terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Socialismo e capitalismo de Estado. Por: Tatiana Khabarova


Num primeiro olhar superficial, socialismo e capitalismo de Estado parecem praticamente a mesma coisa, o que explica a «tensão» teórico-ideológica que surgiu nos últimos tempos em torno desta questão. Tanto num como noutro, os principais meios de produção estão nas mãos do Estado.

Em que reside então a diferença? A resposta mais genérica é a seguinte: A diferença consiste, antes de mais, na natureza de classe do Estado que tem nas suas mãos os meios de produção.

Mas esta resposta ainda é muito abstracta. É preciso examinarmos mais em concreto como precisamente o Estado (no papel de proprietário dos meios de produção) revela ou realiza a sua essência de classe na esfera das relações económicas.

Os meios de produção por si só não têm qualquer interesse. No entanto, a parte de leão do rendimento criado na produção social pertence a quem os detém. Isto é o mais importante de tudo e temos de ter permanentemente em conta que qualquer forma de propriedade funciona sempre apenas «em parceria» com o correspondente mecanismo de acumulação e de distribuição do rendimento.

Mas as relações que «dirigem» a formação e a distribuição do rendimento na economia são as relações de mercado (ou relações de valor monetário-mercantis),que se agregam em torno da lei do valor. Com efeito não é possível obter qualquer rendimento da actividade produtiva enquanto o produto final não é vendido no mercado.

De que forma as relações monetário-mercantis cumprem esta sua função económica e ao mesmo tempo de classe de encaminhar o rendimento criado rigorosamente para as mãos do proprietário dos meios de produção? Se observarmos com atenção é fácil ver que o rendimento está sempre «empacotado» de uma tal forma no processo económico que só pode ser extraído e utilizado realmente por quem possui
o factor produtivo decisivo (o complexo de meios de produção) em cada situação histórica concreta.


Assim, no regime feudal, praticamente todo o rendimento criado pela sociedade é auferido, em última análise, pelo proprietário da terra. Aqui, o rendimento adquire a forma específica historicamente concreta de renda feudal.

Na sociedade burguesa o rendimento é auferido pelo proprietário dos meios técnico-materiais utilizados na produção e adquire a forma de lucro sobre o capital. É característico que a lei capitalista da «taxa média de lucro» não actue no quadro do regime feudal, tal como como o rendimento no capitalismo não pode ser extraído sob a forma de renda feudal, ou seja, a corveia [trabalho gratuito] e o tributo.

O mecanismo de formação e distribuição do rendimento (o mecanismo do «mercado» ou, como nós o designamos, «modificação da lei do valor») desempenha na economia um papel não menos importante do que o tipo em si de propriedade dos meios de produção. Num determinado tipo de «mercado» não tem grande importância se o proprietário dos meios de produção é individual ou colectivo (associado).

Assim, numa série de países, os mosteiros da idade média constituíam uma espécie de senhores feudais colectivos. O próprio Estado feudal, como por exemplo na Rússia, era muitas vezes um «senhor feudal associado», dispondo de servos «estatais» e de terras. Seguramente que todos compreenderão que do facto de os camponeses pertencerem ao Estado, e não a um senhor feudal individual, decorre que também aqui existia um certo tipo de propriedade estatal, mas de tudo isto não resultou qualquer «socialismo». É totalmente errado relacionar a propriedade estatal dos meios de produção, predominantemente (ou até exclusivamente), com o socialismo.

Não se pode ver em todos os tipos de propriedade estatal um embrião do socialismo, ou, inversamente, se pode negar e esbater a especificidade do socialismo com o argumento de que a propriedade estatal também está presente noutras formações.

No modo de produção capitalista podemos observar uma situação análoga à examinada na propriedade feudal. Caso se conserve o mecanismo de formação e distribuição do rendimento «proporcionalmente ao capital investido», segundo o princípio «lucro sobre o capital», então, mais uma vez, é indiferente se «na outra ponta» desta ligação está um capitalista individual ou colectivo. E neste caso, precisamente como o capitalista pode ser associado, também o Estado burguês pode ser o proprietário
dos meios de produção. Porém, sublinhamos, daqui não resulta nenhum «socialismo», tal como não era «socialista» a propriedade estatal da terra e dos camponeses na Rússia de Pedro e de Catarina.

