terça-feira, 28 de agosto de 2018

A declaração de Tsipras: A suposta "nova era" baseia-se nas ruínas dos direitos populares

A declaração de Tsipras:

A suposta "nova era" baseia-se nas ruínas dos direitos populares

por KKE

Terça-feira, 21 de agosto de 2018, o primeiro-ministro, Alexis Tsipras, no seu discurso na ilha Ítaca sobre a saída oficial dos memorandos, na realidade anunciou a continuação da política antipopular. As suas frases "saímos dos memorandos, mas não ficamos por aqui" e "com prudência e responsabilidade, para não regressarmos à Grécia dos defices e da falência", são compromissos claros aos prestamistas e aos mercados de que os dias das medidas antipopulares não acabaram.

Ao mesmo tempo, em tom festivo, tentou criar no povo um clima de expectativas de alguma coisa vai mudar para melhor. A ilha de Ítaca foi escolhida pelo governo para cultivar esse tipo de expectativas, ligando-a à mítica viagem épica da Odisseia e o fim das aventuras de Ulisses, marcadas pelo seu regresso ao local de nascimento, Ítaca.

A Secção de Imprensa do Comité Central do KKE destaca no seu comunicado sobre as declarações de Tsipras que: "O primeiro-ministro está a tentar esconder que a suposta "nova era" assenta as suas bases na ruína dos direitos do povo e dos jovens.

O dia seguinte será a continuação do dia anterior, já que estão ainda em vigor centenas de leis dos memorandos, debaixo da estrita supervisão da UE, os "superávites de sangue, a selva laboral, o espólio fiscal, a deterioração de todos os aspectos da vida humana. Tudo isto conhece muito bem o povo grego, por muito que o SYRIZA-ANEL tente enganá-lo, por muitas teatralidades a que o senhor Tsipras recorra.

O governo não se compromete a abolir nem uma só medida imposta ao povo através dos memorandos. Pelo contrário, compromete-se a continuar com as reformas, a que não haja regresso ao passado, o que na essência significa que o povo deve esquecer tudo o que perdeu e estar satisfeito com as migalhas e as esmolas.

De qualquer modo esta é a ordem do capital, bem como dos parceiros do governo, a UE e o FMI que, por um lado, felicitam o governo por levar a cabo a sua tarefa suja, e por outro antecipam a continuação da política antipopular. A aplicação desta política será avaliada pelos "mercados" e pelos "investidores", para continuarem a confiar na economia grega.

A realidade do memorando tal como foi descrita pelo primeiro-ministro, a pobreza, o desemprego, a repressão, a corrupção, os escandalosos lucros do capital constituem a barbárie da via de desenvolvimento capitalista, bem como o núcleo da sua política, que continuou firmemente a política dos governos da ND e do PASOK

Esta coincidência estratégica não se pode ocultar apesar dos esforços destes dois partidos, apesar dos falsos dilemas como as "frentes contra a direita- contra o Syriza", de "progresso-conservadorismo", que parecem a velha história do bipartidarismo em falência.

Nenhuma confiança, nenhuma ilusão! Para o povo a saída limpa significa a abolição das leis dos memorandos, da recuperação das perdas, da satisfação das necessidades contemporâneas.

O povo, os trabalhadores não são lotófagos , eles não vão ficar do lado de Scylla ou Charybdis. Será o senhor Tsipras a escolher com qual dos dois monstros quer que o seu governo se identifique. Nós escolhemos a nossa própria Ítaca que nos oferecerá a maravilhosa jornada da luta pela vida e pelo futuro que merecemos. Esta Ítaca seguramente não nos decepcionará.




sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Do socialismo Utópico ao Socialismo Cientifico! De Friederich Engels III - O Materialismo Histórico

Friederich Engels

III - O Materialismo Histórico

A concepção materialista da história parte da tese de que a produção, e com ela a troca dos produtos, é a base de toda a ordem social; de que em todas as sociedades que desfilam pela história, a distribuição dos produtos, e juntamente com ela a divisão social dos homens em classes ou camadas, é determinada pelo que a sociedade produz e como produz e pelo modo de trocar os seus produtos. De conformidade com isso, as causas profundas de todas as transformações sociais e de todas as revoluções políticas não devem ser procuradas nas cabeças dos homens nem na ideia que eles façam da verdade eterna ou da eterna justiça, mas nas transformações operadas no modo de produção e de troca; devem ser procuradas não na filosofia, mas na economia da época de que se trata. Quando nasce nos homens a consciência de que as instituições sociais vigentes são irracionais e injustas, de que a razão se converteu em insensatez e a bênção em praga (7), isso não é mais que um indício de que nos métodos de produção e nas formas de distribuição produziram-se silenciosamente transformações com as quais já não concorda a ordem social, talhada segundo o padrão de condições econômicas anteriores. E assim já está dito que nas novas relações de produção têm forçosamente que conter-se - mais ou menos desenvolvidos - os meios necessários para pôr termo aos males descobertos. E esses meios não devem ser tirados da cabeça de ninguém, mas a cabeça é que tem de descobrí-los nos factos materiais da produção, tal e qual a realidade os oferece.

Qual é, nesse aspecto, a posição do socialismo moderno?

A ordem social vigente - verdade reconhecida hoje por quase todo o mundo - é obra das classes dominantes dos tempos modernos, da burguesia. O modo de produção característico da burguesia, ao qual desde Marx se dá o nome de modo capitalista de produção, era incompatível com os privilégios locais e dos estados, como o era com os vínculos interpessoais da ordem feudal. A burguesia lançou por terra a ordem feudal e levantou sobre suas ruínas o regime da sociedade burguesa, o império da livre concorrência, da liberdade de domicílio, da igualdade de direitos dos possuidores de mercadorias, e tantas outras maravilhas burguesas. Agora já podia desenvolver-se livremente o modo capitalista de produção. E ao chegarem o vapor e a nova maquinaria ferramental, transformando a antiga manufactura na grande indústria, as forças produtivas criadas e postas em movimento sob o comando da burguesia desenvolveram-se com uma velocidade inaudita e em proporções até então desconhecidas. Mas, do mesmo modo que em seu tempo a manufactura e o artesanato, que continuava desenvolvendo-se sob sua influência, se chocavam com os entraves feudais das corporações, a grande indústria, ao chegar a um nível de desenvolvimento mais alto, já não cabe no estreito marco em que é contida pelo modo de produção capitalista. As novas forças produtivas transbordam já da forma burguesa em que são exploradas, e esse conflito entre as forças produtivas e o modo de produção não é precisamente nascido na cabeça do homem - algo assim como o conflito entre o pecado original do homem e a Justiça divina - mas tem suas raízes nos factos, na realidade objectiva, fora de nós, independentemente da vontade ou da actividade dos próprios homens que o provocaram. O socialismo moderno não é mais que o reflexo desse conflito material na consciência, sua projeção ideal nas cabeças, a começar pelas da classe que sofre directamente suas consequências: a classe operária.

Em que consiste esse conflito? Antes de sobrevir a produção capitalista, isto é, na Idade Média, dominava, com carácter geral, a pequena indústria, baseada na propriedade privada do trabalhador sobre seus meios de produção: no campo, a agricultura corria a cargo de pequenos lavradores, livres ou vassalos; nas cidades, a indústria achava-se em mãos dos artesãos. Os meios de trabalho - a terra, os instrumentos agrícolas, a oficina, as ferramentas - eram meios de trabalho individual, destinados unicamente ao uso individual e, portanto, forçosamente, mesquinhos, diminutos, limitados. - Mas isso mesmo levava a que pertencessem, em geral, ao próprio produtor. O papel histórico do modo capitalista de produção e seu portador - a burguesia - consistiu precisamente em concentrar e desenvolver esses dispersos e mesquinhos meios de produção, transformando-os nas poderosas alavancas produtoras dos tempos actuais. Esse processo, que a burguesia vem desenvolvendo desde o século XV e que passa historicamente pelas três etapas da cooperação simples, a manufatura e a grande indústria, é minuciosamente exposto por Marx na secção quarta de O Capital. Mas a burguesia, como fica também demonstrado nessa obra, não podia converter aqueles primitivos meios de produção em poderosas forças produtivas sem transformá-los de meios individuais de produção em meios sociais, -só manejáveis por uma colectividade de homens. A roca, o tear manual e o martelo do ferreiro foram substituídos pela máquina de fiar, pelo tear mecânico, pelo martelo movido a vapor; a oficina individual deu o lugar à fábrica, que impõe a cooperação de centenas e milhares de operários. E, com os meios de produção, transformou-se a própria produção, deixando de ser uma cadeia de actos individuais para converter-se numa cadeia de actos sociais, e os produtos transformaram-se de produtos individuais em produtos sociais. O fio, as telas, os artigos de metal que agora safam da fábrica eram produto do trabalho colectivo de um grande número de operários, por cujas mãos tinha que passar sucessivamente para sua elaboração. Já ninguém podia dizer: isso foi feito por mim, esse produto é meu.

