No dia 11 de setembro, completaram-se
150 anos de O Capital. Esta é sua história.
A obra que, talvez mais que qualquer
outra, contribuiu para mudar o mundo nos últimos 150 anos, teve uma gestação
longa e muito difícil. Marx começou a escrever O Capital só muitos anos após
iniciar seus estudos de economia política. Se já a partir de 1844 havia
criticado a propriedade privada e o trabalho alienado da sociedade capitalista,
foi somente após o pânico financeiro de 1857 – que começou nos Estados Unidos e
depois se estendeu a Europa – que se sentiu obrigado a deixar de lado sua
incessante pesquisa e começar a redigir o que chamava sua “Economia”.
Crise, os Grundrisse e pobreza
Com o início da crise, Marx antecipou o
nascimento de uma nova fase de convulsões sociais e considerou que o mais
urgente era proporcionar ao proletariado a crítica ao modo de produção
capitalista, um requisito prévio para superá-lo. Desse modo, nasceram os
Grundrisse, oito cadernos nos quais examinou as formações econômicas
pré-capitalistas e descreveu algumas características da sociedade comunista,
ressaltando a importância da liberdade e do desenvolvimento dos indivíduos. O
movimento revolucionário que surgiria por causa da crise ficou em uma ilusão e
Marx não publicou seus manuscritos, consciente da distância que ainda estava do
domínio total dos temas que enfrentava. A única parte publicada, após uma
profunda reelaboração do capítulo sobre o dinheiro, foi a Contribuição à
Crítica da Economia Política, um texto distribuído em 1859 e revisado por uma
só pessoa: Engels.
O projeto de Marx era dividir sua obra
em seis livros. Deveriam se dedicar ao capital, à propriedade da terra, ao
trabalho assalariado, ao Estado, ao comércio exterior e ao mercado mundial.
Contudo, em 1862, como resultado da guerra de secessão estadunidense, o New
York Tribune despediu seus colaboradores europeus. Marx – que trabalhou para o
jornal durante mais de uma década – e sua família voltaram a viver em condições
de terrível pobreza, as mesmas que haviam sofrido durante os primeiros anos de
seu exílio em Londres. Só contava com a ajuda de Engels, a quem escrevia:
“Todos os dias, minha esposa me diz que preferiria estar em uma sepultura com
as pequenas e, na verdade, não posso culpá-la, dadas as humilhações e
sofrimentos que estamos padecendo, realmente indescritíveis”. Sua condição era
tão desesperadora que, nas semanas mais sombrias, faltava comida para as filhas
e papel para escrever. Buscou emprego em um escritório das ferrovias. A vaga,
no entanto, não lhe foi concedida por causa de sua letra ruim. Portanto, para
enfrentar a indigência, a obra de Marx esteve sujeita a grandes atrasos.
A mais-valia e o carbúnculo
Neste período, em um longo manuscrito
intitulado Teorias sobre a Mais-Valia, realizou uma profunda crítica ao modo
como todos os grandes economistas haviam tratado erroneamente a mais-valia como
lucro ou renda. Para Marx, no entanto, era a forma específica pela qual se manifesta
a exploração no capitalismo. Os trabalhadores passam parte de seu dia
trabalhando para o capitalista de forma gratuita. Este último busca de todas as
formas possíveis gerar mais-valia por meio do trabalho excedente: “Não basta
que o trabalhador produza em geral, deve produzir mais-valia”, ou seja, servir
à autovalorização do capital. O roubo de inclusive alguns poucos minutos da
comida ou do descanso de cada trabalhador significa transferir uma enorme
quantidade de riqueza aos bolsos dos patrões. O desenvolvimento intelectual,
cumprir as funções sociais e os dias festivos são para o capital “puras e
simples bagatelas”.
Après moi le déluge (depois de mim, o
dilúvio) era para Marx o lema dos capitalistas, ainda que pudessem,
hipocritamente, se opor à legislação sobre as fábricas em nome da “liberdade
plena do trabalho”. A redução da jornada de trabalho e o aumento do valor da
força de trabalho foi, portanto, o primeiro terreno da luta de classes.