Assim, o que é o capitalismo de Estado?

O capitalismo de Estado é a propriedade estatal dos meios de produção, numa economia em que vigoram as leis capitalistas do lucro e da formação de preços, ou seja, em que o rendimento é extraído segundo o esquema «lucro sobre o capital», proporcionalmente à grandeza do capital investido. Ou, ainda se pode dizer, numa sociedade em que a lei do valor actua na sua modificação capitalista.

Podeis agora sem grande dificuldade formular a definição, por exemplo, do «feudalismo de Estado»: é a propriedade estatal dos principais requisitos da produção, desde que o rendimento seja consolidado e extraído na sociedade segundo o princípio da renda feudal.

E neste plano como são as coisas no socialismo?

O socialismo é a propriedade estatal dos principais meios de produção, na condição de que a lei do valor actua na sua modificação específica socialista, ou seja, o rendimento acumula-se e é extraído proporcionalmente não ao capital, mas ao trabalho vivo; na condição de que o direito ao trabalho constitui uma  das principais garantias constitucionais dos cidadãos e que o desemprego foi
completamente extinto.

Podemos formular isto de forma ainda mais curta: O capitalismo de Estado é a propriedade estatal dos meios de produção quando a formação e distribuição do rendimento na sociedade se efectuam segundo o capital; enquanto o socialismo é a propriedade estatal dos meios de produção quando a formação e distribuição do rendimento se efectua segundo o trabalho.

Em trabalhos anteriores examinámos várias vezes a questão da modificação socialista da lei do valor, ou seja, o mecanismo de formação do rendimento proporcionalmente ao trabalho vivo. Vimos que a aproximação histórico-concreta mais nítida à modificação socialista do valor foi «o sistema de duas escalas de preços», que foi criado e aplicado na economia nacional da URSS no período entre os finais dos anos 30 e a primeira metade dos anos 50. Neste trabalho abordaremos apenas alguns
aspectos fundamentais desta questão.

De que forma o sistema de duas escalas de preços permitia a «transfusão» da maior parte do rendimento social precisamente para o bolso do trabalhador comum, representante das massas laboriosas?

Antes de mais, efectuava-se através do mecanismo de redução periódica e substancial dos preços de retalho nos produtos alimentares básicos e artigos industriais de amplo consumo. Efectuava-se ainda através alocação prioritária e não «residual» de recursos do orçamento do Estado para o financiamento das necessidades sociais, em primeiro lugar, da Educação e da Saúde.

Por seu turno, a redução sistemática dos preços de retalho era possível porque ao longo de toda a cadeia social-tecnológica se seguia rigorosamente a orientação para a redução do preço de custo da produção. Não era permitida a obtenção de lucro em proporções minimamente significativas através dos preços do produto social intermediário (isto é, praticamente toda a produção destinada ao processo técnico-produtivo).

A taxa de rentabilidade nos preços de venda das empresas, regra geral, era baixa (na ordem de alguns pontos percentuais sobre o custo de produção) e praticamente uniforme em toda a economia nacional, em todo o sortido de artigos. A fixação de uma taxa de rentabilidade baixa e bastante rígida nos preços e a manutenção da produção técnica praticamente ao nível do «preço de custo» extinguiam o interesse
do produtor em manipular os preços, pois por essa via não era possível «melhorar»
significativamente os indicadores de desempenho.

O grosso do volume do rendimento social formava-se no mercado de consumo final, nos preços dos produtos de consumo geral, adquirindo aqui a forma de rendimento líquido centralizado do Estado («imposto sobre transacções»). Uma vez que os artigos de amplo consumo não são mais do que meios de reprodução da força de trabalho, destinados a compensar os seus gastos e a garantir o seu desenvolvimento, resultava então que o rendimento social se formava, de facto, «segundo o trabalho»,
proporcionalmente à «transfusão» verificada à época de gastos de trabalho vivo.