Mas onde a produção tem por forma principal um regime de- divisão social do trabalho criado paulatinamente, por impulso elementar, sem sujeição a plano algum, a produção imprime aos produtos a forma de mercadoria, cuja troca, compra e venda permitem aos diferentes produtores individuais satisfazer suas diversas necessidades. E isso era o que acontecia na Idade Média. O camponês, por exemplo, vendia ao artesão os produtos da terra, comprando-lhe em troca os artigos elaborados em sua oficina. Nessa sociedade de produtores isolados, de produtores de mercadorias, veio a introduzir-se mais tarde o novo modo de produção. Em meio àquela divisão elementar do trabalho, sem plano nem sistema, que imperava no seio de toda a sociedade, o novo modo de produção implantou a divisão planificada do trabalho dentro de cada fábrica; ao lado da produção individual surgiu a produção social Os produtos de ambas eram vendidos no mesmo mercado e, portanto, a preços aproximadamente iguais. Mas a organização planificada podia mais que a divisão elementar do trabalho; as fábricas em que o trabalho estava organizado socialmente elaboravam seus produtos mais baratos que os pequenos produtores isolados. A produção individual foi pouco a pouco sucumbindo em todos os campos e a produção social revolucionou todo o antigo modo de produção. Contudo, esse carácter revolucionário passava despercebido; tão despercebido que, pelo contrário, se implantava com a única e exclusiva finalidade de aumentar e fomentar a produção de mercadorias. Nasceu directamente ligada a certos sectores de produção e troca de mercadorias que já vinham funcionando: o capital comercial, a indústria artesanal e o trabalho assalariado. E já que surgia como uma nova forma de produção de mercadorias, mantiveram-se em pleno vigor sob ela as formas de apropriação da produção de mercadorias.

Na produção de mercadorias, tal como se havia desenvolvido na Idade Média, não podia surgir o problema de a quem pertencer os produtos do trabalho. O produtor individual criava-os, geralmente, com matérias-primas de sua propriedade, produzidas não poucas vezes por ele mesmo, com seus próprios meios de trabalho e elaborados com seu próprio trabalho manual ou de sua família. Não necessitava, portanto, apropriar-se deles, pois já eram seus pelo simples facto de produzi-los. A propriedade dos produtos baseava-se, pois, no trabalho pessoal. E mesmo naqueles casos em que se empregava a ajuda alheia, esta era, em regra, acessória, e recebia freqüentemente, além do salário, outra compensação: o aprendiz e o oficial das corporações não trabalhavam menos pelo salário e pela comida do que para aprender a chegar a ser mestres algum dia. Sobrevêm a concentração dos meios de produção em grandes oficinas e manufacturas, sua transformação em meios de produção realmente sociais. Entretanto, esses meios de produção e seus produtos sociais foram considerados como se continuassem a ser o que eram antes: meios de produção e produtos individuais. E se até aqui o proprietário dos meios de trabalho se apropriara dos produtos, porque eram, geralmente, produtos seus e a ajuda constituía uma exceção, agora o proprietário dos meios de trabalho continuava apoderando-se do produto, embora já não fosse um produto seu, mas fruto exclusivo do trabalho alheio. Desse modo, os produtos, criados agora socialmente, não passavam a ser propriedade daqueles que haviam posto realmente em marcha os meios de produção e eram realmente seus criadores, mas do capitalista. Os meios de produção e a produção foram convertidos essencialmente em factores sociais. E, no entanto, viam-se submetidos a uma forma de apropriação que pressupõe a produção privada individual, isto é, aquela em que cada qual é dono de seu próprio produto e, como tal, comparece com ele ao mercado. O modo de produção se vê sujeito a essa forma de apropriação apesar de destruir o pressuposto sobre o qual repousa (8) Nessa contradição, que imprime ao novo modo de produção o seu caráter capitalista, encerra-se em germe, todo o conflito dos tempos actuais. E quanto mais o novo modo de produção se impõe e impera em todos os campos fundamentais da produção e em todos os países economicamente importantes, afastando a produção individual, salvo vestígios insignificantes, maior é a evidência com que se revela a incompatibilidade entre a produção social e a apropriação capitalista.

Os primeiros capitalistas já se encontraram, como ficou dito, com a forma do trabalho assalariado. Mas como excepção, como ocupação secundária, como simples ajuda, como ponto de transição. O lavrador que saía de quando em vez para ganhar uma diária, tinha seus dois palmos de terra própria, graças às quais, em caso extremo, podia viver. Os regulamentos das corporações velavam para que os oficiais de hoje se convertessem amanhã em mestres. Mas, logo que os meios de produção adquiriram um caráter social e se concentraram em mãos dos capitalistas, as coisas mudaram. Os meios de produção e os produtos do pequeno produtor individual foram sendo cada vez mais depreciados, até que a esse pequeno produtor não ficou outro recurso senão ganhar um salário pago pelo capitalista. O trabalho assalariado, que era antes excepção e mera ajuda, passou a ser regra e forma fundamental de toda a produção, e o que era antes ocupação acessória se converte em ocupação exclusiva do operário. O operário assalariado temporário transformou-se em operário assalariado para toda a vida. Ademais, a multidão desses para sempre assalariados vê-se engrossada em proporções gigantescas pela derrocada simultânea da ordem feudal, pela dissolução das mesnadas (9) dos senhores feudais, a expulsão dos camponeses de suas terras, etc. Realizara-se o completo divórcio entre os meios de produção concentrados nas mãos dos capitalistas, de um lado, e, de outro lado, os produtores que nada possuíam além de sua própria força de trabalho. A contradição entre a produção social e a apropriação capitalista reveste a forma de antagonismo entre o proletariado e a burguesia.

Vimos que o modo de produção capitalista introduziu-se numa sociedade de produtores de mercadorias, de produtores individuais, cujo vinculo social era o intercâmbio de seus produtos. Mas toda sociedade baseada na produção de mercadorias apresenta a particularidade de que nela os produtores perdem o comando sobre suas próprias relações sociais. Cada qual produz para si, com os meios de produção de que consegue dispor, e para as necessidades de seu intercâmbio privado. Ninguém sabe qual a quantidade de artigos do mesmo tipo que os demais lançam no mercado, nem da quantidade que o mercado necessita; ninguém sabe se seu produto individual corresponde a uma demanda efectiva, nem se poderá cobrir os gastos, nem sequer, em geral, se poderá vendê-lo. A anarquia impera na produção social. Mas a produção de mercadorias tem, como toda forma de produção, suas leis características, próprias e inseparáveis dela; e essas leis abrem caminho apesar da anarquia, na própria anarquia e através dela. Tomam corpo na única forma de enlace social que subsiste: na troca, e se impõem aos produtores individuais sob a forma das leis imperativas da concorrência. A principio, esses produtores as ignoram, e é preciso que uma larga experiência vá revelando-as, pouco a pouco. Impõem-se, pois, sem os produtores, e mesmo contra eles, como leis naturais cegas que presidem essa forma de produção. O produto impera sobre o produtor.

Na sociedade medieval, e sobretudo em seus primeiros séculos, a produção destinava-se principalmente ao consumo próprio, a satisfazer apenas às necessidades do produtor e sua família. E onde, como acontecia no campo, subsistiam relações pessoais de vassalagem, contribuía também para satisfazer às necessidades do senhor feudal. Não se produzia, pois, nenhuma troca, nem os produtos revestiam, portanto, o caráter de mercadorias. A família do lavrador produzia quase todos os objectos de que necessitava: utensílios, roupas e viveres. Só começou a produzir mercadorias quando começou a criar um excedente de produtos, depois de cobrir suas próprias necessidades e os tributos em espécie que devia pagar ao senhor feudal; esse excedente, lançado no intercâmbio social, no mercado, para sua venda, converteu-se em mercadoria. Os artesãos das cidades, por certo, tiveram que produzir para o mercado desde o primeiro momento. Mas também elaboravam eles próprios a maior parte dos produtos de que necessitavam para seu consumo; tinham suas hortas e seus pequenos campos, apascentavam seu gado nos campos comunais, que lhes forneciam também madeira e lenha; suas mulheres fiavam o linho e a lã, etc. A produção para a troca, a produção de mercadorias, achava-se em seu inicio. Por isso o intercâmbio era limitado, o mercado era reduzido, o modo de produção era estável. Em face do exterior imperava o exclusivismo local; no interior, a associação local: a Marca no campo, as corporações nas cidades.

