A legalização da pequena
propriedade capitalista nas cidades, por exemplo, abre campo para pleno
restabelecimento da propriedade privada, e a expansão, mais livre e irrestrita
dos direitos e interesses burgueses.
Na mesma direção orientam-se as
iniciativas relacionadas à propriedade camponesa, onde o ressurgimento da
burguesia rural (os novos kulaks) ocorre de forma mais nítida e em larga escala
através do arrendamento das terras por um prazo de 50 anos a pequenos grupos e
indivíduos, iniciativa que Gorbachev justifica com o discurso cínico de
"terra para quem nela trabalha".
Ora, da pequena propriedade, como
lembrava Lênin, nasce a cada minuto a produção capitalista e a personalidade
social que lhe corresponde, o capitalista. A expansão do capital – e com ela a
transformação do pequeno capitalista em médio e, depois, grande burguês – passa
a ser apenas uma questão de tempo e de eliminação das tímidas restrições que
ainda subsistem na União Soviética.
Não há dúvidas de que existem restrições
jurídicas e econômicas e que o movimento encabeçado hoje por Gorbachev enfrenta
resistências, evoluindo em meio a contradições e lutas. O restabelecimento do
parlamento burguês no país e as iniciativas no campo da glasnost têm por
finalidade precisamente criar as condições favoráveis à expressão liberal das
divergências no seio das novas elites, ao acomodamento "democrático"
das contradições capitalistas (iludindo o povo) e ao predomínio da nova
orientação, que representa a pressão irresistível das "novas" forças
sociais ressuscitadas pelos revisionistas na URSS.
Quanto ao próprio líder da perestroika,
ele pretende impor novas normas "sobre o direito de propriedade" e
intenta desferir o golpe de mestre sugerido pelo seu principal assessor, o
economista Abel Aganbeguian: a privatização das estatais, de "todas, com
exceção da indústria bélica", conforme as palavras usadas pelo economista
numa entrevista ao programa "Bom dia Brasil", da "TV
Globo", por ocasião de sua visita a Brasília. O retorno da falência na
URSS, além de tornar quase ilimitada a predominância do mercado e da lei do
valor na economia soviética, aponta nesta direção de abrir alas para a
iniciativa privada, seja nacional ou estrangeira.
O reflexo e a contrapartida desta nova
fase da sociedade soviética na consciência de Gorbachev e dos dirigentes
revisionistas são não só o aprofundamento da revisão, cada vez mais descarada
das idéias marxistas, como também o início do completo abandono da ideologia
marxista.
Os vestígios de marxismo no pensamento
de Gorbachev e dos teóricos mais influentes da perestroika, com efeito, são
cada vez mais pálidos. O líder soviético foi forçado a abrir-mão inclusive da
teoria da luta de classes como motor da história, substituindo-a pela vaga e
falsa noção de interesses da humanidade – pretensamente acima das classes.
Defronte dos resultados da restauração
do capitalismo, da plena vigência das leis e categorias econômicas capitalistas
na União Soviética e seus desdobramentos, Gorbachev também teve de admitir a
crise econômica e incorporá-la à sua noção de socialismo.
É assim que ele diz que a sociedade
socialista "não está segura contra o aparecimento e acumulação de
tendências paralisadoras", depois de observar que, quando assumiu o poder:
"em seu todo, a sociedade estava ficando cada vez mais ingovernável"
e "à beira da crise" (em seu livro Perestroika).
Com efeito, a obra de restauração do
capitalismo na URSS foi coroada por uma profunda crise econômica, social e
política. As taxas de crescimento do produto iniciaram por declinar
violentamente, de forma que, segundo informações oficiais, a evolução da renda
nacional deu-se conforme a seguinte média anual por quinquênio.
Já no X Plano Quinquenal, o último, de
1981 a 1985, a taxa de crescimento da economia foi igual a zero, segundo
cálculos do insuspeito Abel Aganbeguian (em seu livro Perestroika – o duplo
desafio soviético) . Ou seja, o país estagnou.
“O socialismo da crise, com Gorbachev, exige uma ideologia mais abertamente burguesa”.
O fenômeno, evidentemente, expressa uma
crise econômica aguda. E esta, por seu turno, reflete a explosão da contradição
entre as forças produtivas e as relações de produção capitalistas que foram
restauradas na União Soviética; o conflito tornou-se inconciliável e antagônico
após as reformas revisionistas. É um fenômeno por si só evidente.
E é esta nova realidade que força
Gorbachev a revisar o princípio socialista do desenvolvimento e da expansão
ininterrupta da produção, que constitui – na economia – a base para assegurar a
satisfação máxima das necessidades materiais e culturais da sociedade.
"Em vez de desenvolver a produção
com intermitência do ascenso à crise a da crise ao ascenso, desenvolver
ininterruptamente a produção; em vez de intermitências periódicas no
desenvolvimento da técnica, acompanhadas da destruição das forças produtivas da
sociedade, o aperfeiçoamento ininterrupto da produção à base da técnica mais
elevada", conforme a formulação de Stalin.
Esta noção sobre o desempenho da
economia socialista já havia sido elaborada anteriormente por Marx e Engels em
diversos escritos. Stalin desenvolveu a idéia com base no desenvolvimento do
socialismo soviético. A experiência histórica comprovou que não se tratava
simplesmente da exposição de um desejo, mas, antes, de uma previsão científica,
baseada na análise das categorias e leis econômicas próprias do novo regime,
coisa que, hoje, continua sendo evidenciada pela experiência de construção do
socialismo na Albânia.
A obra de revisão, neste nível, atinge
na verdade a lei fundamental do socialismo e não é de espantar que os
revisionistas – ao terem suas teses submetidas à dura prova da história – sejam
forçados a apelar até este ponto.
Eis que temos agora um perfeito
socialismo burguês, com crises econômicas, burguesia e tudo o mais. E isto não
podia deixar de ter uma representação correspondente na consciência dos
dirigentes revisionistas.
A marcha do regime soviético, com a
restauração completa de todas as leis e categorias próprias do capitalismo (na
economia, na política e em toda sociedade), tem a virtude de transformar o
invólucro marxista que encobre a ideologia revisionista num incômodo a cada dia
maior às elites soviéticas. A traição aos princípios da doutrina proletária é aberta,
a máscara cai.
Com o pleno restabelecimento da
burguesia no país é a própria ideologia pequeno-burguesa que tem de ser
ultrapassada. Nesse sentido, se tiver tempo histórico para cumprir até o fim
sua trajetória inglória, o revisionismo soviético tende a percorrer no plano
das idéias um caminho análogo ao da social-democracia – que, em 1959, já
plenamente desmoralizada e com um rubor capitalista bem nítido, optou por
desertar formalmente o marxismo.
* Umberto Martins é jornalista, editor da Princípios.
EDIÇÃO 17, JUNHO, 1989, PÁGINAS 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30
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