A incorporação de um importante imposto sobre transacções nos preços de consumo dava ao Estado margem de manobra para aplicar com segurança e determinação a sua política social de classe: em primeiro lugar, embaratecer aqueles produtos que determinam o nível de vida das massas. A redução dos preços era feita em parte à custa do rendimento líquido centralizado do Estado, o qual era entregue à população precisamente através dessa forma específica. 

Em suma, pode-se dizer que na época em que vigorou o sistema de duas escalas de preços, a propriedade estatal no nosso país conjugava-se com a modificação «laboral» socialista do valor, isto é, o socialismo existia nos seus traços básicos, mesmo que numa forma ainda «por polir».

O quadro alterou-se radicalmente (no mau sentido) em resultado da «reforma económica» de 1965-1967. Mas o problema não está no facto de a reforma ter permitido uma «política de aumento do lucro». O lucro é na sua essência rendimento, e sem rendimento, sem aumento dos resultados da economia em relação aos gastos, nenhuma produção, nem capitalista nem socialista, pode funcionar. O rendimento – na sua forma de rendimento líquido do Estado acrescido do lucro das empresas – também era obtido, naturalmente, no período de Stáline, no período do sistema de duas escalas de preços, e a sociedade estava igualmente interessada no seu aumento, não na sua diminuição.

A essência do problema é outra. No «socialismo de Stáline» o rendimento social acumulava-se – como mais uma vez acabámos de verificar – em proporção directa com os gastos de trabalho social vivo. Era isso que na altura tornava a propriedade estatal dos meios de produção autenticamente socialista. No processo da dita «reforma económica» de 1965, não seguiu uma «política de aumento do lucro», mas mudou-se o princípio de formação de rendimento (formação de lucro).

O sistema de duas escalas de preços foi rompido, desapareceu a delimitação que lhe era característica entre os preços do mercado de consumo e os preços «produtivos».

O rendimento começou a ser formado por toda a parte, à semelhança do «lucro sobre o capital» no capitalismo, extraído proporcionalmente ao valor do capital fixo e dos meios materiais circulantes, isto é, no essencial, proporcionalmente ao valor dos gastos materiais e não de trabalho.

Em resultado, a propriedade estatal socialista dos meios de produção foi então combinada com uma modificação disforme, «pseudo capitalista», das relações monetário-mercantis.

A estrutura híbrida que surgiu afastou-se bruscamente do socialismo em direcção ao «capitalismo de Estado». Pôs-se fim à construção do socialismo enquanto tal (as premissas para isso formaram-se ainda nos anos 50), iniciou-se uma degeneração gradual e, subsequentemente, o desmantelamento aberto das estruturas socialistas criadas na economia e na política, num sentido burguês. Foi precisamente o processo pernicioso e inteiramente regressivo da degeneração da propriedade social socialista, num certo tipo, verdadeiramente bastardo, de propriedade capitalista de Estado, que levou o país primeiro à estagnação e depois à crise contra-revolucionária mais profunda e perigosa da nossa história (que se desenrolou sob a bandeira da «perestroika»).

Assim, «o capitalismo de Estado» existiu na URSS, em primeiro lugar e em determinada medida, no período da NEP, durante o qual não havia apenas «privados sob o controlo do Estado», mas praticamente toda a indústria da altura era «capitalista de Estado». Nessa época ainda não surgira a modificação socialista da lei do valor. Os trusts, como principal forma de organização da produção durante a NEP, tinham amplos direitos no domínio da realização da produção final, no abastecimento
e ao mesmo tempo na formação de preços. Nestas condições, naturalmente, o mecanismo das relações monetário-mercantis actuava espontaneamente, como antes, à maneira capitalista, e a formação e distribuição do lucro efectuava-se segundo a grandeza do capital investido. A remuneração do trabalho gravitava em torno do valor da força de trabalho como mercadoria, e todo este «conjunto» era 
logicamente completado com o desemprego, ao qual hoje alguns tendem «a não atribuir significado particular».