Mas ao estender-se a produção de mercadorias e, sobretudo, ao aparecer o modo capitalista de produção, as leis da produção de mercadorias, que até aqui haviam apenas dado sinais de vida, passam a funcionar de maneira aberta e poderosa. As antigas associações começam a perder força, as antigas fronteiras vão caindo por terra, os produtores vão convertendo-se mais e mais em produtores de mercadorias independentes e isolados. A anarquia da produção social sai à luz e se aguça cada vez mais. Mas o instrumento principal com que o modo de produção capitalista fomenta essa anarquia na produção social é precisamente o inverso da anarquia: a crescente organização da produção com caráter social, dentro de cada estabelecimento de produção. Por esse meio, põe fim à velha estabilidade pacifica. Onde se implanta num ramo industrial, não tolera a seu lado nenhum dos velhos métodos. Onde se apodera da indústria artesanal, ela a destrói e aniquila. O terreno de trabalho transforma-se num campo de batalha. As grandes descobertas geográficas e as empresas de colonização que as acompanham multiplicam os mercados e aceleram o processo de transformação de oficina do artesão em manufactura. E a luta não eclode somente entre os produtores locais isolados; as contendas locais não adquirem envergadura nacional, e surgem as guerras comerciais dos séculos XVII e XVIII (10). Até que, por fim, a grande indústria e a implantação do mercado mundial dão caráter universal à luta, ao mesmo tempo que lhe imprimem uma inaudita violência. Tanto entre os capitalistas individuais como entre industriais e países inteiros, a primazia das condições - natural ou artificialmente criadas - da produção decide a luta pela existência. O que sucumbe é esmagado sem piedade. É a luta darwinista da existência individual transplantada, com redobrada fúria, da natureza para a sociedade. As condições naturais de vida da besta convertem-se no ponto culminante do desenvolvimento humano. A contradição entre a produção social e a apropriação capitalista manifesta-se agora como antagonismo entre a organização da produção dentro de cada fábrica e a anarquia da produção no seio de toda a sociedade.

O modo capitalista de produção move-se nessas duas formas da contradição a ele inerente por suas próprias origens, descrevendo sem apelação aquele "círculo vicioso" já revelado por Fourier. Mas o que Fourier não podia ver ainda em sua época é que esse círculo se vai reduzindo gradualmente, que o movimento se desenvolve em espiral e tem de chegar necessariamente ao seu fim, como o movimento dos planetas. chocando-se com o centro. É a força propulsora da anarquia social da produção que converte a imensa maioria dos homens, cada vez mais marcadamente, em proletários, e essas massas proletárias serão, por sua vez, as que, afinal, porão fim à anarquia da produção É a força propulsora da anarquia social da produção que converte a capacidade infinita de aperfeiçoamento das máquinas num preceito imperativo, que obriga todo capitalista industrial a melhorar continuamente a sua maquinaria, sob pena de perecer. Mas melhorar a maquinaria equivale a tornar supérflua uma massa de trabalho humano. E assim como a implantação e o aumento quantitativo da maquinaria trouxeram consigo a substituição de milhões de operários manuais por um número reduzido de operários mecânicos, seu aperfeiçoamento determina a eliminação de um número cada vez maior de operários das máquinas e, em última instância, a criação de uma massa de operários disponíveis que ultrapassa a necessidade média de ocupação do capital, de um verdadeiro exército industrial de reserva, como eu já o chamara em 1845 (11), de um exército de trabalhadores disponíveis para as épocas em que a indústria trabalha a pleno vapor e que logo nas crises que sobrevêm necessariamente depois desses períodos, é lançado às ruas, constituindo a todo momento uma grilheta amarrada aos pés da classe trabalhadora em sua luta pela existência contra o capital e um regulador para manter os salários no nível baixo correspondente às necessidades do capitalista. Assim, para dizê-lo com Marx, a maquinaria converteu-se na mais poderosa arma do capital contra a classe operária, um meio de trabalho que arranca constantemente os meios de vida das mãos do operário, acontecendo que o produto do próprio operário passa a ser o instrumento de sua escravização. Desse modo, a economia nos meios de trabalho leva consigo, desde o primeiro momento, o mais impiedoso desperdício da força de trabalho e a espoliação das condições normais da função mesma do trabalho. E a maquinaria, o recurso mais poderoso que se pôde criar para reduzir a jornada de trabalho, converte-se no mais infalível recurso para converter a vida inteira do operário e de sua família numa grande jornada disponível para a valorização do capital; ocorre, assim, que o excesso de trabalho de uns é a condição determinante da carência de trabalho de outros, e que a grande indústria, lançando-se pelo mundo inteiro, em desabalada carreira, à conquista de novos consumidores, reduz em sua própria casa o consumo das massas a um mínimo de fome e mina com isso o seu próprio mercado interno. "A lei que mantém constantemente o excesso relativo de população ou exército industrial de reserva em equilíbrio com o volume e a intensidade da acumulação do capital amarra o operário ao capital com ataduras mais fortes do que as cunhas com que Vulcano cravou Prometeu no rochedo. Isso dá origem a que a acumulação do capital corresponda a uma acumulação igual de miséria. A acumulação de riqueza em um dos polos determina no polo oposto, no polo da classe que produz o seu próprio produto como capital, uma acumulação igual de miséria, de tormentos de trabalho, de escravidão, de ignorância, de embrutecimento e de degradação moral." (Marx, O Capital, t. 1, cap. XXIII) E esperar do modo capitalista de produção uma distribuição diferente dos produtos seria o mesmo que esperar que os dois electrodos de uma bateria, enquanto conectados com ela, não decomponham a água nem engendrem oxigênio no polo positivo e hidrogênio no polo negativo.

Vimos que a capacidade de aperfeiçoamento da maquinaria moderna, levada a seu limite máximo, converte-se, em virtude da anarquia da produção dentro da sociedade num preceito imperativo que obriga os capitalistas industriais, cada qual por si, a melhorar incessantemente a sua maquinaria, a tornar sempre mais poderosa a sua força de produção. Não menos imperativo é o preceito em que se converte para ele a mera possibilidade efectiva de dilatar sua órbita de produção. A enorme força de expansão da grande indústria, a cujo lado a expansão dos gases é uma brincadeira de crianças, revela-se hoje diante de nossos olhos como uma necessidade qualitativa e quantitativa de expansão, que zomba de todos os obstáculos que se lhe deparam. Esses obstáculos são os que lhe opõem o consumo, a saída, os mercados de que os produtos da grande indústria necessitam. Mas a capacidade extensiva e intensiva de expansão dos mercados obedece, por sua vez, a leis muito diferentes e que actuam de uma maneira muito menos enérgica. A expansão dos mercados não pode desenvolver-se ao mesmo ritmo que a da produção. A colisão torna-se inevitável, e como é impossível qualquer solução senão fazendo-se saltar o próprio modo capitalista de produção, essa colisão torna-se periódica. A produção capitalista engendra um novo "círculo vicioso".

Com efeito, desde 1825, ano em que estalou a primeira crise geral, não se passam dez anos seguidos sem que todo o mundo industrial e comercial, a distribuição e a troca de todos os povos civilizados e de seu séquito de países mais ou menos bárbaros, saia dos eixos. O comércio é paralisado, os mercados são saturados de mercadorias, os produtos apodrecem nos armazéns abarrotados, sem encontrar saída; o dinheiro torna-se invisível; o crédito desaparece; as fábricas param; as massas operárias carecem de meios de subsistência precisamente por tê-los produzido em excesso, as bancarrotas e falências se sucedem. O paradeiro dura anos inteiros, as forças produtivas e os produtos são malbaratados e destruídos em massa até que, por fim, os estoques de mercadorias acumuladas, mais ou menos depreciadas, encontram saída, e a produção e a troca se vão reanimando pouco a pouco. Paulatinamente, a marcha se acelera, a andadura converte-se em trote, o trote industrial em galope e, finalmente, em carreira desenfreada, num steeple-chase (12) da indústria, do comércio, do crédito, da especulação, para terminar, por fim, depois dos saltos mais arriscados, na fossa de um crack. E assim, sucessivamente. Cinco vezes repete-se a mesma história desde 1825, e presentemente (1877) estamos vivendo-a pela sexta vez. E o caráter dessas crises é tão nítido e tão marcante que Fourier as abrangia todas ao descrever a primeira, dizendo que era uma crise plétorique, uma crise nascida da superabundância.

Nas crises estala em explosões violentas a contradição entre a produção social e a apropriação capitalista. A circulação de mercadoria fica, por um momento, paralisada. O meio de circulação, o dinheiro, converte-se num obstáculo para a circulação; todas as leis da produção e da circulação das mercadorias viram pelo avesso. O conflito econômico atinge seu ponto culminante: o modo de produção rebela-se contra o modo de distribuição.