Em 1862, Marx escolheu o título de seu
livro: O Capital. Acreditava que podia começar imediatamente a redigi-lo, no
entanto, às já graves vicissitudes financeiras se somaram problemas de saúde.
De fato, o que sua esposa Jenny descreveu como “a terrível enfermidade” contra
a qual Marx precisaria lutar muitos anos de sua vida era o carbúnculo, uma
horrível infecção que se manifesta em várias partes do corpo com uma série de
abscessos cutâneos e uma extensa e debilitante furunculose. Marx foi operado e
“sua vida permaneceu durante muito tempo em perigo”. Sua família estava à beira
do abismo.
O Moro (este era seu apelido) se
recuperou e até dezembro de 1865 se dedicou a escrever o que se converteria em
sua autêntica obra magna. Além disso, a partir do outono de 1864 assistiu
assiduamente as reuniões da Associação Internacional de Trabalhadores, para a
qual escreveu durante oito anos seus principais documentos políticos. Estudar
durante o dia na biblioteca, para se inteirar das novas descobertas, e seguir
trabalhando em seu manuscrito durante toda a noite: esta foi a esgotadora
rotina a qual Marx se submeteu até a exaustão de todas as suas energias e o
esgotamento de seu corpo.
Um todo artístico
Ainda que havia reduzido seu projeto de
seis para três volumes sobre O Capital, Marx não quis abandonar seu propósito
de publicá-los juntos. De fato, escreveu a Engels: “Não posso decidir sobre o
que abrir mão, antes de tudo estar diante de mim, sejam quais forem os defeitos
que possam ter, este é o valor de meus livros: todos formam um todo artístico,
alcançável somente graças ao meu sistema de não o entregar ao impressor antes
de tê-lo completo diante de mim”.
O dilema de “corrigir uma parte do
manuscrito e entregá-lo ao editor ou terminar de escrever tudo” foi resolvido
pelos acontecimentos. Marx sofreu outro ataque bestial de carbúnculo, o mais
virulento de todos. A Engels disse que havia “perdido a pele”. Os médicos lhe
disseram que a recaída se deu em razão do excesso de trabalho e as contínuas
vigílias noturnas. Marx se concentrou no livro um: O processo de produção do
capital.
Os furúnculos seguiram o atormentando e,
durante semanas, Marx nem sequer pôde se sentar. Tentou se operar. Procurou uma
navalha e disse a Engels que tentou extirpar essa maldita coisa. Desta vez, o
encerramento de sua obra não foi postergado pela “teoria”, mas, sim, por
“razões físicas e burguesas”.
Em abril de 1867, o manuscrito foi
finalmente concluído. Marx pediu a seu amigo de Manchester, que lhe ajudou
durante 20 anos, que lhe enviasse dinheiro para poder recuperar “a roupa e o
relógio que se encontram na casa de empenho”. Marx sobreviveu com o mínimo
indispensável e, sem esses objetos, não podia viajar à Alemanha, onde a
imprensa esperava por sua obra.
A correção do rascunho durou todo o
verão e Engels lhe destacou que a exposição da forma do valor era muito
abstrata e “se ressentia da perseguição dos furúnculos”. Marx respondeu:
“espero que a burguesia se recorde de meus furúnculos até o dia de sua morte”.
O Capital foi colocado à venda no dia 11
de setembro de 1867. Um século e meio depois, o texto figura entre os livros
mais traduzidos, vendidos e discutidos na história da humanidade. Para aqueles
que queiram entender o que realmente é o capitalismo e por que os trabalhadores
devem lutar por uma “forma superior de sociedade, cujo princípio fundamental
seja o desenvolvimento pleno e livre de cada indivíduo”, O Capital é hoje mais
que nunca uma leitura simplesmente imprescindível”.
*O artigo é de Marcello Musto, professor
da Universidade Iorque, Toronto-Canadá, publicado por La Razón, 24-09-2017. A
tradução é do Cepat.
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/572065-como-nasceu-a-obra-o-capital
Via: Os Bárbaros
04 de Outubro 2017
Sem comentários:
Enviar um comentário
Por favor nâo use mensagens ofensivas.