Mais tarde, no período dos «quinquénios de Stáline», a modificação socialista do valor (isto é, a construção geral do «mercado socialista»), como já repetimos muitas vezes, foi descoberta teoricamente e na prática. Por isso, nessa altura, a nossa estrutura económica já não tinha nada a ver com «capitalismo de Estado». Na transição dos anos 40 para os anos 50 podia-se caracterizar inteiramente como «socialismo construído no fundamental».

A partir de meados dos anos 50 iniciou-se obstinadamente a demolição e a mutilação desta estrutura socialista, e no decurso da reforma de 1965-1967 concretizou-se o «segundo advento» do capitalismo de Estado. Tal aconteceu em resultado, como já se explicou, da substituição da modificação socialista do valor pela «pseudo capitalista» (ou capitalista não declarada), da substituição do princípio da formação do rendimento «proporcionalmente aos gastos de trabalho vivo» pelo princípio da formação
de rendimento «proporcionalmente ao valor do capital produtivo», isto é, na prática por analogia ao «lucro sobre o capital».

Desde essa altura e ao longo de um quarto de século, a nossa economia foi «corroída» na sua base por um profundo desequilíbrio estrutural: o modo de produção socialista, em vez de se desenvolver normalmente na direcção comunismo, teve de se debater penosamente com a forma de distribuição capitalista não declarada, compulsivamente «cravada» no conjunto da economia.

Foi daqui que decorreram todas as nossas desgraças e não de todo do inventado «sistema de comando administrativo», que não existia no nosso país durante o socialismo – o que existia era um sistema próprio ao regime socialista de direcção planificada centralizada territorial e por ramos de actividade da economia nacional.

A este propósito, como temos assinalado nos nossos trabalhos, os fenómenos negativos que asfixiam hoje a economia soviética surgiram todos em datas precisas, e todas essas datas, da primeira à última, remontam não à época de Stáline, mas à segunda metade dos anos 50 e anos subsequentes.

Assim, na segunda metade dos anos 50, começou o declínio duradouro da generalidade dos indicadores do nosso crescimento económico – processo que hoje não podemos parar.

Veja-se o que escreveu V. Trapeznikov em 1982:

«A passagem em 1957 do sistema de direcção por ramos da economia para o nível territorial (sovnarkhozi – sovietes de economia nacional) provocou a ruptura de uma multiplicidade de ligações económicas e o desmembramento dos complexos produtivos. Em consequência, logo em 1958 degradaram-se bruscamente os indicadores do rendimento nacional, o rendimento dos investimentos e os ritmos do progresso científico-técnico. O regresso em 1965 ao sistema de direcção por ramos de actividade produziu uma viragem no bom sentido. No entanto, não se conseguiu atingir os ritmos observados em 1958 devido às dificuldades em restabelecer as ligações económicas destruídas (…) A partir de 1959 os ritmos de crescimento começaram a baixar. Em 1980 tinham baixado três vezes. (…)
«Tornou-se habitual o incumprimento dos planos de criação de nova maquinaria (…) Apesar do aumento dos investimentos, assistiu-se à redução dos resultados.

A partir de 1958 até 1980 o retorno dos investimentos caiu de 0,48 para 0,31. Em 1958, os novos investimentos tinham um retorno de 0,52. Em 1980 esse retorno era de 0,16. Por conseguinte, se em 1958 o investimento de um rublo se traduzia em 52 kopeques de crescimento do rendimento nacional, em 1980 o resultado era de apenas 16 kopeques».

Veja-se o que escreveu V. Kulikov em 1986:

«Os ritmos de crescimento não sofreram uma mera queda. No início dos anos 80 chegaram a um nível crítico. Nesse período o crescimento dos rendimentos reais da população praticamente estagnou, e a posição da URSS na competição económica com os EUA, ao longo de uma série de anos, não só não melhorou como, em alguns indicadores, piorou.»