O facto de que a organização social da produção dentro das fábricas se tenha desenvolvido até chegar a um ponto em que passou a ser inconciliável com a anarquia - coexistente com ela e acima dela - da produção na sociedade é um rato que se revela palpavelmente aos próprios capitalistas pela concentração violenta dos capitais, produzida durante as crises à custa da ruína de numerosos grandes e, sobretudo, pequenos capitalistas. Todo o mecanismo do modo de produção falha, esgotado pelas forças produtivas que ele mesmo engendrou. Já não consegue transformar em capital essa massa de meios de produção, que permanecem inactivos, e por isso precisamente deve permanecer também inactivo o exército industrial de reserva. Meios de produção, meios de vida, operários em disponibilidade: todos os elementos da produção e da riqueza geral existem em excesso. Mas a "superabundância converte-se em fonte de miséria e de penúria" (Fourier), já que é ela, exactamente, que impede a transformação dos meios de produção e de vida em capital, pois na sociedade capitalista os meios de produção não podem pôr-se em movimento senão transformando-se previamente em capital, em meio de exploração da força humana de trabalho. Esse imprescindível carácter de capital dos meios de produção ergue-se como um espectro entre eles e a classe operária. É isso o que impede que se engrenem a alavanca material e a alavanca pessoal da produção; é o que não permite aos meios de produção funcionar nem aos operários trabalhar e viver. De um lado, o modo capitalista de produção revela, pois, sua própria incapacidade para continuar dirigindo suas forças produtivas. De outro lado, essas forças produtivas compelem com uma intensidade cada vez maior no sentido de que resolva a contradição, de que sejam redimidas de sua condição de capital, de que seja efectivamente reconhecido o seu carácter de forças produtivas sociais.

É essa rebelião das forças de produção, cada vez mais imponentes, contra a sua qualidade de capital, essa necessidade cada vez mais imperiosa de que se reconheça o seu carácter social, que obriga a própria classe capitalista a considerá-las cada vez mais abertamente como forças produtivas sociais, na medida em que é possível dentro das relações capitalistas. Tanto os períodos de elevada pressão industrial, com sua desmedida expansão do crédito, como o próprio crack, com o desmoronamento de grandes empresas capitalistas, estimulam essa forma de socialização de grandes massas de meios de produção que encontramos nas diferentes categorias de sociedades anônimas. Alguns desses meios de produção e de comunicação já são por si tão gigantescos que excluem, como ocorre com as ferrovias, qualquer outra forma de exploração capitalista. Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento já não basta tampouco essa forma; os grandes produtores nacionais de um ramo industrial unem-se para formar um truste, um consórcio destinado a regular a produção; determinam a quantidade total que deve ser produzida, dividem-na entre eles e impõem, desse modo, um preço de venda de antemão fixado. Como, porém, esses trustes se desmoronam ao sobrevirem os primeiros ventos maus nos negócios, conduzem com isso a uma socialização ainda mais concentrada; todo o ramo industrial converte-se numa única grande sociedade anônima, e a concorrência interna dá lugar ao monopólio interno dessa sociedade única; assim aconteceu já em 1890 com a produção inglesa de álcalis, que na actualidade, depois da fusão de todas as quarenta e oito grandes fábricas do país, é explorada por uma só sociedade com direção única e um capital de 120 milhões de marcos.

Nos trustes, a livre concorrência transforma-se em monopólio e a produção sem plano da sociedade capitalista capitula ante a produção planificada e organizada da nascente sociedade socialista. É claro que, no momento, em proveito e benefício dos capitalistas. Mas aqui a exploração torna-se tão patente, que tem forçosamente de ser derrubada. Nenhum povo toleraria uma produção dirigida pelos trustes, uma exploração tão descarada da colectividade por uma pequena quadrilha de cortadores de cupões.


De um modo ou de outro, com ou sem trustes, o representante oficial da sociedade capitalista, o Estado, tem que acabar tomando a seu cargo o comando da produção (13) A necessidade a que corresponde essa transformação de certas empresas em propriedade do Estado começa a manifestar-se nas. grandes empresas de transportes e comunicações, tais como o correio, o telégrafo e as ferrovias.

Além da incapacidade da burguesia para continuar dirigindo as forças produtivas modernas que as crises revelam, a transformação das grandes empresas de produção e transporte em sociedades anônimas, trustes e em propriedade do Estado demonstra que a burguesia já não é indispensável para o desempenho dessas funções. Hoje, as funções sociais do capitalista estão todas a cargo de empregados assalariados, e toda a actividade social do capitalista se reduz a cobrar suas rendas, cortar seus cupões e jogar na bolsa, onde os capitalistas de toda espécie arrebatam, uns aos outro, os seus capitais. E se antes o modo capitalista de produção deslocava os operários, agora desloca também os capitalistas, lançando-os, do mesmo modo que aos operários, entre a população excedente; embora, por enquanto ainda não no exército industrial de reserva.

Mas as forças produtivas não perdem sua condição de capital ao converter-se em propriedade das sociedades anônimas e dos trustes ou em propriedade do Estado. No que se refere aos trustes e sociedades anônimas, é palpávelmente claro. Por sua parte, o Estado moderno não é tampouco mais que uma organização criada pela sociedade burguesa para defender as condições exteriores gerais do modo capitalista de produção contra os atentados, tanto dos operários como dos capitalistas isolados. O Estado moderno, qualquer que seja a sua forma, é uma máquina essencialmente capitalista, é o Estado dos capitalistas, o capitalista coletivo ideal. E quanto mais forças produtivas passe à sua propriedade tanto mais se converterá em capitalista colectivo e tanto maior quantidade de cidadãos explorará. Os operários continuam sendo operários assalariados, proletários. A relação capitalista, longe de ser abolida com essas medidas, se aguça. Mas, ao chegar ao cume, esboroa-se. A propriedade do Estado sobre as forças produtivas não é solução do conflito, mas abriga já em seu seio o meio formal, o instrumento para chegar à solução.

Essa solução só pode residir em ser reconhecido de um modo efectivo o caráter social das forças produtivas modernas e, portanto, em harmonizar o modo de produção, de apropriação e de troca com o carácter social dos meios de produção. Para isso, não há senão um caminho: que a sociedade, abertamente e sem rodeios, tome posse dessas forças produtivas, que já não admitem outra direção a não ser a sua. Assim procedendo, o carácter social dos meios de produção e dos produtos, que hoje se volta contra os próprios produtores, rompendo periodicamente as fronteiras do modo de produção e de troca, e só pode impor-se com uma força e eficácia tão destruidoras como o impulso cego das leis naturais, será posto em vigor com plena consciência pelos produtores e se converterá, de causa constante de perturbações e cataclismos periódicos, na alavanca mais poderosa da própria produção.

As forças activas da sociedade actuam, enquanto não as conhecemos e contamos com elas, exactamente como as forças da natureza: de modo cego violento e destruidor. Mas, uma vez conhecidas, logo que se saiba compreender sua acção, suas tendências e seus efeitos, está em nossas mãos o sujeitá-las cada vez mais à nossa vontade e, por meio delas, alcançar os fins propostos. Tal é o que ocorre, muito especialmente, com as gigantescas forças modernas da produção. Enquanto resistirmos obstinadamente a compreender sua natureza e seu carácter - e a essa compreensão se opõem o modo capitalista de produção e seus defensores -, essas forças actuarão apesar de nós, e nos dominarão, como bem ressaltamos. Em troca, assim que penetramos em sua natureza, essas forças, postas em mãos dos produtores associados, se converterão de tiranos demoníacos em servas submissas. É a mesma diferença que há entre o poder maléfico da eletricidade nos raios da tempestade e o poder benéfico da força eléctrica dominada no telégrafo e no arco voltaico; a diferença que há entre o fogo destruidor e o fogo posto a serviço do homem. O dia em que as forças produtivas da sociedade moderna se submeterem ao regime congruente com a sua natureza por fim conhecida, a anarquia social da produção deixará o seu posto à regulamentação colectiva e organizada da produção, de acordo com as necessidades da sociedade e do indivíduo. E o regime capitalista de apropriação, em que o produto escraviza primeiro quem o cria e, em seguida, a quem dele se apropria, será substituído pelo regime de apropriação do produto que o carácter dos modernos meios de produção está reclamando: de um lado, apropriação directamente social, como meio para manter e ampliar a produção; de outro lado, apropriação directamente individual, como meio de vida e de proveito.

O modo capitalista de produção, ao converter mais e mais em proletários a imensa maioria dos indivíduos de cada pais, cria a força que, se não quiser perecer, está obrigada a fazer essa revolução. E, ao forçar cada vez mais a conversão dos grandes meios socializados de produção em propriedade do Estado, já indica por si mesmo o caminho pelo qual deve produzir-se essa revolução. O proletariado toma em suas mãos o Poder do Estado e principia por converter os meios de produção em propriedade do Estado. Mas, nesse mesmo acto, destrói-se a si próprio como proletariado, destruindo toda diferença e todo antagonismo de classes, e com isso o Estado como tal. A sociedade, que se movera até então entre antagonismos de classe, precisou do Estado, ou seja, de uma organização da classe exploradora correspondente para manter as condições externas de produção e, portanto, particularmente, para manter pela força a classe explorada nas condições de opressão (a escravidão, a servidão ou a vassalagem e o trabalho assalariado), determinadas pelo modo de produção existente. O Estado era o representante oficial de toda a sociedade, sua síntese num corpo social visível; mas o era só como Estado que, em sua época, representava toda a sociedade: na antiguidade era o Estado dos cidadãos escravistas, na Idade Média o da nobreza feudal; em nossos tempos, da burguesia. Quando o Estado se converter, finalmente, em representante efectivo de toda a sociedade, tornar-se-á por si mesmo supérfluo. Quando já não existir nenhuma classe social que precise ser submetida; quando desaparecerem, juntamente com a dominação de classe, juntamente com a luta pela existência individual, engendrada pela actual anarquia da produção, os choques e os excessos resultantes dessa luta, nada mais haverá para reprimir, nem haverá necessidade, portanto, dessa força especial de repressão que é o Estado.