D.A. Smoldipev, em 1980:

«Até 1940 o crescimento do rendimento nacional era superior ao crescimento do capital fixo [instalações e meios de produção]. Durante os anos 40-50 até 1956-1958, o retorno dos investimentos aumentou persistentemente, mas no período entre 1959 e 1965, esse retorno começou a diminuir.»

P.N. Fiodosséiev, em 1980:

«A redução dos ritmos de crescimento do rendimento nacional verifica-se em simultâneo com o crescimento incessante e significativo do volume de capital fixo e de capital circulante utilizado na economia nacional. Assim, se a relação do crescimento do rendimento nacional e do crescimento do capital fixo no período do oitavo quinquénio foi de aproximadamente 1:2, já no nono quinquénio esta relação foi de 1:3,4, e nos primeiros anos do décimo quinquénio subiu para 1:4,2. Isto mostra a
que ponto tem baixado o retorno dos investimentos.»

Por sua vez, a diminuição crónica do retorno dos investimentos é sinónimo do carácter gastador da actividade económica. A consolidação final do «mecanismo» gastador na nossa economia foi, mais uma vez, uma consequência da reforma de 1965, quando o esquema de formação do lucro foi reorientado «do trabalho vivo para o capital», da grandeza dos gastos sociais de força de trabalho para a grandeza dos meios materiais envolvidos na produção. Num contexto em que não havia concorrência no investimento de capital, isto só podia conduzir à situação em que as actividades mais lucrativas eram aquelas cujo tipo de trabalho e produção permitiam consumir mais trabalho social. 

(Podemos ver por aqui que a maior e indiscutível vantagem da economia socialista – a planificação do processo de investimento – ao ser conjugada com uma modificação do valor alheia, não orgânica ao socialismo, transformou-se numa «insuficiência». Aliás, todas as outras insuficiências da organização
da economia socialista, em torno das quais os actuais economistas adeptos do mercado fazem grande alarido, têm a mesma origem. Trata-se de enormes vantagens inquestionáveis do socialismo que não podiam revelar-se à devida altura unicamente porque foram colocadas sob a mesma canga ao lado de uma construção das relações monetário-mercantis que não lhe corresponde.)

Prosseguindo. Devido ao facto de em 1965-1967 terem «esburacado» a rígida barreira estrutural existente no sistema de duas escalas entre os preços de consumo e os preços para a produção (entre o dinheiro para remunerar o trabalho e o dinheiro «contabilístico», segundo a terminologia de B.M. Iakuchev), começou a conversão de dinheiro nominal em numerário, violando-se a correspondência entre a massa monetária na posse da população e o volume de bens de consumo colocados no mercado.

O desequilíbrio monetário-mercantil começou a aumentar acentuadamente e a inflação veio acompanhá-lo. (Isto é aliás bem ilustrado pelos cálculos de E.T. Ivanov sobre a dinâmica das poupanças da população e as reservas de mercadorias, os quais testemunham que, entre 1970 e 1985, os depósitos nas caixas de poupança aumentaram quase cinco vezes, enquanto a produção de mercadorias apenas duplicou.)

No sistema de duas escalas de preços nada disto era possível de acontecer, uma vez que o Estado entregava aos trabalhadores o seu «dividendo» anual sob a forma de redução dos preços dos bens realmente colocados à venda, e não através de montantes monetários inflacionistas, sem correspondência com o volume produzido de mercadorias.

Prosseguindo. Os frutos das «reformas económicas» de Bréjnev-Kossíguine demonstram à exaustão quão infundadas são as esperanças depositadas numa dada empresa (ou num «bloco» de empresas) enquanto unidade estrutural auto-suficiente «capaz de resolver todas as questões» do processo de produção social. Apesar de tudo, por muitas voltas que se dê, não são as empresas que expressam os interesses de classe trabalhadora, mas sim o Estado socialista operário-camponês. A tarefa consiste
em depurar o aparelho do Estado socialista das «distorções burocráticas» (V.I.Lénine), mas não de todo em forjar contrapesos às funções estratégicas do poder estatal, através, por exemplo, «do poder directo dos colectivos laborais». Isto nunca levou e não levará a outra coisa senão à devassidão do egoísmo de grupo («colectivo»).

Apenas o Estado pode ser o garante fiel de que no conjunto da economia se concretiza precisamente o interesse de todo o povo, isto é o interesse progressista de classe.

Vejamos deste ponto de vista o que foi o «reformismo» económico dos anos 60.

Se antes a parte predominante do rendimento social era constituída sob a forma de «rendimento líquido centralizado do Estado», (em 1952 o RLCE representou 69 por cento das receitas do Estado), posteriormente o peso do RLCE diminuiu incessantemente, caindo no 11.º quinquénio para menos de um quarto das receitas do Estado (para 1986 previa-se que o RLCE proporcionasse uma receita de 102,5 mil milhões de rublos, de um total de 414,4 mil milhões de receitas). Planeava-se no futuro
substituir totalmente o RLCE («imposto sobre transacções») pela tributação do lucro das empresas e o pagamento do capital fixo.

Deste modo, uma vez que o rendimento social começou, no essencial, a ser formado não pelo Estado no mercado de consumo, mas directamente pelas empresas e (naturalmente) pelos ministérios, «na sua casa», o resultado foi, em primeiro lugar, o crescimento brusco, como já se assinalou, da massa monetária sem correspondência com a produção de mercadorias e, em segundo lugar, a acumulação de fundos na esfera produtiva, sendo tanto mais significativa quanto mais próximo se estava da
cúpula da direcção económica.

Quais foram os ganhos para o povo desta «redistribuição do poder económico»?

Antes de mais, o emagrecimento do orçamento do Estado e a consequente redução dos programas sociais, que passaram a ser financiados segundo o princípio do «remanescente».
O orçamento do Estado passou muito rapidamente a ser deficitário.
Sublinhe-se: passou, pois antes não era.

«As receitas orçamentadas diminuíram» – reconheceu abertamente o antigo presidente do Gosplan da URSS, N.K. Baibakov, entrevistado pelo Vetchernaia Moskva em 1989. «Os recursos fora absorvidos pelos fundos das empresas, enquanto as despesas continuaram a ser suportadas pelo Estado. Logo na elaboração do plano para 1967 e 1968 (…) não se conseguiu fazer um Orçamento do Estado equilibrado com base nas receitas correntes.»
Assim, «ganho número um» – défice orçamental.

«Ganho número dois» – o rápido alastramento do fenómeno que hoje designamos por «departamentalismo». Com efeito, para que os departamentos (ministérios), em grau não menor às grandes empresas, começassem a sobrepor os seus interesses de grupo aos interesses gerais, aos interesses do Estado no sentido próprio, precisavam de ter uma poderosa base económica. E ela formou-se após a reforma com a passagem de uma parte enorme do rendimento social para a posse das células produtivas e dos seus estados-maiores de ramos de actividade.

Mas será que as empresas e os ministérios usaram esses recursos, como inicialmente se pressupunha, no reequipamento da produção e na melhoria das condições de trabalho e de vida dos operários? 

Infelizmente nada disso se verificou. Hoje há literalmente um grunhido em toda a nossa imprensa: praticamente todos se queixam de que na produção as máquinas e os equipamentos estão gastos até ao limite, pois não foram renovados nos últimos 20-25 anos. Desculpem, mas quem é que vos impediu
de o fazer? Conclui-se que viveram até hoje com aquilo que os amaldiçoados «comissários do povo stalinistas» deixaram ao país. Onde é que estão todos esses «investimentos descentralizados», esses «fundos de desenvolvimento da produção», etc.?

A resposta é simples: os recursos foram empregues na «construção de instalações não produtivas de importância secundária»,9 na manutenção de uma burocracia «industrial» que se multiplicou a um ritmo sem precedentes e em ambiciosos projectos desmiolados, que pareciam servir apenas para justificar a «necessidade» da multiplicação ilimitada das fileiras burocráticas.