O primeiro acto em que o Estado se manifesta efectivamente como representante de toda a sociedade - a posse dos meios de produção em nome da sociedade - é ao mesmo tempo o seu último acto independente como Estado. A intervenção da autoridade do Estado nas relações sociais tornar-se-á supérflua num campo após outro da vida social e cessará por si mesma. O governo sobre as pessoas é substituído pela administração das coisas e pela direção dos processos de produçâo. O Estado não será "abolido", extingue-se. É partindo daí que se pode julgar o valor do falado "Estado popular livre" no que diz respeito à sua justificação provisória como palavra de ordem de agitação e no que se refere à sua falta de fundamento científico. É também partindo daí que deve ser considerada a exigência dos chamados anarquistas de que o Estado seja abolido da noite para o dia.

Desde que existe historicamente o modo capitalista de produção, houve indivíduos e seitas inteiras diante dos quais se projetou mais ou menos vagamente, como ideal futuro, a apropriação de todos os meios de produção pela sociedade. Mas, para que isso fosse realizável, para que se convertesse numa necessidade histórica, fazia-se preciso que se dessem antes as condições efectivas para a sua realização. A fim de que esse progresso, como todos os progressos sociais, seja viável, não basta ser compreendido pela razão que a existência de classes é incompatível com os ditames da justiça, da igualdade, etc.; não basta a simples vontade de abolir essas classes - mas são necessárias determinadas condições econômicas novas. A divisão da sociedade em uma classe exploradora e outra explorada, em uma classe dominante e outra oprimida, era uma conseqüência necessária do anterior desenvolvimento incipiente da produção. Enquanto o trabalho global da sociedade der apenas o estritamente necessário para cobrir as necessidades mais elementares de todos, e talvez um pouco mais; enquanto, por isso, o trabalho absorver todo o tempo, ou quase todo o tempo, da imensa maioria dos membros da sociedade, esta se divide, necessariamente, em classes. Junto à grande maioria constrangida a não fazer outra coisa senão suportar a carga do trabalho, forma-se uma classe que se exime do trabalho directamente produtivo e a cujo cargo correm os assuntos gerais da sociedade: a direção dos trabalhos, os negócios públicos, a justiça, as ciências, as artes, etc., É, pois, a lei da divisão do trabalho que serve de base à divisão da sociedade em classes. O que não impede que essa divisão da sociedade em classes se realize por meio da violência e a espoliação, a astúcia e o logro; nem quer dizer que a classe dominante, uma vez entronizada, se abstenha de consolidar o seu poderio à custa da classe trabalhadora, transformando seu papel social de direção numa maior exploração das massas.

Vemos, pois, que a divisão da sociedade em classes tem sua razão histórica de ser, mas só dentro de determinados limites de tempo, sob determinadas condições sociais. Era condicionada pela insuficiência da produção, e será varrida quando se desenvolverem plenamente as modernas forças produtivas. Com efeito, a abolição das classes sociais pressupõe um grau histórico de desenvolvimento tal que a existência, já não dessa ou daquela classe dominante concreta, mas de uma classe dominante qualquer que seja ela, e, portanto, das próprias diferenças de classe representa um anacronismo. Pressupõe, por conseguinte, um grau culminante no desenvolvimento da produção em que a apropriação dos meios de produção e dos produtos e, portanto, do poder político, do monopólio da cultura e da direção espiritual por uma determinada classe da sociedade, não só se tornou de facto supérfluo, mas constitui econômica, política e intelectualmente uma barreira levantada ante o progresso. Pois bem, já se chegou a esse ponto. Hoje, a bancarrota política e intelectual da burguesia não é mais um segredo nem para ela mesma e sua bancarrota econômica é um fenômeno que se repete periodicamente de dez em dez anos. Em cada uma dessas crises a sociedade se asfixia, afogada pela massa de suas próprias forças produtivas e de seus produtos, aos quais não pode aproveitar e, impotente, vê-se diante da absurda contradição de que os seus produtores não tenham o que consumir, por falta precisamente de consumidores. A força expansiva dos meios de produção rompe as ataduras com que são submetidos pelo modo capitalista de produção, Só essa libertação dos meios de produção é que pode permitir o desenvolvimento ininterrupto e cada vez mais rápido das forças produtivas e, com isso, o crescimento praticamente ilimitado da produção. Mas não é apenas isso. A apropriação social dos meios de produção não só elimina os obstáculos artificiais hoje antepostos à produção, mas põe termo também ao desperdício e à devastação das forças produtivas e dos produtos, uma das consequências inevitáveis da produção actual e que alcança seu ponto culminante durante as crises. Ademais, acabando-se com o parvo desperdício do luxo das classes dominantes e seus representantes políticos, será posta em circulação para a colectividade toda uma massa de meios de produção e de produtos. Pela primeira vez, surge agora, e surge de um modo efectivo, a possibilidade de assegurar a todos os membros da sociedade, através de um sistema de produção social, uma existência que, além de satisfazer plenamente e ceda dia mais abundantemente suas necessidades materiais, lhes assegura o livre e completo desenvolvimento e exercício de suas capacidades físicas e intelectuais (14).

Ao apossar-se a sociedade dos meios de produção cessa a produção de mercadorias e, com ela, o domínio do produto sobre os produtores. A anarquia reinante no seio da produção social cede o lugar a uma organização planejada e consciente. Cessa a luta pela existência individual e, assim, em certo sentido, o homem sai definitivamente do reino animal e se sobrepõe às condições animais de existência, para submeter-se a condições de vida verdadeiramente humanas. As condições que cerca o homem e até agora o dominam, colocam-se, a partir desse instante, sob seu domínio e seu comando e o homem, ao tomar-se dono e senhor de suas próprias relações sociais, converte-se pela primeira vez em senhor consciente e efectivo da natureza. As leis de sua própria actividade social, que até agora se erguiam frente ao homem como leis naturais, como poderes estranhos que o submetiam a seu império, são agora aplicadas por ele com pleno conhecimento de causa e, portanto, submetidas a seu poderio. A própria existência social do homem, que até aqui era enfrentada como algo imposto pela natureza e a história, é de agora em diante obra livre sua. Os poderes objectivos e estranhos que até aqui vinham imperando na história colocam-se sob o controle do próprio homem. Só a partir de então, ele começa a traçar a sua história com plena consciência do que faz. E só daí em diante as causas sociais postas em ação por ele começam a produzir predominantemente, e cada vez em maior medida, os efeitos desejados. É o salto da humanidade do reino da necessidade para o reino da liberdade.

***
Resumamos, brevemente, para terminar, nossa trajetória de desenvolvimento:

1. - Sociedade medieval: Pequena produção individual. Meios de produção adaptados ao uso individual e, portanto, primitivos, torpes, mesquinhos, de eficácia mínima. Produção para o consumo imediato, seja do próprio produtor, seja de seu senhor feudal. Só nos casos em que fica um excedente de produtos, depois de ser coberto aquele consumo, é posto à venda e lançado no mercado esse excedente. Portanto, a produção de mercadorias acha-se ainda em seus albores, mas já encerra, em potencial, a anarquia da produção social

2. - Revolução capitalista: Transformação da indústria, iniciada por meio da cooperação simples e da manufatura. Concentração dos meios de produção, até então dispersos, em grande oficinas, com o que se convertem de meios de produção do indivíduo em meios de produção sociais, metamorfose que não afecta, em geral, a forma de troca. Ficam de pé as velhas formas de apropriação, Aparece o capitalista: em sua qualidade de proprietário dos meios de produção, apropria-se também dos produtos e os converte em mercadorias. A produção transforma-se num acto social; a troca e, com ela, a apropriação continuam sendo actos individuais: o produto social é apropriado pelo capitalista individual. Contradição fundamental, da qual se derivam todas as contradições em que se move a sociedade actual e que a grande indústria evidencia claramente:

A. Divórcio do produtor com os meios de produção. Condenação do operário a ser assalariado por toda a vida. Antítese de burguesia e proletariado.

B. Relevo crescente e eficácia acentuada das leis que presidem a produção de mercadorias. Concorrência desenfreada. Contradição entre a organização social dentro de cada fábrica e a anarquia social na produção total.