Basta dizer que, no início de 1989, o pessoal administrativo na esfera da produção, nas empresas e complexos industriais (sem contar com os ministérios), elevava-se a 13 milhões de pessoas, enquanto o chamado «sistema de comando administrativo», incluindo os órgãos dos sovietes e órgãos administrativos de direcção, empregava menos de dois milhões de funcionários administrativos. Como termo de comparação, refira-se que só o aparelho do Ministério da Agricultura dos EUA tem ao seu serviço cerca de 110 mil funcionários.

Assinale-se, entretanto, que o peso do pessoal administrativo das empresas soviéticas no universo de operários e empregados aumentou de 10,5 por cento em 1985 para 11,2 por cento em 1989. Neste período o número total de administrativos «na produção» cresceu de 12,5 milhões para 13,1 milhões de pessoas, enquanto o número de empregados e operários diminuiu um milhão. Eis pois os bons resultados das empresas que se arvoravam em «combatentes contra a burocracia»

A «transição para o capitalismo de Estado», entre a segunda metade dos anos 50 e meados dos anos 60, teve efeitos particularmente devastadores na situação da agricultura socialista.

«A partir aproximadamente dos meados dos anos 50» – escreve o conhecido economista soviético L.I. Maizenberg – «o desenvolvimento da produção kolkhoziana assentava na base técnico-material das estações de máquinas e tractores (MTS), que executavam a pedido dos kolkhozes toda a laboração que exigia a utilização de máquinas. Os serviços prestados pelas MTS eram pagos em produtos. Nestas condições a alteração dos preços grossistas dos meios de produção destinados à agricultura reflectia-se não no custo de produção dos kolkhozes, mas nos gastos e indicadores financeiros da actividade das MTS (…) Nestas condições, qualquer alteração, mesmo substancial, nos preços grossistas e de aquisição [de produtos agrícolas] reflectia-se não ao nível dos preços de retalho, mas na alteração das proporções do imposto sobre transacções. O imposto sobre transacções constituía uma espécie de amortizador, esbatendo as alterações dos preços grossitas dos meios de produção e dos preços de aquisição da matéria-prima agrícola.

«A situação começa a alterar-se radicalmente a partir da segunda metade dos anos 50. Com a extinção das MTS, a maquinaria agrícola foi entregue aos kolkhozes. Desde essa altura, o pagamento da maquinaria agrícola produzida pela indústria estatal passou a efectuar-se à custa dos rendimentos dos kolkhozes, e o nível e dinâmica dos seus preços transformaram-se num importante factor, determinando o custo da produção kolkhoziana.»

Na sequência da extinção das MTS, a venda da maquinaria agrícola representou para muitos kolkhozes (tal como tinha prevenido I.V. Stáline em 1952) uma catástrofe financeira e produtiva.

«A maioria dos kolkhozes não dispunha de serviços de manutenção e reparação, não tinha os técnicos necessários, nem os meios suficientes para renovar as máquinas. Tudo isto se reflectiu negativamente no desenvolvimento da produção agrícola.»

«Os kolkhozes foram obrigados a adquirir a pronto pagamento as máquinas e outros instrumentos de trabalho às estações de máquinas e tractores. Para muitos kolkhozes isto era demasiado oneroso. Em resultado deteriorou-se o nível de equipamento técnico da agricultura».

Daqui em diante passou a ser necessário subvencionar permanentemente a aquisição de maquinaria no campo, particularmente depois da reforma de 1965-67 que acabou com a política de baixos preços grossitas dos meios de produção e abriu caminho à produção em grande escala de maquinaria dispendiosa, com incorporação intensiva de material, mas pouco eficiente economicamente. Formou-se uma «bolha» de subvenções incomportáveis, nunca vista antes da época de Khruchov no sector kolkhoziano. Nestas condições, para garantir pelo menos a aparência de rentabilidade no sector agrícola foi preciso aumentar várias vezes os preços de aquisição [pelo Estado] da produção agrícola. 

A «vaga» de aumentos consecutivos dos preços grossistas da maquinaria provocou o aumento descontrolado do custo da produção agrícola e a formação de uma segunda «bolha» permanente de subvenções aos preços de retalho, já que os preços de aquisição chegavam a ser várias vezes superiores aos preços ao consumidor. Também isto não existia no nosso país «durante o socialismo».

Todos estes fenómenos nefastos, que provocaram esta «viragem» para uma economia subsidiada, são fruto da capitalização encoberta da economia nacional da URSS, da sua reorientação para os trilhos do capitalismo de Estado nos anos 50 e 60.

Poderíamos continuar a enumeração das consequências perniciosas de mais de 30 anos de «erosão capitalista de Estado» do nosso organismo económico nacional, mas julgamos que o quadro geral já é suficientemente claro. Agora é altura de responder à pergunta mais importante: Que fazer?

No plano estratégico a resposta é também clara: é necessário suspender a estúpida e pérfida «desestatização», que contraria as tendências objectivas da economia mundial.

É necessário travar imediatamente o «pogrom» da propriedade estatal dos meios de produção, mas na condição de se fundir a propriedade estatal não com a modificação capitalista da lei do valor, que assola hoje a nossa economia, mas com a modificação socialista, isto é, restabelecer nos seus traços essenciais e determinantes, o sistema de duas escalas de preços.

Se quisermos também podemos ver isto como uma certa forma de «transição para o mercado»: uma transição para o mercado socialista normal, em conformidade com as leis do desenvolvimento da economia, o qual nas últimas três décadas praticamente deixou de existir no nosso país. No mercado socialista, os meios de produção e a força de trabalho não constituem mercadorias, está excluído o desemprego e garantido o direito ao trabalho. O «estatuto» de mercadoria apenas é plenamente atribuído aos bens de amplo consumo da população.

No mercado socialista, como critério quantitativo, equivalente à taxa de lucro no capitalismo, toma-se o nível dos preços de retalho dos produtos de consumo básicos.

O critério de eficiência da economia nacional é o «velocímetro» da redução anual dos principais preços de retalho. O critério local de eficiência (para cada empresa) é a redução do preço de custo da produção, considerando-se (e recompensando-se) antes de mais a redução do preço de custo não «em casa própria», mas «na casa do vizinho do lado», isto é, a economia de gastos daquele que consome. 

Segue-se a linhada redução consequente e incessante da redução dos preços grossistas em toda a produção destinada ao processo técnico-produtivo, na base da redução do seu custo de produção. Os preços grossistas incluem uma pequena taxa de rentabilidade, uniforme em toda a economia nacional (na ordem de alguns pontos percentuais do preço de custo). O grosso do valor do sobreproduto é «vertido» para o mercado de consumo, onde é acumulado sob a forma de rendimento líquido centralizado do Estado. 

Rompe-se a dependência perversa da remuneração do trabalho do valor da produção.

O trabalho é remunerado consoante a qualificação do trabalhador, complexidade do trabalho e cumprimento dos objectivos planificados (isto é, em função da posição efectiva do trabalhador na emulação socialista). O lucro obtido acima do plano, graças à redução suplementar do custo de produção, em resultado de inovações científico-técnicas e aperfeiçoamentos, permanece à disposição do colectivo laboral.

O financiamento de investimentos estratégicos de grande escala é feito de modo centralizado através do orçamento do Estado.

As alavancas de elevação do bem-estar material e cultural dos trabalhadores são o aumento pecuniário do salário, estreitamente ligado ao aumento da produtividade do trabalho, a redução regular e substancial dos preços de retalho, a saturação máxima do mercado de consumo, o desenvolvimento dos fundos sociais de consumo e a passagem gradual de um conjunto crescente de bens vitais para a categoria de bens de consumo gratuito.

Tatiana Khabarova
Grupo Ideológico da Associação «Unidade» de Moscovo
Moscovo, Julho de 1990 

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