C. De um lado, aperfeiçoamento da maquinaria, que a concorrência transforma num preceito imperativo para cada fabricante e que equivale a um afastamento cada dia maior de operários: exército industrial de reserva. De outro lado, extensão ilimitada da produção, que a concorrência impõe também como norma incoercível a todos os fabricantes. De ambos os lados, um desenvolvimento inaudito das forças produtivas, excesso da oferta sobre a procura, superprodução, abarrotamento dos mercados, crise cada dez anos, círculo vicioso: superabundância, aqui, de meios de produção e de produtos e, ali, de operários sem trabalho e sem meios de vida. Mas essas duas alavancas da produção e do bem-estar social não podem combinar-se, porque a forma capitalista da produção impede que as forças produtivas actuem e os produtos circulem, a não ser que se convertam previamente em capital, o que lhes é vedado precisamente por sua própria superabundância. A contradição se aguça até converter-se em contra-senso: o modo de produção revolta-se contra a forma de troca. A burguesia revela-se incapaz para continuar dirigindo suas próprias forças sociais produtivas.

D. Reconhecimento parcial do caráter social das forças produtivas, arrancado aos próprios capitalistas. Apropriação dos grandes organismos de produção e de transporte, primeiro por sociedades anônimas, em seguida pelos trustes, e mais tarde pelo Estado. A burguesia revela-se uma classe supérflua; todas as suas funções sociais são executadas agora por empregados assalariados.

3. - Revolução proletária, solução das contradições: o proletariado toma o poder político e, por meio dele, converte em propriedade pública os meios sociais de produção, que escapam das mãos da burguesia. Com esse acto redime os meios de produção da condição de capital, que tinham até então, e dá a seu carácter social plena liberdade para impor-se, A partir de agora já é possível uma produção social segundo um plano previamente elaborado. O desenvolvimento da produção transforma num anacronismo a sobrevivência de classes sociais diversas. À medida que desaparece a anarquia da produção social, vai diluindo-se também a autoridade política do Estado. Os homens, donos por fim de sua própria existência social, tornam-se senhores da natureza, senhores de si mesmos, homens livres.

A realização desse acto, que redimirá o mundo, é a missão histórica do proletariado moderno. E o socialismo científico, expressão teórica do movimento proletário, destina-se a pesquisar as condições históricas e, com isso, a natureza mesma desse acto, infundindo assim à classe chamada a fazer essa revolução, à classe hoje oprimida, a consciência das condições e da natureza de sua própria acção.

Notas:

(7) Palavras de Mefistófeles em Fausto de Goethe. 

(8) Não precisamos explicar que, ainda quando a forma de apropriação permaneça invariável, o carácter da apropriação sofre uma revolução pelo processo que descrevemos, em não menor grau que a própria produção. A apropriação de um produto próprio e a apropriação de um produto alheio são, evidentemente, duas formas muito diferentes de apropriação. E advertimos de passagem que o trabalho assalariado, no qual se contém já o germe de todo o modo capitalista de produção, é muito antigo; coexistiu durante séculos inteiros, em casos isolados e dispersos, com a escravidão. Contudo, esse germe só pode desenvolver-se até formar o modo capitalista de produção quando surgiram as premissas históricas adequadas. (Nota de Engels) 

(9) Mesnada: tropas mercenárias que serviam aos senhores feudais nas guerras. 

(10) Trata-se das guerras travadas entre Portugal, Espanha, Holanda, França e Inglaterra pela posse do comércio com a Índia e a América e a colonização desses continentes. Dessas guerras saiu vencedora a Inglaterra, que teve em suas mãos, até os fins do século XVIII, o domínio do comércio mundial. 

(11) A Situação da Classe Operária na Inglaterra, pág. 109. (Nota de Engels) 

(12) Corrida de obstáculos. 

(13) E digo que tem de tomar a seu cargo, pois a nacionalização só representará um progresso econômico, um passo adiante para a conquista pela sociedade de todas as forças produtivas, embora essa medida seja levada a cabo pelo Estado actual, quando os meios de produção ou de transporte superarem já efectivamente os marcos directores de urna sociedade anônima, quando, portanto, a medida da nacionalização já for economicamente inevitável. Contudo, recentemente, desde que Bismarck empreendeu o caminho da nacionalização, surgiu uma espécie de falso socialismo, que degenera de quando em vez num tipo especial de socialismo, submisso e servil, que em todo acto de nacionalização, mesmo nos adoptados por Bismarck, vêm uma medida socialista. Se a nacionalização da indústria do fumo fosse socialismo, seria necessário incluir, Napoleão e Metternich entre os fundadores do socialismo. Quando o Estado belga, por motivos políticos e financeiros perfeitamente vulgares decidiu construir por sua conta as principais linhas férreas do pais, ou quando Bismarck, sem que nenhuma necessidade econômica o levasse a isso, nacionalizou as linhas mais importantes da rede ferroviária da Prússia, pura e simplesmente para assim poder manejá-las e aproveitá-las melhor em caso de guerra, para converter o pessoal das ferrovias em gado eleitoral submisso ao Governo e, sobretudo, para encontrar uma nova fonte de rendas isenta de fiscalização pelo Parlamento, todas essas medidas não tinham, nem directa nem indirectamente, nem consciente nem inconscientemente, nada de socialistas. De outro modo, seria necessário também classificar entre as instituições socialistas a Real Companhia de Comércio Marítimo, a Real Manufactura de Porcelanas e até os alfaiates do exército, sem esquecer a nacionalização dos prostíbulos, proposta muito seriamente, ai por volta do ano 34, sob Frederico Guilherme III, por um homem muito esperto (Nota de Engels) 

(14) Algumas cifras darão ao leitor uma noção aproximada da enorme força expansiva que, mesmo sob a pressão capitalista, os modernos meios de produção desenvolvem. Segundo os cálculos de Giffen, a riqueza global da Grã Bretanha e Irlanda ascendia, em números redondos, a 1814 -. . - 2 200 milhões de libras esterlinas - 44 000 milhões de marcos 1865 - - - - 6 100 milhões de libras esterlinas - 122 000 milhões de marcos 1875 . . - - 8 500 milhões de libras esterlinas -- 170 000 milhões de marcos Para dar uma ideia do que representa a dilapidação dos meios de produção e de produtos desperdiçados durante a crise, direi que no segundo congresso dos industriais alemães, realizado em Berlim, em 21 de fevereiro de 1878, calculou-se em 455 milhões de marcos as perdas globais representadas pelo último crack, somente para a indústria siderúrgica alemã. (Nota de Engels)


quinta-feira, 9 de agosto de 2018

"A caridade dos burgueses"da obra de Paul Lafargue, em "Porquê crê em Deus a burguesia".

"A caridade dos burgueses"

A burguesia, para aumentar a sua fortuna — que é uma acumulação de espólios cometidos à custa do trabalho salariado — tem necessidade de poder dispor duma numerosa população de operários livres, desorganizados, sem nenhuma proteção e suficientemente pobres para se verem obrigados a vender por vil preço a sua força de trabalho. A burguesia dividiu sistematicamente os trabalhadores da opressão feudal, destruiu as suas organizações cooperativas e desfez algumas vantagens que lhe oferecia a religião: — os dias feriados da igreja católica, que, com os 52 domingos elevavam a 90 as festas do ano, durante as quais, no antigo regime, não era permitido trabalhar, o que constituía um obstáculo para a exploração do operário, e bem assim a distribuição de sopa e viveres que continuavam praticando alguns conventos, e que traziam de certo modo, aos operários necessitados, um complemento dos seus salários.

O protestantismo, para dar satisfação aos burgueses industriais, que eram muito numerosos nas suas filas, condenou a esmola em nome da religião e aboliu os santos do céu para achar motivo na supressão dos dias feriados na terra.

A revolução de 1789 fez mais. A religião reformada tinha conservado o domingo, mas os burgueses revolucionários, achando que um dia de descanso em cada sete dias era demasiado, substituíram a semana pela «década», e, afim de enterrar definitivamente a memória dos dias feriados, substituíram no calendário republicano os santos por nomes de metais, de plantas e de animais. A lei de 24 de Setembro declarou delito a esmola.

A economia política, esta outra expressão intelectual dos interesses materiais da classe burguesa, secundou a religião reformada em seus atentados contra as instituições de previsão da classe operária: — os aprovisionamentos de trigo feitos pelas municipalidades, a regulamentação do preço de viveres e a «Casa Annonaria» êste modelo das instituições de previsão legado pelo paganismo ao papado, foram objeto de críticas acerbas dos Fisiocratas, de Condorcet, do abade Galiani e de outros, que se tinham convertido nos predicadores da liberdade do comércio dos trigos, que Necker comparava à maior mesa de jogo que possa estabelecer-se, pois «com um só milhão — dizia — se poderia fazer um povo faminto».

Sem embargo, a produção moderna, que para desenvolver-se deve achar trabalho em abundância e a preço reduzido — para o qual os revolucionários burgueses transformaram as condições de vida dos operários e aboliram as corporações e as instituições de previsão do antigo regime — tinha criado, desde o seu aparecimento, um excesso de população operária à qual não podia garantir trabalho, seu único modo de vida.

O número de vagabundos e de mendigos, uma das incuráveis chagas da civilização, passara a ser tão considerável, que, a partir do século XVI, a França teve que adoptar penas terríveis contra eles: — eram condenados ao látego, a ser marcados e a ser enforcados. Estas penas foram modificadas durante o período revolucionário do século XVIII. A lei de setembro, do segundo ano, anteriormente citada, obrigava o mendigo a residir na sua terra natal, a qual devia organizar oficinas para ocupá-lo. Se se atrevia a abandonar a sua população, era condenado à prisão e a trabalhos forçados, e, em caso de reincidência, à deportação para a ilha de Madagáscar.

Durante o reinado de Luiz XV, abriram-se depósitos para os mendigos, que eram verdadeiras prisões onde se maltratava os vagabundos para fazê-los aborrecer a vida errante. O mesmo fenômeno de excesso de população se produzira na Inglaterra, e, como apesar da bárbara repressão, as hostes dos vagabundos e mendigos — lançados pela transformação das terras aráveis em terras de pastagens aumentavam incessantemente — teve-se, neste país da reforma protestante, de completar os castigos por caridade. Com efeito, durante o reinado de Isabel, decretou-se as «Poor-laws» (leis dos pobres), que impunham a cada paróquia o sustento dos seus. Estas leis estão, todavia, em vigor e contribuem para este paradoxal resultado de caridade burguesa: — que o sustento dos pobres corre a cargo dos mesmos pobres. Assim, por exemplo, as paróquias ricas de Londres, de onde o elevado custo dos alugueis afugenta os indigentes, não satisfazem o imposto, enquanto que, nos distritos operários, onde se amontoam, se veem forçados a fazer grandes sacrifícios para atendê-los. A burguesia criava os pobres para dar-lhes trabalho a preço reduzido, mas, quando aqueles recebiam o número que podia ocupar com proveito seu, recambiava-os para as cidades, restituíam-nos às povoações de origem e condenava-os ao cárcere e aos castigos corporais. Fazia crime da miséria que não lhe produzia riquezas.

A questão dos pobres adquiriu um carácter agudo após os primeiros dias da Revolução de 1789. Bailly, que acabava de ser eleito vereador de Paris, para aliviar as misérias dos trabalhadores que a crise política deixava sem ocupação, reuniu-os em número de 18.000, nas alturas de Montmartre. Os vencedores da Bastilha guardavam-nos com canhões, de mechas acesas.

Esta conduta dos burgueses revolucionários, empreendendo a luta pela «emancipação da humanidade», segundo diziam, indicava à classe operária o tratamento que devia esperar da burguesia vitoriosa.

Quando, porém, para resistir às monarquias europeias coligadas, fora preciso fazer um chamamento ao valor das massas populares, os burgueses revolucionários usavam outra vez da força para impor-lhes respeito, prometendo, solenemente, distribuir aos soldados da República mil milhões dos bens dos emigrados. Então, acariciaram os pobres com as declarações demagógicas dos padres da igreja e dos bispos de Constantinopla e de Alexandria. Oito meses depois de ser votada a lei de setembro, ano segundo, a qual não se atreveram a aplicar, Barrere, em 22 de maio do mesmo ano, leu em nome do Comitê de Saúde Pública — na convenção, — uma memória sobre a extirpação da mendicidade..., a qual constituo uma acusação e uma denúncia flagrante contra o governo... « O quadro da mendicidade, não tem sido, até agora, sobre a terra, mais do que a história da conspiração dos proprietários contra os proprietários». Enquanto os membros da Convenção, davam como ração aos pobres a mera fraseologia filantrópica, iam-se apoderando dos bens do clero e dos hospícios que pertenciam aos deserdados e distribuíam aos proprietários os bens comuns, cuja supressão fez aumentar nos campos o número de trabalhadores reduzidos à mendicidade.

Se a guerra não tivesse alistado e lançado nas fronteiras milhares de operários e aldeões sem trabalho e sem meios de vida, teria havido, possivelmente, um levantamento em toda a França, nas cidades e nos campos.

A guerra era um meio mais eficaz de desembaraçar-se dos pobres que amontoá-los em Montmartre, assestando sobre eles os canhões dos vencedores da Bastilha, metamorfoseados, convertidos em cães de fila da ordem burguesa que nascia.

A revolução imprimiu uma marcha acelerada ao movimento industrial. A burguesia, aproveitando-se da liberdade conquistada com a supressão dos jurados, das corporações e dos entraves de todos os gêneros que o regime deposto oferecia ao comércio e à indústria, estabelecia fábricas e desenvolvia as já existentes.

Não tardou, por isso, a lutar-se com falta de carne de trabalho, o que se explica por a guerra ter ceifado um número considerável de operários válidos e adultos. Havendo falta de homens, lançou-se mão às crianças, cujo emprego industrial as corporações então extintas tinham proibido. Antes da revolução, os meninos menores de 14 anos não podiam ser explorados nas fábricas, e, acima desta idade, eram poucos em número. O emprego de muitos menores de 14 anos na fábrica de papeis pintados de Réveillon, excitara a cólera dos artistas do arrabalde de Saint Antoine, os quais a incendiaram enquanto se procedia, em Paris, à eleição dos deputados para os estados gerais de 1789.

A questão do trabalho, tal como a da miséria, foi pleiteada desde os começos da revolução. Não bastando os filhos dos operários e dos artistas para as necessidades do consumo industrial, lançou-se mão dos órfãos e das crianças recolhidas pela caridade pública.

«.La Décade»— «o órgão filosófico, literário e político» dos ideólogos e dos economistas, assinala como um triunfo da filantropia o que Boyer-Tondedre, irmão do convencionalista, «proprietário de uma importante fábrica de Toulouse, tenha sido autorizado para escolher 500 meninos dos hospícios e empregá-los nas suas oficinas.... Deste modo, associou à sua fábrica os hospícios de Toulouse, Montpellier, Carcassone e dos povos que a rodeavam». (20 de Março, ano sexto). A exploração industrial da criança e da mulher, que desfez a família operária, é um dos triunfos da filantropia.

Nutrir barato os trabalhadores, para reduzir os salários, era uma das preocupações filantrópicas dos fabricantes e dos economistas do século XVÍII. O trigo era, segundo a sua opinião, um meio excessivamente caro para nutrir os operários:— acolheram, por isso, com júbilo, a batata, de Parmentier. J. B. Say, fê-la melhor: — encontrou a banana [1].

«La Décade», de 10 de Abril do ano oitavo aconselhava, para nutrir o povo economicamente, substituir «o pão de trigopor um pão que se fabricaria com farinhas de cevada, aveia, milho, favas, batatas e de castanhas».

Quando os franceses estudaram a revolução com sangue-frio e sem prejuízos de classe, aperceberam-se de que as ideias que lhe imprimiram o carácter de grandeza eram provenientes da Suissa, onde a burguesia já se tinha apoderado do poder. Foi de Genebra que Candolle. importou as «cozinhas económicas», que tanto furor fizeram em Paris revolucionário, porque proporcionaram aos pequenos artistas um alimento são e agradável...» «Os diretores de fábricas — escreve «La Décade» —deveriam estabelecer em suas oficinas uma caldeira para cozinhar, com evidente vantagem duns e doutros... Não é só o homem sensível que participa das vantagens desta instituição; a política vê que, assegurando ao pobre uma nutrição pouco dispendiosa, tem segura a tranquilidade do Estado».

O conde de Runford, que se apelidou o ministro da humanidade, achava-se à frente dum comité que estabelecia cozinhas económicas nos arredores de Saint Antoine e noutros bairros de Paris. O seco e enrugado Volney não podia deixar de enternecer-se a contemplar «esta reunião de homens de honrosa posição cuidando duma panela de sopa» («Décade», 10 de nivox (Dezembro) ano décimo).

Eis aqui o que destruía as promessas e a fraseologia demagógica da convenção. A filantropia, cujo nome não apareceu em língua francesa até meados do século XVIII, fazia a sua entrada triunfal na França revolucionária para substituir a caridade -cristã.

***
A revolução preparava o terreno social para o advento da produção mecânica, que encontrava abundantemente e a baixo preço os trabalhadores que necessitava para desenvolver-se e enriquecer a classe capitalista.

O proletariado, a classe produtora, é de criação moderna. Esta classe distingue-se das classes oprimidas e exploradas dos tempos passados. O proletário é um cidadão que disfruta, pelo menos em teoria, de direitos políticos, mas não possui propriedade nem garantia social de espécie alguma: — vive durante o dia do seu salário, que é o preço em troca do seu trabalho.

Se o capitalista deixa de ter necessidade desta força de trabalho, deita-a para a rua, sem que se importe com a sorte do operário ou da sua família.

Se, no começo da indústria capitalista, esta carecia de braços, como a agricultura dos nossos, dias, a máquina-ferramenta fez desaparecer este inconveniente tornando possível o emprego industrial da mulher e da criança e originando um excesso de população que Engels designa com o nome de exército de reserva do trabalho. O capitalista já não receia as exigências operárias; faz a lei para os proletários, fixa despoticamente os salários e as horas de trabalho, afixa os regulamentos da fábrica e impõe as multas e os despedimentos. O pauperismo da sociedade capitalista torna-se igualmente distinto do pauperismo das sociedades anteriores.

As classes deserdadas das cidades antigas dividiam-se em três categorias: — os escravos, os artistas e trabalhadores manuais e os pobres; a maioria destes últimos não conhecia ofício algum, nem queria exercer outro que não fosse o das armas. O Estado e os ricos cuidavam deles. Primeiro, por um sentimento de fraternidade e depois pelo medo dos seus tumultos. Todavia não os exploravam industrialmente.

Depois do século IV, antes de Jesus Cristo, estes pobres, muito numerosos na Grécia, encontram-se guerreando em todos os exércitos na qualidade de mercenários; vendiam até os seus serviços aos bárbaros (persas, cartagineses, etc), para combater os gregos. Após a conquista da Ásia por Alexandre, e da Grécia pelos romanos, espalharam-se por todo o mundo, exercendo as funções de soldados rheteurs, filósofos, médicos, administradores e parasitas.

Os pobres da sociedade capitalista, fisiologicamente empobrecidos por um trabalho monótono, anti-higiênico e prolongado até ao esgotamento das suas forças, por uma alimentação insuficiente e má e pelo alcoolismo, tuberculose, raquitismo, etc, não possuem o vigor físico, a cultura intelectual e o ardor combativo dos pobres da sociedade antiga; bastam, por isso, as forças da polícia, relativamente fracas, para contê-los. A docilidade e a mansidão que se observam no proletariado, são contemporâneas: — datam apenas de meio século, aproximadamente.

As penúrias frequentes da segunda metade do século XVIII, motivadas pelo rápido crescimento das populações urbanas, pela falta de caminhos e pela imperfeição dos meios de transporte, provocaram tumultos que prepararam o povo dos campos para a revolução.

Um déficit sensível na colheita de cereais era, ainda na primeira metade do século XIX, susceptível de produzir agitações populares. A má colheita de 1847 foi uma das causas ocasionais da revolução de 1848. Os pobres inspiravam então terror às classes governantes. A sua nutrição era uma das preocupações dos homens de Estado. Os governos mais reacionários não vacilavam, quando a colheita fora má, em suspender as tarifas alfandegárias e em estimular as importações estrangeiras para deter a alta do preço do pão. O medo aos pobres está hoje desvanecido, e os ministros e os deputados votam tranquilamente os direitos protetores para fazer o pão caro... Os chefes da indústria, que no segundo império reclamavam, não obstante a entrada franca de cereais e de gado, a fim de que os operários pudessem alimentar-se a preços reduzidos, têm tamanha confiança em poder manter os salários na sua expressão mais ínfima — qualquer que seja o preço dos víveres — que já não se interessam pela alimentação operária, fazendo até causa comum com os agrários, interessados em impor direitos elevados à entrada da carne e dos cereais.

As classes ricas, sentem-se de tal forma protegidas contra qualquer revolta dos pobres — pelo costume e pela resignação destes à sua sorte miserável — que nem sequer se preocupam.

Estas classes temem só as reivindicações individuais e anarquistas, ou sejam os roubos e os assassinatos. Todavia, negam-se a investigar acerca das causas dos delitos e dos crimes, cujo número aumenta à medida que a civilização progride, ante o receio de ter que reconhecer que a ordem social de que eles beneficiam, é a única responsável da sua origem. Os legisladores que votam as leis e os magistrados que as aplicam, estão muito longe de considerar o livre alvedrio, o espiritualismo e o cristianismo como um dogma intangível da justiça e conceituam que o criminoso é o único responsável das faltas cometidas.

Lombroso e a sua escola de farsantes, pretendendo descobrir na organização física do criminoso a causa dos seus delitos, não fizeram outra coisa senão pôr a descoberto uma aparência de falsa ciência anatómica para os confirmar em sua opinião. Sem embargo, há três quartos de século, Quetelet chamou a atenção sobre as relações que existem entre o número de delitos e de crimes cometidos e o preço do trigo. Quando Quetelet realizava as suas estatísticas comparadas, o preço do pão estava sujeito a grandes variações, que podiam constituir um principal factor do brusco crescimento da criminalidade. Há meio século, porém, particularmente depois da enorme produção de cereais dos Estados-Unidos, que data de 1880, o preço do pão oscila debilmente em volta de um preço médio, o que não impede que a criminalidade aumente sem cessar e que durante determinados anos este aumento adquira ainda maiores proporções. Admitindo ainda que o preço do pão constitua uma causa constante da criminalidade, precisa, todavia, do aceleramento momentâneo de alguma coisa mais do que o preço do pão.

Utilizando as estatísticas publicadas de 1826 a 1880 pelo Ministério da Justiça, analisei a ação que podiam ter sobre a criminalidade os conflitos do comércio e da indústria, que se traduzem por quebras e que precedem e acompanham as reduções de salários e «chômage»; descobri que o número de delitos e de crimes aumentava bruscamente quando o das quebras aumentava, para diminuir quando os negócios se reanimavam. Os assassinatos não pareciam sofrer a influência das quebras; os atentados ao pudor eram, em razão inversa, mais numerosos durante os anos de prosperidade, quando as quebras diminuíam. Durante a época de quebras persistentes e de intensa crise de trabalho, os pobres, privados deste e por conseguinte dos meios de subsistência, não tinham outros meios senão os de procurar recursos no roubo, «este direito outorgado pela natureza», disse Carlos Fourier.

A classe capitalista, que se desinteressa das causas da criminalidade que a civilização provoca, interessa-se, todavia, na repressão dos delitos e dos crimes, afim de proteger os seus membros contra as reivindicações individuais e anarquistas dos pobres. Os homens políticos, os moralistas e os filantropos têm-se dedicado a aperfeiçoar o regime penitenciário, e de tal forma o têm conseguido, que o seu desenvolvimento pode ser tomado como medida de civilização dum povo. Há um século, têm-se multiplicado os cárceres, os presídios e as colônias penitenciárias, importando-se dos Estados Unidos a espantosa prisão celular. A exploração burguesa não perde os seus direitos sobre os presos, os quais constituem uma fonte de receita para os que fazem trabalhar e um meio de reduzir os salários do trabalho livre.

Não conseguindo a repressão brutal reduzir o número crescente dos criminosos que a sociedade capitalista forja, viu-se obrigada a imitar a Inglaterra de Isabel e estabelecer instituições de caridade, assistência pública, fatia de pão, hospitais que proporcionam aos estudantes e aos doutores meios de prática e de estudo, asilos que durante a noite limparam a rua de vagabundos perigosos para os passeantes, etc.... O medo é a mãe da caridade pública. Os burgueses puseram em moda a caridade, quer praticando a filantropia a 6% com os alugueis operários, quer abrindo subscrições públicas em que tomam parte ou como mero passatempo. Para as senhoras do capitalismo, a caridade é um pretexto para intrigar em comissões organizadoras de festas deste gênero, para bailar, flertar, comer pasteis e beber «champagne» nos bazares de caridade. Os pobres servem para tudo: — os senhores capitalistas tiram deles proveito, e prazeres as senhoras. Os pobres são, para eles, uma bênção do bom Deus. Só por Jesus ter dito: «haverá sempre pobres entre vós», creriam na sua divindade.

A classe capitalista que, sistematicamente, empobrece e desorganiza a classe trabalhadora, julga-se segura contra toda a reivindicação coletiva, pela sua falta de coesão, pela sua miséria econômica e fisiológica e pelos sabres e baionetas dos polícias e dos soldados. Porém, o admirável valor, a inquebrantável resistência e a formosa disciplina, da qual os trabalhadores têm dado prova em algumas grandes greves, que duram semanas e meses, são demonstrações inegáveis da energia indomável que vive latente nas massas do proletariado e que um acontecimento político ou uma crise econômica geral pode despertar e desencadear.

A classe capitalista verá então quanto pesam na balança duma revolução social a polícia e o exército que protegem a sua dominação econômica e política. O proletariado sublevado varrerá toda a resistência, nacionalizará os meios de produção e estabelecerá a comunidade de bens. Então, como na época do comunismo primitivo, a humanidade não conhecerá a degradante caridade. Não haverá ricos para distribui-la, nem pobres para recebe-la.

1906
Escrito por Paul Lafargue, em "Porquê crê em Deus a burguesia".

Nota
[1] J. B. Say expõe com, grande satisfação, na sua «Economia Política» (Livro I e XVII) a superioridade da banana. Um mesmo terreno produz 106.000 quilogramas de bananas, 2.400 quilogramas de batatas e 800 de trigo. Uma média de um hectare semeado de bananas, do México, pode nutrir mais de 60 indivíduos, enquanto que o mesmo terreno, semeado de trigo, na Europa, nutre apenas duas pessoas. A batata cultivada na Itália e na Inglaterra, a partir do século XVII, não entrou no consumo popular até à primeira metade do século XIX.